O HOMEM QUE QUERIA SER BURRO
Por Edevaldoleal | 21/02/2013 | CrônicasCrônica
O HOMEM QUE QUERIA SER BURRO
Para as vítimas do cigarro
Edevaldo leal
– Estás vendo aquele burro ali , menino ? – Voz pausada, cigarro entre os dedos amarelados pela nicotina, o homem apontou para o animal que pastava às proximidades da estação ferroviária da vila de Porto Platon.
. O homem esperava o trem .O trem vinha da Serra do Navio carregado de manganês com destino ao porto de Santana .De lá, o homem seguiria de ônibus para Macapá. Tinha consulta marcada . Não vinha se sentindo bem de saúde, ultimamente. Era tudo o que eu sabia. E o cheiro. O cheiro de vômito quando ele falava. Baixinho, se muito tivesse era 1,60 m . Carregava uma maleta e usava chapéu de palha inclinado para trás, deixando bem à mostra o rosto que começava a enrugar. Um homem da roça. Simples, podia-se ver. Falava com certa correção gramatical e isso eu percebi logo ,mesmo com minha pouca formação escolar de aluno ainda não saído da escola primária.
– Estás vendo aquele burro, menino? – repetiu o homem, prendendo a pergunta no peito, como fazia com a fumaça do cigarro, antes de jogá-la no ar.
Naquela época – e já lá se vão quantos anos ? – o que eu mais queria era vender meus beijus de tapioca ao leite de coco que meus pai fazia e que eu, malabarista de tabuleiro equilibrado na cabeça, vendia na estação ferroviária, para reforçar o parco orçamento doméstico de uma família de onze pessoas. No segundo beiju, hoje transformado em tapioca ( ainda prefiro dizer beiju , pronunciado em voz baixa, para evitar incompreensões), o homem desabou em vômito. Como um relâmpago,ainda tive tempo de tirar o corpo fora, como se dizia naqueles tempos para a girada de corpo de quem se desvia de algum objeto indesejado. A rodilha na cabeça segurou bem o tabuleiro.
Na minha inocência de menino da roça, eu pensei que a tapioca fizera mal ao homem. Ao mesmo tempo, eu me indagava: como pôde ser a tapioca, se ninguém jamais reclamara e meu tabuleiro nunca voltou vazio ?
– Vá lá, menino, e me diga se não tem sangue naquele vômito?!
O homem acendeu outro cigarro e eu me afastei dele , com nojo. Uma brisa forte me refrescou o rosto . A estação, construída pela companhia que explorava o manganês de Serra do Navio , era dividida em dois espaços de espera. Fui para o lado que fazia frente para os trilhos e lá vendi os últimos beijus.
Em pé, uma perna em descanso , o tabuleiro debaixo do braço, eu me preparava para enfrentar a rodovia da fazenda Campo Verde , quilômetros de distância em retorno à roça, a pé.
– Ei, menino! – Me chamou o homem, que expelia fumaça de cigarro pelo nariz e, mais uma vez , a mesma referência ao burro:
– Estás vendo aquele burro ? – Insistiu o homem, que continuou:
– Aquele burro, menino, é mais inteligente do que eu. Eu estou com o estômago perfurado por feridas malignas que este maldito cigarro me provocou. Este vício é tão amaldiçoado, que, por mais que tente, não consigo me livrar dele. Sou um escravo , um escravo do vício. Eu queria ser aquele burro, menino. Ele não fuma e está livre, comendo o capim que quer. Tu olhas para ele e vê saúde, vigor. E a quantas pessoas ainda vai ser útil ? Se fosse possível, juro, fazia uma troca. Ia ser burro, mas sem cigarro e sem câncer.
Durante o tempo em que frequentei a estação, por mais uns três anos, até irmorar em Macapá, não vi o homem outra vez. Torço para que ele seja aquele burro que eu vi ontem próximo à rodoviária de Marapanim. Devia ser ele, sim. E penso que me reconheceu. Que burro relincharia três vezes, com a cara voltada na minha direção, fazendo gestos com a cabeça, como se quisesse conversar comigo ?
20 de fevereiro de 2013.