O genoma da fé

Por Ivani de Araujo Medina | 02/06/2010 | História

O genoma da fé

Ao contrário da conhecida máxima de Sócrates, "Só sei que nada sei", só sei que muito se sabe e que só a mudança não muda como pensava Heráclito. Um pouco desse muito que se sabe sempre coube àqueles que buscaram por meios próprios as próprias respostas, como o próprio Sócrates. Isso para o desagrado da ideologia da crença que defende a tese de que o Homem precisa ser enganado para reagir positivamente. Por sua vez, a mudança é inexorável no universo, como pensava Heráclito, queiramos ou não.
Entre as idéias em eclipse, Deus e deuses, concordo com o seguinte pensamento de Bowra ─ grande historiador da cultura helênica ─ "Os deuses não revelam todas as coisas, desde o princípio, aos homens, mas os homens através do estudo chegam a seu tempo a melhores conclusões. [...]. A verdade exerce uma atração própria e tem as suas exigências para com os seus servos, como Demócrito sentiu, ao dizer que preferia descobrir a razão de ser de uma só coisa a possuir o reino dos Persas."
Quem eram esses caras chamados deuses? Será que um dia o homem primitivo resolveu chamar de deus o clarão de um relâmpago ─ deus significa brilhante ─ e interpretou o som do trovão como um pito divino? Será que o gênero Homo fez uma convenção intercontinental para que hoje a antropologia chegasse a tal entendimento? Claro que não. Todas as lendas falam dos poderes desses seres celestes diante do Homem e mesmo sobre as forças da Natureza. Estão estampados em cavernas, lhes são atribuídas obras misteriosas e estão presentes em todas as religiões de todos os povos.
E Deus? Por incrível que pareça Deus é mais jovem na mitologia celeste. Surgiu com sua grandeza para encobrir a pequeneza dos deuses e o mau exemplo que davam a Humanidade. Ridicularizar a verdade é o primeiro movimento em defesa de Deus. O medo do ridículo acaba por afastar a muitos que se perguntam sobre a sabedoria que permeia o universo. Mas quem não se pergunta? A pergunta é perfeita, o problema cabe a explicação ou a idéia que fundiu o deus cultural com a grande questão do universo para "resolver" o assunto.
Assim a referida máxima socrática, que certamente não aludida à história, parece cair como uma luva na mão mais habilidosa da cultura dominante. O tabu, que é a religião, prefere que tudo fique como está. Funciona na defesa de um suposto pacto de fidelidade com o deus cultural ou aqueles com os quais ela aspira religar a Humanidade. Aqueles que, segundo ela mesma (religião), criaram os nossos ancestrais remotos às suas imagens e semelhanças para servi-los como escravos e adorá-los para sempre como o Senhor dos céus. Pelo menos, é o que nos conta a página número um da história, na Mesopotâmia.
A fidelidade a esta indefinida estirpe celeste recebeu a designação de "monoteísmo" e eles o epíteto de "Deus". Outras estirpes também andaram e andam por aqui. Podem todos negar de pés juntos porque essa negação não vai mudar nada. Nada se resolve pela ação do medo e da ocultação. Refiro-me às nossas dificuldades aparentemente insolúveis. O Homem precisaria ser desconstruído e reprogramado para que essa providência oriunda de práticas primitivas alcançasse o desejado resultado, isto é, a absoluta submissão inconsciente das massas e de todas as classes. Nunca deu certo porque muitos escapam desse envolvimento, mas, mesmo assim, a ideologia da crença continua tentando. Enquanto isso se vai freando o progresso humano onde ele é mais necessário: no conhecimento e na compreensão de si mesmo, como também defendia Sócrates.
É dispensável discorrer sobre os motivos da conveniência da ignorância, hoje, travestida de necessidade e sabedoria popular. Perversamente é aí que esse interesse mal-são vai se justificar. Porém, a sabedoria popular sempre foi inequívoca, prática, clara e, sob alguns aspectos, graciosamente descomplicada. Vide frases de pára-choque de caminhão. Tanto que o termo de origem latina, "pagão", vem de "paganum" que significa aldeia. Os aldeões europeus (povos da floresta) eram infensos ao processo de civilização sob a tutela urbana cristã. Mesmo depois da vitória da civilização religiosa, muitas práticas populares consideradas indesejáveis ou reprováveis, pela Igreja, persistiram na história. Como o aborto, por exemplo. A indústria da ingenuidade sempre foi próspera, prestigiosa com os seus defensores e rigorosa com seus adversários. Preservar a ignorância lhe é fundamental.
Como subproduto de uma manipulação genética não é difícil ao Homem concluir que a tecnologia é a ponta da lança da sua verdadeira herança divina. Ela vem prolongando a vida humana, decifrando seus códigos, trazendo mais conforto e criando soluções para que o saldo negativo dessas conquistas se incorpore ao aprendizado. Não como filho do criador do universo nem como filho "daquela", o Homem colocou um pé na Era das Comunicações e ainda não concluiu o primeiro passo. Ele é o que lhe foi possível e não foi pouco. As sociedades da Era das Comunicações serão muito diferentes daquelas em que a ideologia da crença preponderou. Está-se virando uma página da história da Humanidade. O código genético da fé também há de ser decifrado, fazendo com que esse valioso recurso psicológico seja disponibilizado com mais seriedade no futuro próximo, esvaziando o exclusivismo e a agressividade da mentalidade tribal ainda hoje alimentada pela ideologia da crença.