O gênero memória como instrumento no ensino e aprendizagem da língua portuguesa na eja

Por Roseli Gonçalves | 28/10/2011 | Educação

INTRODUÇÃO

 

 

A educação de jovens e adultos –EJA constitui-se em uma historicização bastante complexa que contribui para a presença de muitas pessoas analfabetas ou com baixa escolarização. Nesse sentido, é preciso que os educadores aprofundem seu conhecimento sobre a Educação de Jovens e Adultos-EJA  para conduzir o processo de letramento desses alunos com vistas á leitura.Isso envolve uma concepção de ensino que contribui para a formação de leitores mais críticos e autônomos que fazem uso social da leitura, com vistas às práticas sociais transpostas para a sala de aula.

De acordo com lingüistas e historiadores da língua, a fala é o meio linguístico essencial dos seres humanos, dessa forma, no que diz respeito a produção oral dos alunos da EJA a função do professor é incentivá-los a produção discursiva, exibindo-os com comentários positivos sobre sua fala.Assim sendo, o professor informa aos alunos a importância da escrita, esclarecendo que, ao registrar um pensamento por meio da  escrita, ele perdurará no tempo atravessando grandes distâncias, por isso a escrita tem que obedecer a certas regras e organização.

Segundo o PCN ( 2000 p. 22) a escola não pode garantir o uso da língua fora do seu espaço, mas deve garantir tal exercício de uso no seu espaço, como forma de instrumentalizar o aluno para seu desempenho social. O professor exerce função importante no processo de inserção sociocultural, pois vem dele a atitude  de promover, no aluno, o entrelaçamento entre os conhecimentos de mundo e linguísticos.  Portanto, o objetivo é trazer reflexões acerca do papel do ensino de Língua Portuguesa para a efetiva inserção do indivíduo no seio de uma sociedade letrada.

Neste contexto pensar em formas que possibilitem esses alunos a sentirem-se incluso na sua própria aprendizagem é de essencial importância. A partir da leitura do mundo o aluno pode compreender a realidade em que está inserido e chegar a importantes conclusões sobre a sua realidade e os aspectos que o compõem. Para Freire (2000, p.39), “a leitura é um processo que não se esgota na decodificação da palavra escrita”, mas se alonga na leitura do mundo que precede a leitura da palavra, linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Portanto, a compreensão do texto a ser alcançada pela leitura implica a percepção das relações entre texto e contexto.

Constantemente ouvimos debates e discussões sobre como o ensino está defasado, que a escola não está conseguindo absorver as mudanças principalmente relacionadas ao desenvolvimento das tecnologias. Professores que teimam em continuar usando métodos apelidados de tradicionais não abrem mão de seu principal recurso a exposição do assunto esse fato é bastante observado nas salas com alunos da EJA.

Destacamos aqui um instrumento que poderia ser presença marcante em sala de aula da EJA seriam os gêneros textuais, pois são instrumentos que fazem parte das nossas práticas sociais.  Para Marcuschi (2008), os gêneros textuais acham-se ligados às atividades humanas em todas as esferas, em alguns casos dão margens às marcas e estilos próprios em graus variáveis.

 

O QUE É UM GÊNERO TEXTUAL?

 

Em relação aos aspectos históricos dos gêneros podemos dizer que surgiram muito antes da escrita, ou seja, numa primeira fase um conjunto pequeno desses foram desenvolvidos por povos de cultura predominantemente oral e com a multiplicação dos gêneros surgiram os típicos da escrita. A partir do século XV os gêneros expandem-se com o aparecimento da cultura impressa. Atualmente com a cultura eletrônica presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita. Isto nos mostra a dinamicidade presente nos gêneros, já que estes se integram funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem, caracterizando-se por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais. Mostrando a importância de estudos que trazem suas variedades, analisando a peculiaridade funcional e organizacional, apontando aspectos de interesses para o trabalho em sala de aula.

Segundo Bronckart (1996), os conhecimentos construídos sobre os gêneros estão sempre correlacionados às representações que temos sobre as situações sociais diversas em que atuamos. E é com base nesses conhecimentos que o produtor “adota” um gênero particular que lhe parece ser o mais adequado à determinada situação.

È nesta situação adaptativa em que o conhecimento sobre os gêneros torna-se importante, pois sabendo utilizar corretamente os gêneros, facilitaria para que não houvesse erros ou uso inadequado de gêneros em dada situação, tendo em vista que todos os textos sempre se manifestam num ou noutro gênero textual, sendo que um maior conhecimento de sua funcionalidade torna-se importante tanto na produção como na compreensão de um texto.    

O gênero textual é a possibilidade de materializar e corporificar um texto, predominando naqueles os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade é importante ressaltar que os gêneros são entidades comunicativas.

Segundo Bakhtin, (1979 cita  Bezerra, 2005, p. 25) “Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidade de práticas sociais e domínio discursivo específicos”.

Para (Douglas Biber 1988) os gêneros são geralmente determinados com base nos objetivos dos falantes e na natureza do tópico tratado. Pode-se com isto dizer que os gêneros são influenciados por critérios externos, ou seja, sócio-comunicativos e discursivos.

Neste artigo abordaremos o gênero textual Memória, pois, a finalidade deste  é fazer o aluno relatar as experiências, incita a produção textual tanto dos educandos como dos educadores. Essa possibilidade provém do fato de que a compreensão e produção escrita são dimensões sociais, culturais e psicológicas que mobilizam diversas capacidades de linguagem. Dessa forma o trabalho com o gênero textual Memória  possibilita a compreensão de que os saberes da escola estão presentes no contexto da vida cotidiana.

Ao alunos da EJA que já são adultos serão capazes de realizar uma leitura proficiente de seu contexto e da diversidade que o compõe, logo, irão não só compreender o passado, como também poderão estabelecer relações entre outras épocas e a realidade atual.  

A utilização da língua nas mais variadas atividades humanas se constitui em gêneros do discurso. As pessoas mantêm, reproduzem, constituem e reconstituem seus papéis sociais e relacionamentos particulares através desses gêneros.

 

O GÊNERO TEXTUAL MEMÓRIA

 

O gênero textual "Memória" registra os acontecimentos da vida do autor , o que ocorreu durante o seu período de vida na vida pessoal, na história política do país e do mundo. É sempre escrita em 1a pessoa. Se você ainda não leu nada desse gênero tem aí: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis ,Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antonio de Almeida(ficções); As curvas do tempo-memórias, de Oscar Niemeyer, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Memórias de Menina- de Rachel de Queiroz( não-ficção).

O Gênero memória se constitui em um exercício de interrogação de nossas experiências passadas para fazer aflorar não só recordações/lembranças, mas também informações que confiram novos sentidos ao nosso presente.
A forma como encaramos certas situações e objetos está impregnada por nossas experiências passadas. Segundo Ecléa Bosi (1994), através da memória, não só o passado emerge, misturando-se com as percepções sobre o presente, como também desloca esse conjunto de impressões construídas pela interação do presente com o passado que passam a ocupar todo o espaço da consciência. O que a autora quer enfatizar é que não existe presente sem passado, ou seja, nossas visões e comportamentos estão marcados pela memória, por eventos e situações vividas. De acordo ainda com essa autora, o passado atua no presente de diversas formas. Uma delas, chamada de memória-hábito, está relacionada com o fato de construirmos e guardarmos esquemas de comportamento dos quais nos valemos muitas vezes na nossa ação cotidiana.

O Memorial é o resultado de uma narrativa da própria experiência retomada a partir dos fatos significativos que nos vêm à lembrança. Fazer um Memorial consiste, então, em um exercício sistemático de escrever a própria história, rever a própria trajetória de vida e aprofundar a reflexão sobre ela. Esse é um exercício de autoconhecimento.

 

PROPOSTA DE TRABALHO COM O GÊNERO MEMÓRIA

 

A ARTE DE CONTA HISTÓRIA UTILIZANDO O GÊNERO MEMÓRIA

 

Público : EJA –Ensino de Jovens e adultos

OBJETIVOS

ü  Oportunizar os alunos a ouvir e contar fatos que fazem parte de sua memória de vida;

ü  Compreender e observar características do gênero memória;

ü  Diferenciar um texto oral de um escrito;

ü  Contar e recontar histórias de memória de vida.

ü  Perceber como objetos e imagens podem trazer lembranças de um tempo passado.

ü  Observar que as memórias podem ser registradas oralmente e por escrito.

 

METODOLOGIA

 

Primeiro encontro

 

Apresentação do filme: “Narradores de javé” (Vários moradores de uma cidade que está preste a sumir devido a construção de uma Hidrelétrica, decidem contar suas histórias e escrevê-las para tornar a cidade patrimônio histórico e tentar convencer o governo a não construir a hidrelétrica naquele local). Após a apresentação será pedido aos alunos que fale sobre o filme destacando a importância de memória de vida de cada um  e também destacar as principais diferença entre a oralidade e a escrita que aparecem no filme.

Segundo encontro

 

Serão apresentados exemplos do gênero memória mostrando as principais características e a função do gênero abordado.  Após apresentação será feito um debate oportunizando cada participante a falar sobre sua memória de vida mais importantes para eles.

Os pontos positivos de ser preservar a memória de cada um de nós e os pontos negativos de não ser preservar a memória seja de um povo ou de alguém individualmente. Enquanto eles falam alguém deverá escrevê-los no quadro e em uma folha de papel.

Será pedido aos alunos para trazerem para o próximo encontro uma fato que faz parte de sua memória de vida que gostaria de contar e depois escrever para a turma.

 

Terceiro encontro

 

Todos as historias de vida de cada aluno serão lidas em sala de aula pelas professoras, após a leitura os alunos deverão escolher apenas uma para recontá-la oralmente. Haverá um momento de socialização entre a turma sobre a importância desse tipo da história para manter viva a cultura de uma sociedade.Será pedido aos alunos que destaque das histórias lidas palavras, as quais eles acharam importantes durante a contação que facilitaram a compreensão da história. As palavras serão escritas no quadro e analisadas pela turma. Como é escrita, que letras você encontra nas palavras, qual o seu significado.

 

Quarto encontro

 

Serão formadas equipes de acordo com o número de alunos. O professor ficará orientando as equipes (lendo, conversando e orientando a apresentação). A equipe juntamente com a orientadora irá escrever um fato de história de cada aluno até forma um livrinho, desde livrinho será escolhida uma história que deverá ser apresentada pelos alunos em forma de teatro levando em consideração os recursos para ser contar uma história.

 

AVALIAÇÃO

O primeiro encontro será utilizado como triagem do conhecimento que os alunos possuem do gênero e para ajustes das atividades posteriores. No segundo momento estaremos observando quais aspectos do gênero os alunos conseguem reconhecer, quais níveis de leitura estão e quais estratégias estão utilizando para compreensão do texto, e como está seu desempenho na expressão oral.

             No terceiro momento a avaliação da expressão oral em contexto formal, e a adequação de fala ao momento sócio-educativo, e como desenvolve os diferentes papéis da modalidade oral ( ouvir e falar),e também  a avaliação da modalidade escrita.

            No quarto momento será avaliado a capacidade de associação dos conteúdos e do senso crítico de auto-avaliação, bem como avaliação das modalidades orais.

 

CONCLUSÃO

A pesquisa me possibilitou a análise e reflexão dos gêneros textuais no ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa na EJA. Na parte teórica da pesquisa percebi e compreendi a importância desses instrumentos em nossas práticas sociais, a importância de ser compreendido e produzido para que se tornem bons instrumentos de interação, uma vez que no contexto escolar os gêneros textuais tornam-se importante quando pensamos no processo de letramento, ou seja, eles podem ser utilizados como excelentes instrumentos para ajudar o aluno no momento da comunicação, da leitura, da produção e da prática social.

O gênero textual Memória é uma forma de dinamizar o processo do ensino principalmente com alunos do EJA. Fazendo com que haja envolvimento de forma mais ativa no seu processo de desenvolvimento tanto da leitura como também da escrita.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

BAKHTIN, M. 1979 Os gêneros do discurso. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 2005

BIBER, D. Variação entre fala e escrita. Cambridge: Cambridge University Press. Cambridge: Cambridge University, 1988

BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. Companhia das Letras: São Paulo. 3. ed. 1994.

BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais – Primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: Mec/ SEF, 2000

BRONCKART, Jean –Paul Atividade de linguagem, textos e discurso: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad.: A.R Machado. São Paulo: EDUC, 1999.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Editora Cortez, 2000. São Paulo.                                                       

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gênero e compreensão. 3ª ed São Paulo:Parábola Editorial,2008

 

 

ANEXOS

Exemplos do gênero memória

1-    Viver para contar
Gabriel García Marquez

Até a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado, e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela nostalgia. Eu me lembrava de como ela era: um bom lugar para se viver, onde todo mundo conhecia todo mundo, na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. Ao entardecer, sobretudo em dezembro, quando passavam as chuvas e o ar tornava-se de diamante, a Serra Nevada de Santa Marta parecia aproximar-se com seus picos brancos até as plantações de banana, lá na margem oposta. Dali dava para ver os índios aruhacos correndo feito formiguinhas enfileiradas pelos parapeitos da serra [...]. Nós, meninos, tínhamos então a ilusão de fazer bolas com as neves perpétuas e brincar de guerra nas ruas abrasadoras. Pois o calor era tão inverossímil, sobretudo durante a sesta, que os adultos se queixavam dele como se fosse uma surpresa a cada dia. Desde o meu nascimento ouvi repetir, sem descanso, que as vias do trem de ferro e os acampamentos da United Fruit Company foram construídos de noite, porque de dia era impossível pegar nas ferramentas aquecidas pelo sol.

Gabriel García Marquez. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.