O GRITO DE ''CIDADE DO SILÊNCIO'' É UMA BOFETADA

Por João Valente | 13/04/2010 | Arte

O GRITO DE "CIDADE DO SILÊNCIO" É UMA BOFETADA

Uma vítima que foge de uma cena de horror e tem uma estranha história para contar pode ser uma providência de Deus para mostrar o quanto vale a "fé-cega".

FILME "CIDADE DO SILÊNCIO": Com base no mistério de uma ressurreição sem nenhuma prova, exceto a testemunhal, pela qual a vítima alega ter voltado do Além e todo mundo precisa acreditar nela.

Havia uma descrença geral: nos homens, que jamais acreditavam que um dia iriam ser punidos, já que até os chefes policiais poderiam estar envolvidos nos mesmos crimes, ou em situações comprometedoras com os políticos que os nomearam; nos estrangeiros, porque nem chegavam a acreditar nas histórias das mulheres ou mal acreditavam que tais crimes existissem como elas diziam, "a céu aberto"; nos cidadãos da cidade, porque o silêncio sobre o fato impedia que uma calamidade daquelas, vista somente em filmes e novelas, pudesse sair do pesadelo de uma estuprada e se tornasse real, logo na sua cidade; nas mulheres, que já haviam cristalizado a descrença na punição dos criminosos, pois elas sabiam, por experiência pessoal, que os crimes eram praticados sem nenhuma testemunha, e as raras que viam alguma coisa, à distância, preferiam calar a ter pesadelos com suas filhas e sobrinhas.

É este o enredo básico do filme "Cidade do Silêncio", o qual servirá como pano de fundo de uma reflexão sobre a fé, nesta hora em que as mesmas descrenças insinuam brotar em todos nós, filhos e filhas da mais violenta geração de que se tem notícia.

O filme conta a história de uma cidade mexicana onde era comum e constante o assédio e o abuso sexual contra qualquer mulher, com as raras exceções das esposas dos estupradores, dos policiais e políticos mantenedores do Establishment em vigor, e talvez somente enquanto elas ficassem em casa, ou durante o dia no trabalho, ou no comércio, ou enquanto andassem com seus maridos a tiracolo. Afora isso, elas mesmas não estavam cem por cento seguras de não serem novas vítimas, às vezes de outros policiais ou dos próprios guardas contratados para protegê-las. Este era o quadro e o caos reinante no lugar, até que um dia um fato novo aconteceu.

Uma das vítimas, Eva Jimenez (Maya Zapata, no papel de uma linda adolescente mestiça de 16 anos), conseguiu, mas apenas por obra de um milagre, escapar da morte pós-estupro, numa verdadeira ressurreição, porquanto fora largada sangrando no meio do nada, desacordada e tida por morta, com uma tempestade de areia do deserto a cobrir-lhe o corpo por inteiro. Dias se passaram e, se alguém lhe contasse, do outro lado, o que iria acontecer, ela própria não creria, salvo engano. Só há uma explicação para o ocorrido: o sofrimento daquelas mulheres subiu aos céus e Deus se condoeu delas, decidindo operar o milagre da ressurreição de uma jovem senhora, vítima de um motorista de ônibus acostumado a estuprar e ficar livre.

Quando ela reapareceu abatida, suja, com respiração difícil, com síndrome de pânico e mal cheirosa, nem pôde contar a sua história até que tivesse, ela mesma, segurança de haver entendido o que de fato se passou, para poder convencer a outras pessoas de onde e como chegou ali. Isto, para o espectador mais espiritualizado, não é apenas a mola-mestra, mas o sólido alicerce sobre o qual se assentam todas as demais lições-denúncia deste filme de ousada proposição; a saber, pôr às claras a crueldade humana, mormente a masculina contra as mulheres, e tudo leva a crer que a "autoria" (o filme é real e origina-se do relato pessoal da vítima), a direção e toda a produção não devem ter encontrado caminho fácil para fazê-lo, a julgar pelo gritante desnudamento público dos males da globalização e do "livre comércio".

Na continuação, a história registra o envolvimento de uma corajosa jornalista americana (protagonizada por ninguém menos que a linda Jennifer Lopez, no papel de Lauren Adrian) que tem o ápice de sua virtude pessoal e profissional quando ACREDITA piamente na história daquela Eva vítima, fazendo-nos até recompor a esperança de que alguma coisa de valor ainda exista na Humanidade e nos podres poderes da imprensa mundial. Com sua história de vida assemelhada à da vítima (ela contou ao seu patrão, o grande Martin Sheen, "George Morgan", que ela mesma poderia ter acabado numa fábrica de Juarez), busca ajuda em um velho namorado, Alfonso Diaz(Antônio Banderas, num raro momento de sua cinematografia onde não usa armas), que reluta em alterar o status quo, reduto machista e politiqueiro do México, num lugar tão pobre e infernal quanto as favelas de "District 9" ("Distrito 9").

No decorrer de sua busca por ajuda à vítima e a todas as mulheres da "Cidade do Silêncio", Lauren encontra-se com ninguém menos que Teresa Casillas (a sempre linda e brilhante Sônia Braga, nossa eterna Gabriela), que a princípio reluta em ajudar pela mera teimosia da descrença geral da desesperança – a única que acreditou na história ANTES de ver a vítima foi LOPEZ, e Sonia Braga só acreditou que a situação era real depois que viu Eva Jimenez olhar as fotos dos agressores e chorar com duas elas (foram dois os estupradores).

O filme, portanto, é um libelo contra a violência sexual de homens (animais) contra mulheres, as quais, além de perder suas terras para os altos impostos de governos mancomunados com proprietários espúrios, ainda tinham que trabalhar no mínimo 8 (oito) horas de exploração, em expediente duríssimo de produção em série de máquinas e equipamentos eletro-eletrônicos.

Os dizeres e os créditos ao final confirmam a veracidade da história e o destino das personagens centrais, após a prisão e morte respectivas dos dois agressores de Eva. E ainda encerra com a inquietante denúncia de que aquela situação infernal ainda se mantém (as fábricas ainda estão lá), com a mão-de-obra barata e explorável das mulheres sofredoras de Juarez e outras tantas cidades de um México-corrupto, um belo país que sobrevive à custa da exploração que os Estados Unidos fazem das republiquetas latino-americanas.

A lição da importância da fé ressalta aos olhos, e aqui ela se auto-explica dos dois modos mais desconcertantes da experiência espiritual: é preciso crer sem ver, ou antecipadamente, e crer contra a esperança (mesmo que bruxuleante diante dos fatos dolorosos capazes de miná-la, tal como a criança perde o rumo e a saúde mental quando não pode mais crer nos pais – como deve ter ocorrido – Deus queira que não – com os filhos restantes do casal Nardoni). Se alguém contar que escapou de um estupro/estrangulamento, executado em pleno deserto, a atitude agora é a da crença. É isto que "Cidade do Silêncio" nos recomenda, com razões mais que humanistas, ou seja, divinas.

Prof. João Valente de Miranda (eatjvs@gmail.com).