O humano e o inumano nos cavaleiros de cervantes e calvino: uma análise comparada.

Por Giordana Maria Bonifácio Medeiros | 09/04/2012 | Literatura

O humano e o inumano nos cavaleiros de Cervantes e Calvino: uma análise comparada.

Giordana Maria Bonifácio Medeiros

Graduanda de Letras Português

da Universidade de Brasília/UNB

 

 

A presente obra pretende analisar as similitudes e discrepâncias das obras de Cevantes e Calvino, com enfoque especial em suas personagens singulares: Dom Quixote e Agilulfo. O caráter humano e inumano de cada um. A razão e a fantasia que se contrapõem nessas obras satíricas que levam ao riso. Os dois paladinos procuravam reconhecimento pelos seus feitos. E nessa semelhança de objetivos diversa foi sua forma de encontrá-los. É esse diálogo entre essa e aquela obra que ora se pretende fazer. A busca do inumano e do humano nas linhas destas maravilhosas obras-de-arte.

Palavras-chave: Ítalo Calvino, O cavaleiro inexistente, Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, Intertextualidade.

 A obra de Cervantes há pouco tempo foi eleita o romance de maior importância da cultura mundial. É uma crítica satírica aos romances de cavalaria. E Cervantes segue nos mínimos detalhes a fórmula consagrada deste tipo de obra. Ou seja: apresar de Dom Quixote partir em busca de aventuras essas ocorrem ao acaso, nas palavras de Bakhtin, “ele é um aventureiro, mas um aventureiro desinteressado e por sua própria natureza, ele só pode viver nesse mundo de coincidências maravilhosas e nelas conservar sua identidade”. Continua mencionando que “o próprio “código” (ao qual Dom Quixote se refere várias vezes no decorrer da história), pelo qual se mede a identidade do cavaleiro, é concebido justamente para esse mundo de coincidências maravilhosas.” (BAKHTIN, 2010, p. 269).

A história de um cômico cavaleiro que roda a Espanha em busca de aventuras e de ser reconhecido por seus feitos, além de divertir é uma arma de crítica social. O simples retrato antagônico do cavaleiro, Dom Quixote, um fidalgo como bem diz, com seu escudeiro, Sancho Pança, um homem sem instrução e pobre, já salienta as condições de desigualdades que já existem desde tempos imemoriais. Sancho era a ponte de seu amo com a realidade. Dom Quixote, que detém a fidelidade de seu escudeiro com promessas de presenteá-lo com uma ínsula, era o sonhador. Romântico, tornou-se símbolo do amor platônico e sua história é amplamente estudada e parodiada. Nesse seu mundo fantasioso, que é aquele que ele aprendeu nos livros, pretende realizar fatos heroicos que lhe glorifiquem “e pelos quais ele glorifique também os outros (os suseranos, a dama)” (BAKHTIN, 2010, p. 269). Não é por menos que destina aos que salva a prestar glórias a Dulcinéia Del Tolboso. E também por isso, que promete riquezas e amplo reconhecimento ao seu ingênuo escudeiro, Sancho Pança.

Dom Quixote, ao contrário de Agilulfo é o homem sob a armadura. Ser imperfeito e dotado de sentimentos e cheio de sonhos, como alcançar a notoriedade que seus prestimosos livros de cavalaria prometiam. Agilulfo era o cavaleiro perfeito, com sua alva armadura, esgrima imponente e conhecimento técnico da ordem de cavalaria, representava a impossibilidade da perfeição humana. Enquanto o escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura era a âncora de seu amo com a realidade, o escudeiro de Agilulfo era o louco, sem identidade certa, regido por seus instintos primevos. Era o contraponto da racionalidade do Cavaleiro inexistente. Na verdade aquele fazia o papel do bobo, tanto quanto Sancho, aos quais não devemos considerar sem importância na obra em si. Segundo Bakhtin: “não se pode entendê-los (os bobos) literalmente, eles não são o que parecem ser; a existência deles é o reflexo de alguma outra existência, reflexo indireto por sinal.” (BAKHTIN, 2010, p. 276). Não é para menos que ambos os bobos (Sancho e Gurdulu) que assumem o papel coadjuvante destas peças são tão diversos de seus amos.

 Gurdulu não tinha morada nem destino, seguia as armadas de Carlos Magno simplesmente para conseguir alimento. Foi destinado a tornar-se escudeiro de Agilulfo como uma pequena vingança dos companheiros deste último que tanto o invejavam. Sancho entra na história contratado por Dom Quixote para auxiliar-lhe em suas aventuras. Mas ambos os escudeiros assumem o mesmo comportamento na trama, o de contrapor o Cavaleiro a quem servem. Conforme Bakhtin:

“O autor utiliza da figura do bufão e do bobo (que não compreendem a convenção deplorável da ingenuidade), na luta contra o convencionalismo e da inadequação das formas de vida existentes (...) Eles se dão o direito de não compreender de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida e o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio indivíduo, (...) de representar a vida  como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o direito de tornar pública a vida privada com todos os seus segredos íntimos.” (BAKHTIN, 2010, p. 278)

 

Não é por menos que as frases mais dignas de crítica social vêm dos lábios de Sancho e não de Dom Quixote. Ao cavaleiro, não é dado reclamar da sorte do povo. Mas eis que o escudeiro, o bobo, é livre para discursar, mesmo que indiretamente, contra a terrível estrutura social. Por tal razão os autores das obras em epígrafe não se desfizeram da possibilidade de conferir escudeiros tão singulares aos seus cavaleiros.

  Enquanto a figura do Cavaleiro da Triste Figura era o do humano; na sobremedida das coisas, do cavaleiro atrapalhado e desajeitado a quem a sorte presenteou com pedras e desacato; Agilulfo era o inumano que procurava a perfeição do homem. O objetivo do de Dom Quixote era estar perto de figuras de sua fantasia. O de Agilulfo, a proximidade de uma condição que é inalcançável. Um é a impossibilidade outro a possibilidade cômica da representação do cavaleiro. Porém, ambos foram perseguidos, um por sua satírica personagem, outro por sua perfeição inigualável. Rimos de Dom Quixote por sua situação de alucinado, de sua busca infrutífera de reconhecimento, e de Agilulfo por sua severidade que nos induz a reafirmar sua inexistência. Quixote está mais próximo de nós. Tão suscetível quanto desajeitado e fraco como nós somos.

Alfredo Bosi considera que “o humor de Cervantes não somente nos faz rir “do Quixote que se lança aos moinhos”, mas refletir sobre “[...] o nosso riso diante deste Cavaleiro da Triste Figura, obstinado em seu sonho de justiça, em perene desencontro com a substância mesma da sociedade humana, compromisso onde ideal e loucura acabam compondo a mesma face.” Afinal, Dom Quixote não apenas desconstruiu o arquétipo tradicional do cavaleiro andante, mas revelou dele uma face desconhecida, que o mostra na fragilidade da sua loucura e da sua fantástica e extraordinária imaginação. Além disso, possuindo uma nobreza ímpar de ideias, palavras, ações e sentimentos, o Cavaleiro da Triste Figura revela a grandeza de caráter dos heroicos cavaleiros dos livros que lera, os quais não mais existem na realidade concreta do seu tempo, o que provoca a ironia e o sorriso sarcástico do narrador, criando o clima de humor da narrativa, que nos convida a refletir sobre a verdadeira natureza humana.” (BOSI apud MICALI, pag.3 )

 

E Agilulfo, por sua vez, nos leva ao riso em razão do exagerado rigor. É um personagem de comportamento tão nobre e escorreito que só pode provocar a pilhéria de seus companheiros. Era um paladino exemplar, que se destacava por seus feitos e também pelo fato de ser tão somente uma armadura oca e sem vida. Recusa os amores da grande guerreira Bradamante e mantém-se incólume em sua honestidade. É o cavaleiro perfeito, contudo, tem uma falta que não pode suprimir: ele não vive. Em uma parte do livro ao recolher os corpos dos vencidos em batalhas Agilulfo arrasta o morto e pensa:

“Ó morto, você tem aquilo que jamais tive nem terei: esta carcaça. Ou seja, você não tem: você é essa carcaça, isto é, aquilo que às vezes, nos momentos de melancolia, me surpreendo a invejar nos homens existentes. Grande coisa! Posso bem considerar-me privilegiado, eu que posso passar sem ela e fazer de tudo. –Tudo se entende – aquilo que me parece mais importante; e muitas coisas consigo fazer melhor que aqueles que existem, sem seus habituais defeitos de grosseria, aproximação, incoerência, fedor. É verdade que quem existe põe sempre alguma coisa de seu no que faz, um sinal particular, que não conseguirei jamais imprimir. Mas, se o segredo deles está aqui, neste saco de tripas, muito obrigado, não me faz falta. Este vale de corpos nus que se desagregam não me provoca mais arrepios que o açougue do gênero humano.”  (Calvino, 1993, p. 55-56).

 

A personagem de Agilulfo resta nessa contradição de invejar e ojerizar os vivos. É o cavaleiro inexistente que não pode se gabar nem da Triste Figura que tem Dom Quixote tão logo perde os dentes, (por tal razão, assim sendo nomeado por Sancho). Ocorre que o paladino de Calvino tem feitos a contar e fama dentre seus iguais. Dom Quixote quer ser reconhecido cavaleiro, numa fantasiosa ideia que necessitaria tão somente de ser nomeado e pelejar contra inimigos imaginários, como a célebre passagem dos moinhos de vento. (Gigantes em sua errônea concepção). Tem como elmo uma bacia de barbeiro, uma armadura de lata e um rocim velho e magro que foi rejeitado até pelo vilão que furta o jumento de Sancho.  O desumano herói oco recebe as glórias por seus feitos, o humano e cômico da Triste Figura é recompensado com pedradas pelos que tenta salvar das Galés.

Na paródia Quixotiana, a sátira está em fazer de fábula o real e a de Calvino está de fazer o real de fábula. A última foi escrita por uma freira (no final revelada a linda e valente guerreira Bradamante) a de Dom Quixote, por inúmeros escritores que contaram os feitos “heroicos” desse desastrado cavaleiro. Agilulfo não tinha um amor por quem suspirar, enquanto Dom Quixote criou para si uma donzela a quem dedicar seus feitos: a Dona Dulcinéia del Tolboso, informando mais tarde tratar-se de  Aldonza Lorenzo uma simples camponesa de El Toboso. O amor é um sentimento que humaniza Dom Quixote, muito embora esse venha a ser inventado. Enquanto o fato de não poder amar separa o Cavaleiro Inexistente do gênero humano. O burlesco está representado pela união de dois cavaleiros não convencionais como o são, cada um de sua maneira, Dom Quixote e Agilulfo, a escudeiros tão pitorescos como Sancho Pança e Gurdulu. Afirma Micali:

“Semelhante a D. Quixote e Sancho, Agilulfo e Gurdulu formam um par cômico (carnavalesco) na história narrada, o que se deve, em grande parte, ao contraste físico e comportamental entre um e outro. Especialmente o personagem Gurdulu, por não ter consciência da própria existência, age de maneira extravagante, uma vez que desfruta de liberdade total, não obedecendo a quaisquer regras ou convenções sociais, justamente em oposição ao seu amo, Agilulfo, que vive estritamente de acordo com os preceitos éticos da cavalaria.” (MICALI, 2008, p. 05).

 

E essa contraposição entre personagens faz de ambas, obras satíricas que ironizam a realidade e as histórias de cavalaria em que se baseiam. Mas há sempre o contraponto, a âncora com a realidade que surge dos personagens do padre e do barbeiro que tentam trazer lucidez para o desvairado Cavaleiro da Triste Figura, e também de Torrismundo que duvida dos feitos do Cavaleiro inexistente, conforme fica claro no seguinte trecho: “Que nada. É tudo história... Não existe ele nem as coisas que faz e nem aquelas que ele diz, nada, nada.”(CALVINO, 1993, p.66). O padre e o barbeiro promovem a queima dos livros que enlouqueceram seu amigo. Torrismundo, o fim de Agilulfo. São esses personagens que tentam subjugar a fantasia nessas duas obras. O homem que existe, se dá conta de sua sandice e o que não existe, que jamais existiu. Esse é o fim dos cavaleiros, dois paladinos da justiça destruídos pelo peso da realidade.

Micali tece uma comparação entre os dois cavaleiros realçando as divergências aqui relatadas:

“Uma comparação entre Quixote e Agilulfo revela uma oposição frontal entre ambos, uma vez que o primeiro é tido como um cavaleiro de carne e osso, i.e., “real” – mesmo considerando o fato dele, estando no plano da realidade, viver mais no mundo da imaginação, ou melhor, no “mundo da lua” –, enquanto o segundo “vive” somente no mundo das coisas concretas, exatas, palpáveis, do mundo real e histórico, embora ele próprio seja pura ficção, uma vez que não existe de fato. Mas, enquanto D. Quixote acredita em bruxas, feiticeiros e nigromantes com seus encantamentos traiçoeiros, Agilulfo é movido apenas por raciocínios lógicos, exatos e imparciais, mostrando-se um cavaleiro objetivo, preso à mais pura realidade.”(MICALI, 2008, p. 07)

 

O humano e o inumano se antagonizam. Um vive na fantasia e se perde no mundo das coisas impalpáveis, enquanto o outro, que não vive sequer, está preso à realidade e exatidão da razão. Também seus escudeiros se rivalizam. Um finge acreditar nas loucuras de seu amo em função da ínsula que pretende receber enquanto o outro nem sabe se está a seguir Agilulfo, tão insano o é. Muitas vezes se afasta de seu amo, pois com frequência perde o caminho, devido às distrações de sua mente inconsequente. Somente se igualam estes dois singulares escudeiros no tamanho de sua barriga e apetite. Essas discrepâncias e semelhanças contribuem para o diálogo entre as duas obras. Há uma intertextualidade veemente, é certo que uma obra reporta a outra. Talvez tão somente por culpa de Calvino, tendo em vista que Cervantes não poderia conhecer O cavaleiro inexistente do italiano.

O fato é que atualmente não há como ler um desses livros sem se reportar automaticamente a outro. A racionalidade e a loucura, a fantasia e o real. São estes os contrapontos que restam após a leitura e a reflexão dessas obras. Ocorre que não se consegue separar essas características tão discrepantes, que se fundem no decorrer dessas histórias. Não há como discernir entre elas e fica patente que essa era mesmo a intenção dos autores. Conforme a narradora do Cavaleiro inexistente inventada por Calvino ressalta: “[...] ao que relatam cronistas e contadores de histórias se sabe que é preciso fazer ressalvas [...]” (CALVINO, 1993, p.74).  O inumano e o humano se contrapõem, pois um está preso à racionalidade dos fatos históricos e outro lançado ao devaneio de uma vida de fantasias. Ocorre que, muito embora se divirjam nesses aspectos, a semelhança de sua busca deixa claro o necessário exame comparado das duas obras: ambos queriam a glória por seus feitos como cavaleiros. Cada um procurava isto a sua maneira. É certo que conseguiram, como comprova o presente estudo, que debate a similitude das desventuras destes grandes heróis literários.

 

 

Bibliografia:

BAKHTIN, Mikail, Questões de literatura e de estética, São Paulo: Hucitec, 2010.

CALVINO, Ítalo, O cavaleiro inexistente, São Paulo: Companhia das letras, 1993.

CERVANTES, Miguel de, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, livro I, São Paulo: Editora 34, 2010.

MICALI, Danilo Luiz Carlos, O diálogo entre Calvino e Cervantes no romance O Cavaleiro Inexistente. Disponível em http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/003/DANILO_MICALI.pdf

SILVA, Flávio Alves, A metamorfose paródica dos cavaleiros: um breve estudo comparativo. Disponível em: http://flaviodasilva.blogspot.com.br/2008/03/metamorfose-pardica-dos-cavaleiros-um.html