O Fantasma do Consenso
Por Raphael de Morais Trajano | 09/08/2012 | SociedadeO FANTASMA DO CONSENSO
Raphael de Morais Trajano
Maior do que a extensão do mundo é o circulo de ignorância que o envolve. A humanidade acostumou-se a encarar a vida como se devesse existir um modelo predefinido e imutável para todos os seres e coisas. Meninos só brincam de automóvel, meninas só penteiam os cabelos da Barbie, repousando ambos sobre esteiras quadradas de insensibilidade, forradas com lençóis de hiprocisia cáustica.
No livro O Menino que brincava de ser, de Georgina Martins, abordam-se questões relativas à insensibilidade humana diante de aspectos peculiares, considerados anormais pela massa corrompida por uma necessidade de aceitação pública. Nascer ou fazer-se diferente é predestinar-se a ser alvo da vileza que machuca o cérebro, comprometendo significativamente a integridade psicológica do indivíduo, exceto quando o mesmo se depara com esclarecimentos que expulsam as neuras absorvidas em sua amarga trajetória.
O protagonista, Dudu, carrega virtudes que se tornam problemáticas, já que são encaradas com desprezo justo por quem deveria estar preparado para orientar, mas é tão vítima quanto a própria criança: os pais. Todo esse despreparo é fruto de uma série de fatores internalizados, conceitos inapropriados, postos em prática mesmo antes de a criatura completar a luz mundana. Traçam-se destinos, fabricam-se prováveis escravos do consenso, esse fantasma aterrorizante. Aprendemos que há coisas próprias de riscos e outras que cabem exclusivamente aos pobres, que alguns comportamentos são típicos de meninos, outros de meninas. Quem contraria essa lógica é tido como caso clínico. Todos esses conflitos passeiam pelo íntimo de Dudu, que teria tudo para se tornar objeto seqüelado.
O menino é encaminhado ao doutor Psicólogo, ao doutor Psicanalista e ao doutor Endocrinologista, todos são taxativos ao afirmarem que não há problemas com a criança. O último, inclusive, indica um tratamento aos pais.
Não podemos desconsiderar que os pais sofrem tanto quanto os filhos, por terem seguido um modelo a vida inteira e não saberem lidar com situações classificadas como estranhas. Para eles, torna-se um martírio ignorar ensinamentos enraizados. Portanto, não há uma gama de vilões, todos acabam formando um amontoado de sofredores.
A heterogeneidade do mundo em que vivemos sugere a predominância das particularidades. Infelizmente, um número elevado de pessoas vive à margem dessa multiplicidade producente, desse benéfico ecletismo, agarrando-se a preceitos que mutilam a admirável liberdade de sermos o que somos, e não o que esperam que sejamos.
O caso de Dudu é uma exceção, pois o menino tem a sorte de encontrar em seu caminho a avó materna, uma mulher extremamente sensível que enxerga com naturalidade o comportamento do neto e o ensina a lidar com seus sonhos e vontades.
Pode-se traçar um paralelo entre O Menino que brincava de ser e o filme francês Minha vida em cor de rosa, de Alain Berliner. No segundo, o protagonista, Ludovic, é vítima de preconceito e acaba torturado pelos próprios pais, pois meninos sofrem inúmeras pressões devido a não aceitação do comportamento de sua cria por idealizadores do conhecido jogo das aparências. Em ambas as obras, os protagonistas são vítimas do mal que impossibilita o entendimento lógico e justo a respeito das diferenças. Não estamos tratando de casos específicos, mas da marginalização de uma sociedade acostumada a lidar insensivelmente com o que deve ser analisado e tratado com respeito e cuidado.
Qualidades humanas incomparáveis podem constituir desgraças irreparáveis. A sociedade precisa ser repensada para que possa ser refeita. É necessário concretizar a expansão da educação renovada. Para que idéias descabidas e sem embasamento racional e emocional sejam finalmente atiradas ao lixo. Precisamos nos colocar como verdadeiros peões, dispostos a demolir as malocas da ignorância, para que sejam construídos castelos cujos alicerces fudamentem-se em respeito, autonomia e ensejos de liberdade.
A reflexão é o esboço da mudança. Portanto, reflitamos.