O Homem Da Máquina
Por Leandro Rodrigues | 17/01/2008 | ContosRobério tinha pouco mais de cinqüenta anos de idade quando se deu o acontecido. Passaram-se mais de meses sem que a cidade falasse em outra coisa. Hoje, anos depois do fato ocorrido, sua estória é apenas um caso corriqueiro que apenas os bem idosos se lembram como digna de prosa.
Para falarmos do fato que tanto mexeu com a cabeça da cidade (cujo nome não revelarei, com o intuito de evitar dissabores e não tirar o privilégio do leitor de imaginar, visto que a imaginação é um dos maiores prazeres da leitura), é necessário tratarmos antes da vida do homem.
Robério viveu na tal cidade desde que nasceu. Bom menino, sempre se aplicou nos estudos e quando rapaz nunca foi de extravagâncias, prova disso é que após dois anos de relacionamento casou com Eugênia, sua primeira namorada. Quanto à profissão, nunca teve problemas em escolher: seu pai, o tenaz comerciante Álvaro Tostão era dono do “Empório Espartano” e Tostãozinho sabia desde tenra idade que seria o sucessor e prosseguidor dos feitos do valoroso pai. Portanto, a vida correu-lhe sempre de forma previsível, linear como um domingo chuvoso. Até que um dia, por volta de seus vinte e dois anos, ele descobriu a tal máquina.
Ninguém sabe explicar ao certo como foi. O que se sabe é que um belo dia (talvez não estivesse nem tão belo assim, mas sabe como é a mania do povo de adjetivar tudo), o, já então, dono do empório apareceu transbordando de alegria com a tal máquina. Passou o dia admirando o encantador objeto e mostrando aos amigos (sempre teve poucos) que apareceram por lá, fazendo questão de realçar suas qualidades e utilidades. Chegou a dizer que aquilo equivalia ao retorno de D.Sebastião. Em casa não falou de outra coisa com Eugênia e chamou o filho para apresentar-lhe o novo membro da família. Dizem as más línguas, que sua alegria naquele dia foi tanta a ponto dos gêmeos, David e Golias, terem sido gerados durante a noite, num espasmo de alegria que acordou três vizinhos e um galo.
Daí em diante a vida de Robério Tostão mudou. Como que hipnotizado, ele não largou mais a máquina um só minuto. Passava o dia inteiro cultuando-a, a ponto de negligenciar completamente os afazeres do empório e esquecer a família. Não foram poucas vezes em que foi surpreendido, nas primeiras horas do dia, ainda com a mesma roupa do dia anterior e vidrado na tal .
Quando os gêmeos nasceram, seis meses depois de gerados, ele recebeu a notícia sem tirar os olhos da dita cuja. E quando eles morreram, Golias viveu quatro dias e David seis, ele chorou abraçado na sua companheira extraconjugal. Eugênia, em um primeiro momento tentou trazer-lhe de volta pela razão. Esgotados os argumentos, partiu para a fé: fez promessas para todas as qualidades de Nossa Senhora, fez vigílias em templos evangélicos, consultou búzios e dois meses após um despacho nos trilhos do trem, decidiu pedir a separação. Não podia mais conviver com um homem que relegava a família a um segundo plano e vivia exclusivamente para a bendita máquina.
O marido aceitou de pronto a idéia e ainda colocou o empório à venda. Pediu à esposa que o deixasse morar na garagem, com a sua máquina, e dividiu o dinheiro do empório entre ela e os filhos. Eugênia aceitou servir-lhe duas refeições por dia, de modo que a parte dele na venda seria usada apenas para a conservação de sua relíquia.
Os anos passaram-se e Robério Tostão quase nunca foi visto longe de sua preciosidade. Quando Eugênia, monofóbica como tantas, casou com Charles (dizem por aí que os dois já andavam de caso quando ela ainda estava casada) e decidiu-se mudar para uma casa mais ampla e melhor localizada, ele não se moveu do seu refúgio.
Sua vida resumia-se a máquina. Era ela a emoção de seus prantos, a causa de seus risos, a fonte de suas preocupações, a razão de suas noites mal-dormidas. As crianças da vizinhança puseram-lhe o apelido de ”homem da máquina”, nome pelo qual certamente ouviam os pais se referir ao antigo dono do empório, e sempre que alguém o encontrava pela rua tratava de fazer algum comentário relativo ao alvo de sua adoração.
Foi na época do casamento de seu filho Juscelino que se deu o acontecido:
Robério não respondia mais aos amigos que lhe visitavam. Seus movimentos e reações eram sempre obedecendo aos comandos da máquina. Quem percebeu isso com mais astúcia foi Teodoro, amigo que morara muitos anos em Frankfurt, dizendo que a tal máquina havia absolvido totalmente a alma do pobre homem. Na época todos disseram que o “alemão” estava exagerando e que o comerciante apenas valorizava aquilo que conseguira adquirir como fruto de seu trabalho suado. Porém, as “rabugices” se concretizaram: só quem movimentava Tostãozinho era a máquina que ele julgava ser dono.
Foi nesse estado que o filho o deixou depois de entregar o convite de seu casamento. Pai e filho mal conversaram durante a visita. O pai totalmente submerso no mundo da máquina que naquele momento era o dele também e o filho tentando encontrar uma forma de se integrar ao “mundo-máquina”, apostando que assim poderiam se entender. Que nada! Juscelino saiu abatido, como se a sua raiz, a pessoa que lhe trouxe ao mundo nunca tivesse existido, como se a família Tostão fosse apenas um veículo para viabilizar a missão da máquina na Terra.
Dois meses depois, quando voltou à garagem, encontrou tudo como deixara. Exceto o pai. Abriu a porta e viu a máquina que jazia solitária no seu lugar de sempre. Em nenhum canto da tal garagem havia indícios da existência de seu progenitor. Quem entrasse ali naquele momento juraria que apenas a máquina vivera naquele lugar. Robério fora engolido, apagado de sua existência. Desaparecera para sempre e ninguém sabe como. O homem havia sucumbido aos delírios. Partiu de vez para o falso mundo prometido pela sua musa. O filho, perplexo, olhava para a Melpómene do seu criador, sem saber qual era o papel de quem naquela confusa trindade. Atônito, riu e chorou o destino dos Tostões.
Hoje em dia, nenhum membro da família Tostão reside na cidade. Juscelino emigrou, fazendo assim o caminho de volta do velho Álvaro. No endereço do empório existe uma franquia de lanchonete internacional e a casa, onde na tal garagem deu-se o misterioso sumiço, deu lugar a uma loja de departamentos.
Algumas entidades religiosas tentaram transformar o sumido em mártir, outros chegaram a psicografar mensagens com a sua assinatura e houve até vigílias para que o demônio que se apossou do desaparecido não tomasse conta do local. Estudantes levantaram teses e sociólogos escreveram artigos, à luz de teses que lhe garantissem notoriedade (muitos que pregaram o quão pernicioso era a relação do homem com a máquina, hoje a defendem sob o argumento de que os tempos são outros).
Se o homem ainda é lembrado deve-se a máquina. Quem for a tal localidade, constatará que a tal, hoje popularizada, exerce o mesmo fascínio em quase todos os moradores e o acontecido com a família Tostão é, quando muito, um assunto pueril.