O GUARANI E MACUNAÍMA: Retratos do brasileiro
Por Rafael Francisco Bento | 01/02/2013 | Literatura* Artigo escrito com a colaboração de Elba dos Santos Silva Martins
Resumo:
Este trabalho objetiva uma comparação entre os livros O Guarani de José de Alencar e Macunaíma de Mário de Andrade, o primeiro pertencendo ao período literário do Romantismo e o segundo ao da primeira fase do Modernismo no Brasil.
A comparação ressaltará aspectos da vida dos escritores, as características dos personagens principais e a linguagem empregada em ambos os livros, além dos enredos e as questões religiosas presentes. Isso tudo visando estabelecer semelhanças e diferenças entre essas duas importantes obras, esses retratos do povo brasileiro, que despertam, mesmo hoje, depois de tanto tempo desde suas publicações, interesse e paixão em muitos leitores.
PALAVRAS-CHAVE: Estudos Comparados; O Guarani; Macunaíma
O GUARANI E MACUNAÍMA:
Retratos do brasileiro
José de Alencar, escritor e político nascido em Mecejana, perto de Fortaleza, em 1829, e falecido em 1877, vítima de tuberculose, no Rio de Janeiro, está no centro do Romantismo no Brasil, devido sua vasta e diversificada produção literária. O Guarani foi o seu primeiro maior sucesso, publicado em 1857, originalmente em folhetins e depois em livro. Essa obra é bem à moda do período, pois nela se encontram elementos próprios dos romances românticos brasileiros, a saber, o cenário paradisíaco e o herói indígena, além disso, é claro, seguindo os modelos europeus, há, ainda, a presença do amor servil e de algumas aventuras fantásticas.
Esse livro de Alencar, comparar-se-á, aqui, a Macunaíma de Mário de Andrade, publicado em 1928. Redigido em pouquíssimo tempo, essa obra, chamada de rapsódia pelo próprio autor, trabalha intensamente o folclore, as lendas nacionais. Sobre o escritor, Mário de Andrade, o “Papa” do Modernismo, nascido em 1893 em São Paulo e também falecido lá em 1945, é importante dizer que foi uma figura excepcional que deixou à posteridade uma série de produções de alto valor, tendo cultivado quase todos os gêneros da literatura.
Nesta análise comparativa, interessa também o enredo de cada obra. Assim sendo, a história de O Guarani, dividida em quatro partes, traz um fidalgo português, Dom Antônio de Mariz, em conflito com índios aimorés e que tem de enfrentar ao mesmo tempo um levante de seus próprios empregados, por sua vez, liderados pelo vilão Loredano, um ex-frei italiano que deseja também a filha do velho fidalgo, a jovem Cecília. Porém, a família de Dom Antônio firma amizade com um valente índio goitacá, Peri, que é embevecido pela beleza da angelical Cecília, sua amada. Dessa forma, ele a salva de muitos perigos, durante o romance, até o desfecho, quando o pai da moça, diante da guerra que se intensificava com os aimorés, pede ao audaz goitacá, convertido cristão, que aceite o encargo de levá-la para longe da sangrenta batalha, da qual não sobreviveu ninguém da casa de Dom Antônio. Vale ressaltar que em O Guarani, o brasileiro é representado pelo protagonista Peri, portanto, de forma idealizada.
A trama de Macunaíma, por sua vez, assinala muito mais o verdadeiro modo de ser do brasileiro, pois, o anti-herói, filho de uma índia da tribo dos tapanhumas, desde muito cedo já revela seu caráter, não fala palavra alguma, a não ser aos seis anos, quando repete continuamente a seguinte frase: “Ai, que preguiça”. E assim, cresce Macunaíma, sendo o mais novo, porém o mais esperto dos irmãos Jiguê e Maanape. Com a morte da mãe, o “herói de nossa gente”, e seus irmãos, parte mundo afora. A certa altura, ele encontra Ci, a Mãe do Mato, rainha das icamiabas, e com a ajuda dos irmãos, Macunaíma a possui e torna-se o imperador do Mato-Virgem. Ci dá-lhe um filho, que logo morre, angustiada a Mãe do Mato entrega a Macunaíma um amuleto, a muiraquitã, sobe aos céus e se transforma na estrela Beta do Centauro.
A muiraquitã é perdida numa das aventuras do herói e para reconquistá-la ele empreende viagens, vai para São Paulo, descobre que Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, é o novo dono do talismã, luta, sofre, mas, consegue tê-la de volta. Partindo, em fim, com os irmãos para a região do Uraricoera. Quase ao cabo da viagem, cheia de acontecimentos, Maanape e Jiguê morrem. Triste, Macunaíma joga-se em uma lagoa, onde é atacado por piranhas, perdendo novamente a muiraquitã. Amargurado, o herói sobe aos céus e se torna a constelação Ursa Maior.
Nessa obra, Mário de Andrade retratou uma linguagem bem brasileira, tendo reunido várias expressões indígenas e populares, “[...] – Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não [...]”, além disso, criou, num tom irônico, mitos para gestos como o da “banana” e para expressões como: “Vá tomar banho!”, que, segundo o escritor, os brasileiros a usam se referindo a certos imigrantes europeus.. A pontuação é escassa, principalmente as vírgulas, e o livro traz muitas palavras desconhecidas, mas que são facilmente compreendidas no decorrer da leitura. Vale lembrar de que Alencar, ao buscar consolidar uma literatura verdadeiramente nacional, também inovou com a linguagem, muitos anos antes de Mário de Andrade, usando expressões indígenas e até se afastando dos padrões da língua portuguesa, o que gerou muita polêmica, mas, dotou suas obras de maior brasilidade.
Sobre isso é importante observar a colocação proclítica de pronomes oblíquos em posição inicial de oração, frequente em O Guarani e muito comum à fala do brasileiro, mas que foge a regra prescrita pela gramática normativa, qual em “[...] – me cedereis uma parte dos nossos homens [...]”, “[...] – Merece uma reprimenda: lha darei e forte. [...]”, e ainda, “[...] a pena vindo de vós será para mim um consolo. Mo negareis? [...]”.
Como não poderia ser diferente, a religiosidade aparece em ambas as obras, sendo o cristianismo valorizado em O Guarani, o que é coerente tanto com a época em que se passa a história (século XVI), quanto com a época em que essa foi escrita. Primeiro, porque antigamente existia um profundo espírito de devoção a Igreja Católica e afins e, segundo, porque o sentimento religioso se fez presente no estilo romântico do século XIX. Para exemplificar, o que se seguirá é um fragmento do VII capítulo, intitulado “A Prece”, da Primeira Parte de O Guarani, em que a própria natureza parece ser cristã:
[...] “Era a Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!” [...].
Em Macunaíma, o herói frequenta macumbas e diz acreditar em várias seitas, de acordo com as situações que lhe vão surgindo e suas necessidades. Para comprovar, segue um fragmento do capítulo VII do livro, em que o “herói de nossa gente” pede a Exu, em um terreiro, que dê uma lição no gigante Piaimã:
[...] “E o herói pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.
Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar”.[...].
Quanto aos heróis, percebe-se que Peri é um símbolo do orgulho nacional, advindo da Independência política do país, pois é nobre de espírito, corajoso, leal, em outras palavras, é apresentado numa ótica ufanista e utópica. Sua fala é cheia de metáforas e comparações, “[...] – Peri, só, defendera sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel o veneno das setas; como o tigre a força de seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. [...]”.
O índio, entre outras façanhas, recupera um bracelete de Cecília que caiu em um abismo cheio de cobras, captura uma onça viva só para levá-la à sua senhora que desejava ver essa fera, exemplos de seu amor servil, e ingere veneno na tentativa de matar todos os aimorés, os selvagens inimigos da casa de Dom Antônio, que o preparam para um ritual antropofágico. Sua força e coragem fariam inveja para muitos heróis mitológicos, já que assim, Peri seria capaz de galgar até o Olímpo.
Ao contrário de Peri, Macunaíma é negativamente descrito, como “o herói sem nenhum caráter”, desde o título. Ele também, além de preguiçoso, se mostra extremamente esperto, especialmente quando os assuntos são a caça e as mulheres de seu irmão Jiguê. Macunaíma possui, ainda, poderes mágicos, transformando, por exemplo, pessoas em objetos e vice-versa, [...] “Então virou Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante (Piaimã) e xingou a mãe dele.” [...].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Indiscutivelmente, muitas são as diferenças entre O Guarani de José de Alencar e Macunaíma de Mário de Andrade, o que não poderia deixar de ser já que essas obras foram escritas em épocas e, consequentemente, em estilos, escolas literárias diferentes.
Contudo, há uma semelhança importantíssima, pois, tanto um quanto outro escritor procurou valorizar o nacional, o brasileiro e seus modos de ser, de agir. O romântico, aqui estudado, tematizou o indígena e suas expressões, trabalhou a natureza e inovou com a linguagem, aproximando-a do falar do povo, enquanto o modernista, criador do “herói de nossa gente”, explorou o folclore, os mitos do Brasil, a cultura indígena, e mais ainda que o primeiro, a língua falada. Dessa forma, pode-se afirmar que ambos romperam com os padrões que moldavam seus tempos.
BIBLIOGRAFIA
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