O Garimpeiro

Por Ronaldo Almeida Nogueira | 30/07/2011 | Contos

OGARIMPEIRO
Se trabalho fosse honra, jumento era doutor, Burro de tropa era advogado e boi de canga era promotor...
Era o ditado repetitivo e segundo ele, convincente aos demais e justificável para a sua inalterada ociosidade. O seu único ofício era o jogo de baralho, onde dificilmente perdia uma parada, o que lhe garantia o prato de comida do almoço e outro no jantar, o da cachaça e dos cigarros. Roupa e calçado do seu uso, ninguém sabia como e onde ele arranjava. Certamente os muitos amigos que com uma incrível facilidade conquistava, por ser bastante alegre e prestativo, sendo esta ultima qualidade somente no falar, com certeza lhe presenteavam, ora um com uma calça usada, ora outro com uma camisa, ora um terceiro com um sapato mais que meio gasto. E assim ia levando a sua vida de sem que fazer, sem moradia fixa, pois a sua rede ele armava em qualquer lugar onde lhe oferecesse proteção das chuvas no inverno e do orvalho no verão.
Com palavras defensivas estabelecia repentinamente uma amizade. Com pouco, depois de alguns goles de pinga, com escabrosidade de atos e de verbos, provocava a conjuntura propícia ao desmoronamento da afeição recente. Algum tempo depois, recuperava-a, todavia sem mais e nem menos a deixava entornar-se através da fenda aberta pela sua boca que depois de guiar o álcool para o espírito, vomitava-o em infamante configuração verbal.
Havia os que cegamente confiavam na sua habilidade com o baralho, emprestando-lhe dinheiro o suficiente para o seu ingresso nas rodadas onde dificilmente perdia uma parada. Pago o credor, o que lhe sobrava investia no ofício, e pelo restante daquele dia permanecia jogando, bebendo aqui acolá um trago e pagando uma rodada de pinga aos companheiros de mesa. Ao fim do dia, o que lhe rendia era o suficiente para sobreviver por alguns dias, até encontrar outro fiador que lhe garantisse a sua participação na rodada de baralho, o que não demorava mais que uma semana.
Já aos quarenta anos de idade, continuava sempre assim o dia a dia do amigo Valbinho; Era por amigo que a todos tratava, e por amigo Valbinho, era tratado por todos;
? Amigo Valbinho, isso assim e assim... Isso assim e assado...
? Pois não, amigo fulano. Isso assim e assim... Isso e aquilo...
Quando não coagia uma ocasião de filar um almoço ou um jantar em casa de alguém com o espírito ainda não ressentido ou de ressentimento já esvaído por estímulo de suas excessivas e ardilosas lisonjarias, por causa das suas dissensões, via-se obrigado a fazer suas refeições no quiosque da Mariona, onde a mesma vendia comida caseira a cinco cruzeiros a porção, estabelecido na Rua Duque de Caxias, exposto à poeira; Daí o nome de "Restaurante poeirinha".
Aquele seu cotidiano durou inalterado desde o dia em que saiu da casa de seus pais, no Estado do maranhão, com apenas dez anos de idade, até aos quarenta, quando corria o ano de 1981 e em São Domingos do Araguaia também chegou, como um vendaval, a notícia do garimpo de Serra Pelada.
? Dizem que lá tem gente bamburrando pra todo lado ? Comentava o Amigo Valbinho em uma roda de baralho ? vou lá também, quem sabe eu não enrico de vez?
? Que nada, amigo Valbinho, tu não tem coragem pra enfrentar o trampo de lá não...
? Quem disse? Por muito dinheiro vou até pro inferno, me abraçar com o cão, viu?
? E se tu não bamburrar?
? A sorte é cega, amigo Planadinha, porco ruim, bata rasa, viu?
O amigo Valbinho não possuía desafeições capazes de oferecer perigo à sua integridade física. Suas más querências resumiam-se somente em pequenas intrigas sem maiores relevâncias. Tudo por causa da sua língua ferina, nas horas de cachaçada. Por isso armava a sua rede sob qualquer sombra ou teto de alguma das várias coberturas de palha de babaçu, existentes em terrenos sem morador, nas pontas de rua da cidadezinha pacata. Mesmo assim, como medida de precaução, colocava uma coleira no sansão, um cachorro vira lata que parecia ser a sua sombra, por lhe seguir para todos os lados aonde ia, em agradecimento aos restos de comida que o amigo Valbinho lhe dava, e o amarava aos punhos de sua rede. Com essa inovação estava garantida a sua segurança durante a noite de sono tranqüilo;
? Qualquer falta de respeito...
Quando o baralho lhe rendia um pouco a mais, dormia no cabaré de dona Lúcia, acompanhado de uma das raparigas.
Naquela noite, armou a sua rede sob dois pés de acácias que faziam parte da arborização da Rua Duque de Caxias. Amarrou sansão nos punhos e agarrou-se num pesado sono de bêbado. Acordou pela manhã bem cedo, ao ouvir uma voz que gritava a toda força dos pulmões:
? Serra pelada, Serra Pelada, quem vai? Ainda tem uma vaga...
Sentou-se na rede, esfregou os olhos e enxergou a caminhoneta D10 que se aproximava lentamente, vindo na direção da saída que dá acesso a Marabá. Com meio corpo para fora do toldo da carroçaria daquele veículo, um homem gritava propagando a oportunidade de viagem para o garimpo:
? Serra Pelada, Serra Pelada, quem quer ir? Oitenta cruzeiros a passagem, ainda tem uma vaga...
O amigo Valbinho não contou conversa. Levantou-se de chofre, desarmou a rede, guardou-a em sua "boroca" que estava ao lado de sansão, pendurou-a a tira colo, correu em direção à caminhoneta, com a mão direita erguida e aberta, gesticulando uma ordem de parada e gritando para o motorista:
? Eu vou, eu vou, a vaga é minha...
A caminhoneta parou. O amigo Valbinho entrou de um só pinote, agasalhou-se na única vaga em um dos quatro bancos de tábuas que formavam um quadro. Passou a vista nas fisionomias dos nove homens que ali já estavam. Todos empoeirados da viagem que faziam desde a cidade de Imperatriz. Atirou a sua boroca no meio de outras que se amontoavam no centro da carroçaria. Sansão latia no lado de fora, com as orelhas erguidas, sentado e abanando nervosamente a cauda, querendo entrar para junto do companheiro.
? Fica com Deus, sansão, se eu bamburrar por lá, quando eu voltar vou lhe dar vida de príncipe, porque o rei vai ser o papaizinho aqui, viu?
A caminhoneta arrancou. Sansão ainda lhe seguiu por algumas centenas de metros, até que a velocidade do veículo tomou distância e lhe fez perder de vista o amigo Valbinho. Agora se ouvia somente o ranger da grade do toldo e o barulho da lataria do carro e da sua ferragem solta, numa reclamação sem fim contra a buraqueira da estrada. A cada freio a poeira invadia o interior da carroçaria.
O amigo Valbinho principiou a conversa, quebrando aquele silêncio dos passageiros. Tinha que granjear a amizade e a confiança daqueles companheiros de viagem, pois não tinha com que pagar a sua passagem. Entrara naquele veiculo meramente por puro instinto de aventura e pelo impulso de uma convicção inexorável, de que haveria de sair daquela pobreza em que vivia. Tinha como certo um bamburro. Primeiro era preciso chegar ao garimpo. Já estava a caminho. O coração parecia-lhe querer saltar para fora, de tanta ansiedade.
Todavia estava em meio a um problema; Como pagaria a sua passagem? Chamar aqueles companheiros para uma rodada de baralho? Não, ali era impossível, com aquele sacolejar do inferno.
? Há... Seja lá como deus quiser. Quando chegar ao garimpo, se o motorista quiser, que me tire a vida, se ela valer oitenta cruzeiros... "Tô nem aí"!
Abriu a sua boroca e tirou uma garrafa de cachaça na qual ainda restava mais da metade, tirou-lhe a tampa e virou na boca o gargalo, sorveu um grande gole, devolveu a tampa para a boca da garrafa, limpou o canto da boca com a costa da mão direita, tirou o ultimo cigarro do maço bastante amassado, passeou o olhar nos companheiros que olhavam para o recipiente em sua mão e ofereceu-lhes um trago:
? Vai uma aí, amigos?
? Dê cá essa garrafa, parceiro, ? Falou o que se sentava ao lado direito do amigo Valbinho ? "Tôu cuspindo tijolos", com tanta poeira engolida. Essa pingazinha vai pegar bem.
E a garrafa passou de mão em mão, até chegar de volta às mãos do amigo Valbinho.
? Amigos, de onde vem esse carro? ? Indagou o amigo Valbinho, depois de expirar uma nuvem azul de fumaça do cigarro que acabara de acender.
? De Imperatriz. ? Respondeu o que ia a seu lado ? Saímos de lá ontem pelas quatro da tarde, dormimos no lado de lá do porto da balsa, e até agora ainda não chegamos nem no quarenta. Estou com uma fome de lascar.
? Calma, amigo, já estamos quase chegando no quarenta. Lá você pega um lanchinho. Vamos, é hora de fazer outra rodada dessa pinga; O que é pouco a gente bota pra acabar logo. Se acabar, acabou e pronto, viu?
A cachaça deu mais três rodadas e acabou-se, porém foi o suficiente para animar o espírito de moleza que reduzia aqueles viajantes a vassalos do desalento. Com pouco chegaram ao quilômetro quarenta, e todos desceram da caminhoneta enquanto o motorista advertia:
? Quinze minutos para um lanchinho, viu? Temos que chegar na entrada do garimpo antes do anoitecer.
Dirigiram-se para o balcão da lanchonete do posto de combustível existente naquela altura da estrada. Todos pediram um lanche ao balconista, somente o amigo Valbinho não pedia coisa alguma. Mantinha-se encostado a um dos pilares de sustentação do prédio da lanchonete.
? O amigo não vai lanchar? ? Indagou-lhe um dos companheiros.
? Não, amigo, "tôu fraco no vento" ? Respondeu o amigo Valbinho, de mão estirada e esfregando o indicador no polegar, a outra mão fechada, somente o polegar apontando para baixo, indicando a falta de dinheiro.
? Não seja por isso, amigo, ? Respondeu outro que acabava de morder a ponta de um pastel e falava de boca cheia, segurando uma garrafa de refrigerante na outra mão ? Pode encostar e pedir o que quiser. Amigo é pra isso mesmo.
O amigo Valbinho encostou e pediu um pastel, um copo de suco de maracujá, enquanto dizia:
? Eu só quero só isso mesmo, viu? Não gosto de encher a barriga assim de manhã ainda cedo.
? Não se acanhe amigo, faça como quiser.
Quando os companheiros pagavam a conta, o amigo Valbinho não deixou de observar o momento em que meteram as mãos nos bolsos, e verificar que todos estavam bem servidos de dinheiro. Então a sua mente começou a funcionar:
? Não é possível que esses camaradas não vão querer fazer uma vaquinha que dê pra pagar a minha passagem. Vamos ver no que vai dar. Ainda tenho o resto do dia pra me entrosar mais um pouco com eles. Seja lá como Deus quiser.
? E aí? ? Voltou a falar outro dos companheiros ? Vamos comprar mais cachaça? Parada agora é só no quilômetro seis. Daqui pra lá dá um estirão danado.
? Eu compro um litro. ? Dispôs-se o que parecia ser o mais velho.
? Eu compro um também. ? Falou o que parecia ser o mais novo.
? E eu compro mais outro. ? Finalizou o que ofereceu lanche ao amigo Valbinho.
? Com certeza ? Continuava pensando o amigo Valbinho ? não passa do seis para eu descolar o da minha passagem... Deixa estar!
Antes de embarcarem na caminhoneta, um deles abriu a primeira garrafa e fizeram nova rodada. O motorista já os chamava buzinando insistentemente. Entraram na carroçaria. O motorista deu algumas aceleradas antes de arrancar. Partiram.
A primeira das três garrafas foi arremessada vazia, para fora do veiculo que não ultrapassava os quarenta quilômetros por hora. As condições físicas da estrada não permitiam maior velocidade. A segunda garrafa corria de mão em mão e o amigo Valbinho era quem mais falava. Dirigia-se aos outros já lhes tratando pelo nome, como se os conhecesse há muito tempo, numa amizade de longos anos, como se fossem parentes bem próximos, numa intimidade cativante, atraindo para si todas as atenções ali naquele lugar apertado e desconfortável. O rumo daquela prosa pendeu para os lados do assunto de caçadas.
? Amigo Valbinho, você já matou alguma caça?
? Amigo, caçar é comigo mesmo, viu? Eu só atiro é na cabeça, que é pra não estragar o corpo, viu? E não gasto munição com bicho pequeno não, tá entendendo? Quem quiser aprender a caçar, é só falar com o papaizinho aqui, ó... ? Finalizava apontando o indicador para o peito.
E principiava o arrotar de experiências e de conhecimentos que tinha e que não tinha, de um modo detalhado, coerente e perspicaz, capaz de convencer a qualquer que estivesse a lhe ouvir, arrancando estrondosas gargalhadas com a porção de humor que anexava às narrativas das suas forjadas proezas.
A cachaça acabou-se novamente, a prosa fluía dirigindo-se aos poucos para o rumo das confidencias entre os companheiros que já se consideravam irmãos. Por fim chegaram ao quilômetro seis. Eram onze horas do dia.
? Meia hora para o almoço! ? Gritou o motorista.
Os companheiros mantinham-se ainda entre a lucidez e um ligeiro princípio de embriaguez, pois menos de quatro litros de cachaça não é o suficiente para embebedar dez homens experimentados na pinga, como é o caso de maioria dos garimpeiros. Almoçaram em meio a uma alegre conversa, entre um gole e outro. Foi durante esse prosear que o Amigo Valbinho confidenciara aos outros a sua real situação financeira.
? A gente faz uma vaquinha, amigo, se você tiver que morrer pobre, só se for por falta de sorte, se acaso bater num barranco cego, porque por falta de dinheiro pra sua passagem, tá aqui, ó, ? Falava o que demonstrava mais alegria e descontração característica dos que estão sob princípio de embriaguez? Tá vendo? Nós somos nove, menos de dez cruzeiros pra cada. Fica tranqüilo, amigo Valbinho.
? Então faz o seguinte: ? Decidiu outro ? Cada um dá dez cruzeiros pra ele, com oitenta ele paga a passagem e ainda lhe sobram dez pro cigarro.
? Como se tivessem ensaiado uma coreografia, todos ao mesmo tempo meteram as mãos nos bolsos, puxaram cédulas de dez cruzeiros amassadas e depositaram sobre a mesa.
? Olha aí, amigo Valbinho, é todo seu.
? Hôô meus amigos, Deus abençoe a todos vocês ? O amigo Valbinho agradecia com a voz humilde, recolhendo o dinheiro de sobre a mesa e embolsando-o ? se algum dia eu bamburrar, juro por Deus que vou ajudar vocês, viu?
? Amém, amigão! ? Finalizou o que tomara a iniciativa de darem-lhe logo o dinheiro.
O motorista começou a buzinar insistentemente anunciando a partida.
Aboletaram-se novamente para dentro do veiculo. A fisionomia da nova estrada agora era mais suave em relação à Transamazônica. Devido ao fluxo maior de veículo nos rumos da Serra Pelada e também da Serra dos Carajás, o trecho Marabá ao quilômetro trinta já era asfaltado, condicionando uma viagem mais confortável. Dali para a Serra Pelada, voltava a ser empiçarrada, porém com melhor aspecto, com menos buracos que a Transamazônica.
A garrafa de cachaça voltou a rodar de mão em mão, a prosa retornou ao seu nível de intimidade, o assunto agora era sobre garimpo. Foi aí que o Amigo Valbinho ficou sabendo que para entrar em serra pelada, era necessário ser portador da carteira de garimpeiro.
? E se eu não tiver essa tal carteira?
? Aí ? Explicava o mais experiente ? você entra furando ou volta pra casa ou você vai pro garimpo do sossego.
? Furando? Como assim?
? Amigo Valbinho, na entrada de serra pelada tem uma guarita da polícia, uns dez quilômetros antes. É ali que o pessoal tem que mostrar a carteira; Tem carteira, entra; Não tem, não entra. Quem quiser entrar furando, tem que voltar uns vinte quilômetros, para não dá nas vistas da polícia. Depois tem que entrar na mata, pela picada feita pelos primeiros furões. São cinqüenta quilômetros de caminhada e ainda correndo o risco de ser apanhado pela polícia. Ela de vez em quando ronda naquela picada. Quase sempre tem algum furão novato lá na beira da estrada, esperando por algum experiente, para viajarem juntos e não correr o risco de se perder na mata, tá entendendo?
? Hêêê... Sujou, amigo...! E aqui, vai algum furão?
? Não, amigo Valbinho, só quem não tem carteira aqui é o Raimundo. Mas só que ele vai é pro sossego, não é Raimundo?
? Hum, hum...
? E esse garimpo é bom mesmo, amigo Raimundo?
? Amigo Valbinho, eu tenho visto muito bamburro por lá. Eu mesmo nunca bamburrei porque trabalho é na diária. Mas quem tem barranco ou porcentagem...
? E esse sossego, como é que a gente faz pra chegar lá?
? A gente desce lá no trinta. ? Continuou Raimundo ? De lá a gente pega outro carro até na beira do rio sossego. Na beira do rio a gente pega um barco e viaja ainda um dia, uma noite e a metade do outro dia, até chegar no garimpo, entendeu?
? Amigo Raimundo, se eu tivesse dinheiro, eu ia mesmo era pra esse tal de sossego, viu?
? Não seja por isso, amigo Valbinho, se você quiser, eu lhe arranjo o dinheiro das passagens do trinta pra lá. Estou mesmo precisando de companheiro de viagem. Não gosto de andar sozinho aí por esse mundão.
? Valeu, amigo Raimundo, pois toque aqui, já arranjou um e dos bons, viu? ? Finalizou de mão estirada, pronta para apertar a do outro.
? O assunto mudou de garimpo para piadas. Cada um contava uma por sua vez. Mas quando a vez era do amigo Valbinho, as gargalhadas eram mais gostosas. Durante a narrativa, a cada intervalo ele extraia uma gargalhada dos outros. Ao se aproximar do desfecho, todos aguardando de sorriso ensaiado no canto da boca, logo explodiam em novas gargalhadas, agora mais demoradas e mais pomposas no final.
Duas horas depois, chegaram ao quilômetro trinta. Pagaram as passagens, despediram-se entre afetuosos abraços e tapinhas nas costas, O amigo Valbinho não conteve as lágrimas quando manifestava gratidão pela ajuda dos amigos que iam prosseguir viagem. Seus sentimentos eram verdadeiros e mais profundos que os dos outros, porém de mesma profundidade, talvez menor que a rapidez com que aqueles favores lhe cairiam no poço do seu esquecimento. Aquela despedida foi interrompida pela aproximação de outra caminhoneta que parou ao lado, com um homem anunciando em alta voz:
? Rio sossego, rio sossego, quem vai? Cinqüenta cruzeiros a passagem...
? Vamos nessa, amigo Valbinho, ? Apressava-lhe Raimundo ? vamos logo, que transporte para o rio sossego é mais difícil.
Pela última vez abraçaram-se e o amigo Valbinho mais uma vez agradecia com olhos lacrimejantes e voz soluçosa.
? Boa viagem para todos, amigos!
? Pra você também, amigo Valbinho. Boa sorte!
Os dois aboletaram-se na nova condução. Com poucos minutos de viagem o amigo Valbinho já se fizera tão amigo dos últimos passageiros, quanto dos primeiros. Foi durante essa segunda etapa de viagem, entre um e outro gole de cachaça, que ele arrotou a sua habilidade com as cartas de baralho. Era essa a sua única fanfarronice verdadeira.
? Ei, amigo Valbinho, ? Falava um dos novos companheiros ? Quando chegar na beira do rio, vamos procurar uma rodada de baralho? Lá é só o que rola durante a noite. O barco só sai amanhã bem cedo, enquanto isso...
? Quem sabe! ? Exclamou dirigindo um olhar pedinte e de cumplicidade ao Raimundo, solicitando-lhe o financiamento do seu ingresso na primeira rodada ? Depende do meu amigo aí, ó...
Já era noite feita quando chegaram à beira do rio. Poucas palhoças onde funcionavam bares e restaurantes constituíam o pequeno e improvisado povoado que os garimpeiros chamam de "currutela". A iluminação daquelas barracas era alimentada por grupos geradores que funcionavam a diesel. No porto improvisado bem em frente, estavam atracados os barcos que se destacavam em forma de vultos oscilantes com o movimento das águas.
Foi em um amplo barracão desprovido de paredes laterais e de iluminação, onde armaram as suas redes. Ali havia uma mesa improvisada, feita de um grosso tronco rolado, que servia para as rodadas de baralho. Vários outros troncos menores e mais finos rodeavam aquela espécie de mesa, servindo de assento para os jogadores. Os perus permaneciam em pé a observarem o andamento do jogo, sem darem palpites.
Depois de comerem peixe frito com farinha, os dois amigos voltaram para as suas redes. Com pouco, todos os garimpeiros que iam viajar no dia seguinte, já se encontravam também naquele barracão.
? E aí, amigo Valbinho? Vai ou não vai disputar uma parada com a gente? ? Convidava-lhe um dos companheiros que já se encontrava sentado na rodada, acompanhado de mais três. O baralho estava já sobre a mesa, à luz de uma vela.
? Amigo Raimundo ? Cochichou o amigo Valbinho ao ouvido do outro que também já se encontrava deitado na rede armada bem ao lado ? me arranja aí trinta cruzeiros, pra eu depenar aqueles patos, o que eu ganhar, divido no meio com você. Se perder, eu fico lhe devendo, tá entendendo?
? Hum, hum... Mas é só esse aí e pronto. Se você perder, não tem mais não, viu? Se não a gente fica sem o dinheiro das passagens.
? De quanto é a parada, amigos? ? Perguntava o amigo Valbinho, já fazendo parte daquela rodada.
? É de dez, parceiro.
? Então vamos lá. Quem corta primeiro?
? Deixa comigo, eu corto.
O amigo Valbinho perdeu a primeira partida, a segunda, na terceira ganhou, livrando o dinheiro do amigo e saldando dez cruzeiros.
? Pronto, amigo Raimundo, ? Falou virando-se para o amigo que continuava deitado e fumando tranquilamente ? o seu dinheiro já tá salvo, viu?
O jogo prolongou-se até depois da meia noite. O amigo Valbinho manteve-se no padrão de ganhar duas para perder uma, propositalmente, para que os outros não percebessem que jogavam com um profissional e viessem a desistir. Ao final, dirigiu-se para Raimundo, contando os quatrocentos cruzeiros que lhe renderam aquelas partidas. Dividiu ao meio com o companheiro que recebeu a sua parte com um sorriso de satisfação e um ligeiro vestígio de incredulidade.
? É, amigo Valbinho, você joga bem mesmo. Agora vamos dormir, que já está quase amanhecendo.
Deitaram-se. A vela apagou-se sobre a mesa. O roncar dos motores, as vozes dos que estavam dispostos a amanhecerem o dia bebendo nos bares, abafava os rumores da noite na natureza.
O movimento e o burburinho dos que já estavam acordados e desarmavam as suas redes, acordou os dois companheiros. Um barco já estava com o motor funcionando em marcha lenta. O amigo Valbinho sentou-se na rede, esfregou os olhos, virou-se para o amigo que também se encontrava sentado em sua rede e exclamou:
? Bom dia, amigo Raimundo!
? Bom dia, amigo Valbinho.
? Vamos meter um banho? Tôu com uma ressaca daquelas, viu?
? Vamos, eu também estou meio ruim.
Desarmaram as redes, guardaram-nas em suas borocas, as quais penduraram a tira colo e dirigiram-se no rumo do rio.
O sol despontava por detrás da mata de um verde escuro do outro lado do rio.
Aquele pequeno aglomerado de barracos naquela clareira, era espremido pelo paredão de frondosas árvores da floresta virgem que se estendia por toda aquela região do Pará.
A estrada de um vermelho piçarroso, parecia uma língua a adentrar-se pela boca escura da mata, interrompendo-se a sua seqüência na primeira curva mais adiante. O canto da passarada, o gorgolejar dos guaribas logo bem perto, todo aquele rumorejar da natureza, parecia aproveitar-se daquele momento em que o altissonante barulho dos motores dava uma trégua, para fazer realçar a verdadeira sinfonia do som e da luz a matizar aquela paisagem já manchada por minúsculos vestígios da virótica e devastadora infestação da espécie humana.
? Hêê água boa, amigo Raimundo! ? Exclamava o amigo Valbinho entre um e outro mergulho nas águas de mornura matinal, que era o rio sossego na fresca da manhã ? Já tôu inteirinho de novo, viu?
? Eu também, amigo Valbinho.
? Que tal tomar uma e comer uma buchada?
? Só se for agora, amigão.
Quase todas as mesas dos bares e restaurantes já estavam ocupadas por garimpeiros que forravam o estômago antes de seguirem viagem. Os dois companheiros após comerem a buchada, compraram um bom estoque de cachaça e dirigiram-se para o barco onde havia um homem em pé, sobre o terraço e propagando em alta voz:
? Garimpo do sossego, garimpo do sossego... Quem vai? Quem vai? Saída daqui a meia hora...
O grupo de homens que comiam ou bebiam nas diversas barracas começou a dirigir-se rumo à embarcação, todos de borocas a tira colo. Com pouco o motor do barco roncou mais forte, expelindo pela descarga uma nuvem de fumaça preta e com cheiro de óleo diesel queimado, o qual se exalou no interior da embarcação. Poucos minutos depois, navegava bem no meio do leito do rio de águas sossegadas; Daí o nome rio sossego.
A largura do barco era suficiente para se armar uma rede garimpeira. Quinze redes estavam armadas lado a lado. Os dois amigos armaram as suas ficando um ao lado do outro.
Havia um espaço de três metros entre a primeira rede e a proa, que era o lugar reservado para as rodadas de cachaça e baralho. Entre a última rede e a popa havia outro espaço maior, onde funcionava a cozinha e refeitório.
Ao meio dia o amigo Valbinho já se entrosara com todos os passageiros e tripulantes, (Estes últimos resumidos apenas no cozinheiro e no piloto que era também o proprietário da embarcação) conhecendo a cada um pelo nome, com familiaridade já bastante baseada, tornando-se alvo de disputa para um dedo de prosa e parceria nas rodadas de baralho. Foi quando o piloto chamando-lhe em particular, lá para o terraço, fez-lhe uma proposta:
? Amigo Valbinho, é o seguinte: Nessa viagem de ida, o negócio é meio fraco, pois quem vai para o garimpo, geralmente está "blefado", somente com o da passagem. Mas de volta a coisa muda de figura, viu? Todo mundo vem "estribado", tá entendendo? Todo mundo com ouro na boroca, pra vender em Marabá.
? E daí, amigo Bernardo?
? E daí, é que se você quiser se estribar, é só ficar fazendo viagem de ida e de volta nesse barco, entendeu?
? Como assim, amigo?
? Moço, jogador porreta feito você, é galho fraco depenar um pato bamburrado dos muitos que vêm bebendo cachaça e arrotando bacaba, viu? Tu me dando dez por cento do que ganhar, o barco é teu, pode ficar, viu? O rango fica por minha conta. Pode armar a rede onde quiser, tá entendendo? É melhor do que o serviço pesado do garimpo, viu? Que tal, topa ou não topa?
? Será que esse negócio dá mesmo, amigo Bernardo?
? Moço, as paradas são disputadas é em ouro puro, parceiro, valendo cada uma de uma a dez gramas, dependendo do bamburro do otário... Eu estou acostumado de ver...
? Amigo, pois toque aqui, tá feito o trato.
O rudimento daquela empreitada configurou-se em prática perfeita para o amigo Valbinho e o novo companheiro ganharem ouro, grama por grama, à custa do efeito maléfico que a jogatina causava a muitos que viajavam naquele barco ao longo daquele verão. Mas para o amigo Valbinho, que era portador sadio daquele vírus contagioso, o vício de jogo apostado, não causava malefício algum, antes, benefícios. Somente transmitia-o aos outros.
Com a entrada do inverno, seis meses depois, o movimento caindo com expressiva rapidez, foi quando o amigo Valbinho decidiu retornar a São Domingos. Comunicou ao parceiro aquela decisão e naquela noite a bebedeira foi farta, numa despedida alegre. No dia seguinte desciam o rio que já demonstrava sinais de cheia. A cachaça rodava solta dentro do barco. Não quiseram conversa com o baralho. O negócio era somente beber e prosear.
Ao amanhecer do segundo dia daquela viagem, quase todos os passageiros iam desmaiados dentro das redes balançantes. Somente o amigo Valbinho, o cozinheiro e o piloto continuavam de fogo aceso. Foi quando perceberam que o barco pouco avançara do lugar onde estavam quando caiu a noite do dia anterior.
? Que diabo é isso, amigo Bernardo? ? Indagava ao piloto o amigo Valbinho com ar de surpresa ? O barco a todo vapor e não andamos quase nada durante toda a noite?
?Sei lá...
? Só pode ser artes do diabo ? Entrou o cozinheiro na conversa ? o barco não está andando não!
Aquela discussão acordou o restante e logo era geral a balburdia:
? O que foi?
? Ainda estamos no meio da viagem? Que diabo é isso?
? Só pode ser o diabo que está forçando esse barco para trás.
Em meio àquela vozearia, ouviu-se alguém gritar:
? Já que essa porra não anda, eu vou é tirar um mergulho, para ver se sara a morrinha dessa cachaça infeliz.
O som do tibungo foi pouco depois substituído pela voz do que havia se atirado na água:
? Hêê porra! Essa merda tá é encalhada... ? Praguejava o bêbado que já se encontrava em pé, no meio do rio, com a água pouco acima dos joelhos.
O piloto embriagado errara o canal e jogara o barco sobre um banco de areia que tornara rasas as águas do meio do rio naquele trecho. Por sorte o barco transportava somente os passageiros, os quais semelhantes formigas carregando uma barata, empurraram-no de volta ao canal profundo e prosseguiram a viagem, chegando à currutela somente pela madrugada seguinte.
Com poucos dias o verão retornaria. Durante todo aquele período de inverno o amigo Valbinho foi tratado como pessoa ilustre. Todas os que cultivavam pela sua pessoa uma visível ojeriza, logo a transformaram em simpatia pelo dinheiro dos cinco quilos de ouro que o "bamburrado" sempre carregava na sua nova boroca.
Fidelidade antiga somente a de sansão, o qual lhe recebeu com extrema alegria, abanando o rabo, lambendo-lhe os pés, as mãos, pulando, latindo e pinoteando em sua frente, logo no encontro que aconteceu no primeiro bar onde o amigo resolveu tomar o seu primeiro porre depois de chegar a São Domingos.
Comprou roupas e sapatos de marca, um relógio, uma grossa pulseira e um grosso cordão de ouro, alugou um quarto e uma rapariga com quem dormiu por todo aquele período lá no cabaré de dona Lúcia. Fazia questão de pagar sozinho as contas nos bares onde bebia cerveja acompanhado de uma grande rodada dos amigos de última hora, emprestava dinheiro aos que antes lhe financiaram o ingresso nas rodadas de baralho e que agora lhe alegavam tais favores, os quais não lhe pagavam de volta aqueles empréstimos. Não podia ver um cego, um aleijado ou um mendigo pedindo esmolas, que logo lhe dava uma nota de cem cruzeiros novinha estalando. Havia os que lhe pediam esmolas duas ou três vezes em um mesmo dia. Tomava café, almoçava e jantava todos os dias no hotel tropical, o melhor e mais caro da cidade.
Era uma adulação sem fim, não lhe faltando convite para festas de aniversários, casamentos, batizados e outras mais e sempre depois de aceito, vinha-lhe temperado de meiguices e palavras de elogios, o pedido para arcar com a despesa dos comes e bebes, sem falar no melhor presente de anfitrião.
Tantos gastos desordenados e sem retorno, com pouco o amigo Valbinho começou a dar fé da expressiva proporção com que avançava o murchar da sua boroca. À medida que seu dinheiro ia encurtando, a sua vaidade assumia uma elasticidade sem controle.
No dia em que amanheceu com a boroca vazia, tratou logo de vender o relógio folheado a ouro, o que lhe rendeu mais dois ou três dias de farra, do aluguel do quarto e da rapariga. Depois teve que vender o cordão, com pouco a pulseira, começou a vender as roupas de marca, os sapatos, até que chegou o dia em que se viu forçado a armar a sua rede sob dois pés de acácia que faziam parte da arborização da Rua Duque de Caxias. Era meados de maio, o verão prestes a estabelecer-se de vez.
Naquela ensolarada manhã, despertou pela voz de alguém que gritava:
? Serra Pelada, Serra Pelada... Quem vai? Oitenta cruzeiros a passagem.
Sentou-se na rede, esfregou os olhos e avistou a caminhoneta que se aproximava lentamente. Levantou-se de chofre, desarmou a rede, guardou-a na boroca a qual pendurou a tira colo, soltou o cachorro sansão e correu gritando em direção ao veículo:
Eu vou, eu vou, amigo, viu?
Com pouco tempo dentro daquele veículo, já tratava a todos pelo nome, acamaradado com os passageiros, familiarizado fácil e rapidamente, com a sua alegria de sempre e suas fanfarronices. Apareceu uma garrafa de cachaça e alguém lhe ofereceu um trago enquanto lhe perguntava:
? Qual o seu trabalho no garimpo, amigo Valbinho?
? Amigo, meu garimpo é o baralho, meu barranco são os patos, minha bateia é a astúcia, viu?
E até aos dias de hoje, é assim o viver do amigo Valbinho, semelhante às formigas que trabalham no verão para consumirem no inverno, somente que as formigas não possuem um coração e uma língua igual ele, o qual possui a sua única e exclusivamente para falatório diabólico, porém com um coração de sentimento angelical.