O Fantasma do Barracão

Por Ronaldo Almeida Nogueira | 01/08/2011 | Contos

O FANTASMA DO BARRACÃO

O erro de quase todo citadino, é presumir que o modo simples, acanhado e taciturno do rurícola, é oriundo da sua falta de instrução acadêmica, da sua falta de conhecimentos científicos, da sua não convivência com a modernidade, de não saber manusear instrumentos e ferramentas leves e complicadas como inúmeros aparelhos eletrônicos e as mais variadas bugigangas existentes e características da vida urbana.
Enquanto boa parte de cientistas, doutores e sabichões da cidade trabalham projetos de conclusões babélicas, o rurícola simplesmente obedece a um ciclo natural; Trabalha para produzir, produz para consumir e consome para trabalhar. E o fruto da sua labuta é usufruído por todas as classes restante.
Geralmente todo rurícola, desdenhosamente denominado "caipira", possui um senso de percepção extremamente aguçado, uma inteligência e uma curiosidade de causar admiração em qualquer um; Quem da cidade conhece a natureza o quanto a conhece um rurícola?
Enquanto eles são capazes de fazerem previsões do tempo somente ao olharem para o horizonte e sentirem o cheiro de chuva no ar, conhecerem a qualquer dia qual a fase da lua, sem consultarem um calendário ou outro meio qualquer, saberem o tempo certo de plantar e de colher, uma grande maioria de pessoas vivem maior parte do ano sem voltarem os olhos para o céu, sem nunca vislumbrarem se quer uma estrela cadente; À noite vivem sob a claridade de luzes artificiais que lhes embaçam as vistas e lhes abastecem o céu de um mistério inescrutável, mas que para o rurícola, tal segredo não passa de um guia em veredas limpas, retas e de uma nitidez clara e resoluta.
O rurícola se mantém acanhado, é somente por conhecer o preconceito e a discriminação existente na mente de quase todo citadino, em relação aos que vivem na zona rural; Por mais que tente, um citadino não consegue esconder isso. E por mais que queira, um rurícola não consegue deixar de perceber a mesma coisa.
È o caso de um amigo meu, conhecido por Chicão, ribeirinho da margem do Araguaia, no lado do Pará; Além de bom agricultor, também é exímio pescador.
A ocasião em que conheci o Chicão, com o seu jeito matuto, mãos calejadas, linguagem ainda abaixo do padrão coloquial, hábitos e trajes característicos da roça, a prole de mais que dúzia e a sua fisionomia morena escuro, estatura mediana, cabelos lisos e grisalhos, assim como a barba e com apenas um resto de dentes enegrecidos pelo sarro do fumo, é o que principio em narrar.

Nas eleições municipais de 1996, eu pleiteei a minha reeleição de vereador e apesar de ter obtido expressiva votação, não consegui o sucesso almejado. Então me vi desempregado, pois uma vez eleito no pleito anterior, eu havia dado baixa no meu contrato de professor, pela rede Estadual de educação, por achar que seria promissora a minha carreira política e que não mais precisaria voltar ao antigo emprego onde eu trabalhei por todo aquele período somente por força da necessidade e não por amor à profissão, como é o caso da maioria dos educadores no Brasil.
Em janeiro do ano seguinte, esvaído o meu mandato, para não viver em absoluta ociosidade, esperando pelos vencimentos da minha esposa que também trabalhava como professora, pela rede Estadual e pela rede Municipal de educação, decidi por ir ajudar meu pai em sua labuta, na sua pequena propriedade rural localizada a onze quilômetros da sede do Município.
No início daquele ano, o projeto de asfaltamento da rodovia PA 153, que liga São Domingos do Araguaia a São Geraldo do Araguaia, estava prestes a sair do papel, sendo essa expectativa uma alvissareira perspectiva de emprego para muitos, que por falta mais de trabalho que de qualificação, formavam o quadro de ociosos da cidade de são Domingos.
Pelo mês de fevereiro daquele mesmo ano, começou a chegada de máquinas e equipamento das empresas empreiteiras da obra, causando animação e filas dos futuros operários nas portas dos escritórios das firmas. Foi quando o Dorico, vereador reeleito, e também meu cunhado, convenceu um amigo nosso, o João gordo, que vivia também na ociosidade, a montar uma pequena empresa de extração de seixo e deixasse o resto com ele, Dorico, o qual havia feito amizade com o gerente de uma das empreiteiras, a Construamec, e com certeza facilmente firmaria contrato com a tal. Era uma ótima chance de ganhar algum dinheiro.
Providenciados os papeis da nova firma, foi firmado o contrato com a tal empresa, que ara a responsável pelo asfaltamento do trecho de São Domingos a Marabá, e o referido contrato, no que tocava para a firma do João gordo, consistia na extração e fornecimento de seixo e areia para a Construamec, a qual ficaria na responsabilidade de fazer o transporte do material, desde o local de extração, até ao seu canteiro de obras.
Então o João gordo e o Dorico resolveram montar uma draga na margem do rio Araguaia, localizada na propriedade do então prefeito conhecido por tio Chico.
Aquela localidade foi escolhida por que havia ali muito seixo submerso naquelas águas e também pelo fato de o prefeito ter de bom grado cedido a área, sem nada cobrar, sem nenhum interesse na participação dos ganhos futuros.
Meu cunhado, no início, participava de tudo apenas por ser possuidor de um espírito de aventura bastante gordo de fantasias; Pescarias, caçadas, alguns pernoites na beira do Araguaia... Por fim, conluiados, decidiram ele e o João gordo, em dividirem entre si os ganhos que sobrassem depois de pagas todas as despesas da empreitada.
Depois de concluída toda a parte burocrática do negócio, partiram para a prática; Compraram logo um grande motor estacionário, de segunda mão, tendo antes o cuidado de constatarem o seu bom funcionamento. Compraram também do mesmo proprietário, todos os canos, mangueiras, ferramentas e todos os apetrechos necessários para se montar uma draga extratora de seixo. Tudo fiado para ser pago conforme fosse entrando os primeiros ganhos. Compraram também uma boa quantidade de mantimentos, o suficiente para alimentar oito pessoas durante um mês. Nessa compra estava incluído o fumo e a cachaça, gêneros de indispensável serventia para os que se submetem a trabalhar em beira de rio, principalmente na do Araguaia. Foi quando o meu cunhado me ofereceu o cargo de cozinheiro da firma recentemente montada.
O quadro de funcionários consistia em um operador de maraca, o maraqueiro, que era um negro desdentado, alto, muito falador, da mesma forma cachaceiro e muito bom pescador; Um cozinheiro, que era eu, tomando também aqui acolá a minha cachacinha; Um batedor de peneira, que era o velho Chicão, o qual quando bebia ficava valente como ninguém, prosador como ele só, cachaceiro que nem o resto da turma. Tinha também o Arnôzinho, motorista particular e dono do veículo que fazia o transporte dos patrões, o Dorico e o João gordo, todos os dias, de são Domingos para a draga e da draga para São Domingos, num percurso de mais ou menos quarenta e cinco quilômetros, de ida e de volta. A locação daquele veiculo, assim também como o salário do motorista e do restante dos operários da firma, estava combinado de ser pago também conforme fosse entrando os ganhos.
Ainda tinha mais dois funcionários contratados como ajudante geral, que era o Ireneu, dono de uma característica especial de só beber na boca da garrafa, e finalmente o Dioclécio, um baixinho entroncado e sarará. Este último era tão amante da cachaça, ao ponto de constantemente manter as escondida uma garrafa de cachaça no caminho do banheiro, outra no caminho da privada, mais outra dentro da balsa onde trabalhava como ajudante de maraqueiro, por fim, mais uma amoitada bem à beira dos veados, onde ele era o responsável de ir buscar a água de bebermos, pois a água daquele local do rio tinha um gosto de óleo diesel
Bebíamos todos os dias, mas era somente um trago pela manhã bem cedo, depois de se levantar da rede, outro antes do almoço e outro antes do banho à noitinha. Somente nos sábados, do meio dia em diante, quando entrávamos de folga, era que a cachaça corria frouxo, indo pela noite a fora e perdurando até ao domingo à noitinha.
Para fazer o transporte da empresa, que era todo o madeirame para a construção da balsa, o motor, os canos, as mangueiras, os mantimentos, os funcionários e suas borocas, Dorico e João gordo conseguiram convencer o Abílio, outro vereador, ? Este já bem veterano em mandatos ? em ir até a beira do rio, levando toda aquela carga em seu velho caminhão tôco, uma Mercedes 1111, muito surrado, todavia potente e em perfeito funcionamento, de um barulho ensurdecedor e por ter sido de cor azul quando ainda novo, fora batizado com o nome de azulão.
Saímos de são Domingos pela manhã, chegamos à beira do rio pelo meio dia e durante a viagem uma garrafa de cachaça rodava de boca em boca. Somente ao anoitecer foi que terminamos de fazer a descarga do material. Após descarregarmos o caminhão, eu providenciei logo um rápido jantar. Depois armamos as nossas redes sob o teto de um amplo barracão que ali já existia quando lá chegamos, que possuía somente a cobertura de palha de babaçu, sem nenhuma parede em redor. Mosquitos e pernilongos só existiam ali mesmo. Abílio resolveu voltar depois de nos ter ajudado a esvaziar mais uma garrafa de pinga.
Deitamo-nos em nossas redes e tudo se fez quieto e silencioso, salvo o piado do curiango sob a luz da lua e aqui acolá o som fofo de uma tapona de alguém a matar uma muriçoca incômoda. O efeito da pinga nos fez dormir sem muito ligar para a irritação das ferroadas.
Acordei pelo canto dos bem-te-vis, dos jacus-ciganos, paturis e demais passarada existentes naquela beira de rio. Eu sentia uma leve dor de cabeça e o sabor de sarro e cachaça azeda na boca. Fui até a beira do rio. Escovei os dentes, tomei um gostoso banho nas águas do Araguaia, morninha àquela hora da manhã, enquanto apreciava com os olhos os primeiros raios doirados do sol que se levantava deixando uma mancha escura da mata no outro lado do rio. Da minha retaguarda, vindo da mata que ficava logo depois de uma pequena clareira, os gorgolejos dos guaribas que cantavam todos os dias por àquelas horas da manhã e também pela boca da noite.
Voltei para o barracão e acendi o fogo do fogão a lenha. O barulho do meu mexe-mexe nas vasilhas da cozinha terminou por acordar o resto da turma. Dalí em diante foi quebrada a quietude do lugar. Uma e outra voz se misturavam:
? Hêêê ressaca urubua!
? Toma uma qui a ressaca passa, meu pêxe.
? Ninguém vai beber hoje, que é dia de trampo. Deixa isso pra sábado de tarde.
? Não, seu Dorico, nóis toma só uma para isquentar, ôtra só pra almoçá, e ôtra só pra banhá, de tardezinha. Eu sei qui nóis tem qui trampá. Se nóis bebê todo dia desse jeito qui tô falano, num vai atrapaiá o serviço não.
? Há... Sendo assim, pode. Só não quero é vê nêgo de porre aqui no serviço, viu?
E daquela manhã em diante, iniciou-se o nosso cotidiano ali naquela beira do Araguaia.
Dorico e João gordo, todas as noites iam dormir em São domingos, não sem antes esperarem o Chicão e o negrão maraqueiro retornarem da pescaria de um só lance de malhadeira, o qual rendia uma caixa de isopor de quarenta litros cheinha de curimatãs, piaus, tucunarés, pacus e outras espécies mais, todos de bom tamanho. Escolhia cada qual o seu cambo de peixes, guardando-os na carroçaria do pampinha do Arnôzinho. Em seguida o João gordo se despedia antes de dizer:
? Vamos lá, Arnôzinho.
? Vamos lá, parceiro.
Na nossa segunda noite naquele barracão empesteado de muriçocas, o Chicão nos ensinou uma maneira de darmos um basta nelas, que nos importunavam tanto durante o sono que mal dormíamos. Disse para eu, que depois de aprontar o almoço que dava também para o jantar, não tinha mais nada para fazer durante o resto do dia, ir até ao curral da sede da fazenda do prefeito, que distava a mais ou menos uns quatro quilômetros do nosso barracão, na beira da estrada que acabava bem no lugar onde estávamos. Que eu levasse comigo um saco qualquer e o enchesse de esterco do curral, mas que não fosse esterco esfarelado; Tinha que ser ressecado e do jeitinho que sai de dentro do gado, em "toletes", como se diz de um monte de fezes. No outro dia, após o almoço, rumei em direção ao dito curral.
O nosso barracão situava-se bem em cima de uma ribanceira, a mais ou menos uns cinco metros acima do nível da água. O fundo do barracão dava para o rio, e a frente para uma clareira pequena, mais ou menos umas quatro linhas de pastos onde pastavam alguns búfalos de propriedade do prefeito. O terreiro do barracão era aquela clareira. O mesmo era rodeado por um pequeno cercado de arame farpado. A peneira da draga era instalada a mais ou menos uns cem metros à esquerda do barracão, no lugar onde as máquinas da Construamec fizeram uma raspagem para ali ser depositado o material extraído do rio. Quem estivesse na parte frontal do barracão, podia divisar a estrada que começava logo após o cercado e estendia-se quase em linha reta, contornada de um e de outro lado por verdes touceiras de capim, até ser engolida por um buraco negro e arredondado, que era a sua continuação mata adentro. O verde claro dos pastos da clareira terminava rente a uma linha horizontal, que era o verde escuro da mata que nos rodeava por três lados e pelos fundos nos cercava o rio.
Saindo da clareira, penetrei no buraco escuro, que de repente se tornara a continuação da estrada agora cheia de curvas, bastante sombreada e de uma leve e suave frieza; Ipês, muricis, palmeiras de babaçu, imbaúbas, mata-matás e o afestoado de várias outras árvores e cipós, desenhavam a fisionomia da paulama daquela região.
O arrulho triste da juriti, o solitário piado da peitica e o canto dos tucanos no cimo dos paus mais altos, preenchiam o silêncio moroso daquela hora quente do dia.
Aquela ponta de mata, de mais ou menos uns oitenta quilômetros quadrados, abrigava uma rica e variada flora e fauna; A pintada era quem mais se banqueteava da criação de bodes e carneiros do prefeito. As capivaras, os queixadas e os bandos de macacos eram quem mais usufruíam dos plantios de arroz e milho daquelas bandas. Com pouco eu saia em outra clareira, agora bem mais ampla. Eram os pastos da fazenda do prefeito. Um quilômetro mais a frente encontravam-se o curral na beira da mesma estrada em que eu caminhava.
Entrei no curral e antes de recolher o esterco, passei as vistas naquela paisagem; O curral era muito bem construído. Mais além, em cima de um tope, uma bela casa construída com quatro varandas. Devia ser a sede da fazenda.
Enchi o saco de toletes de fezes do gado e retornei no rumo do barracão. Pelo caminho eu enchia os meus olhos ao vislumbrar toda aquela exuberante beleza natural e ainda não tocada por mão do homem, enquanto perguntava a mim mesmo: Até quando aquele virgem pedaço de paraíso ecológico ainda permaneceria a salvo da ganância do homem? Com certeza não demora muito para tudo isso ser transformado em capim.
Finalmente cheguei ao barracão. Ainda restava um pouco de dia. Depositei o saco cheio de esterco a um canto, peguei a vara de pesca e fui pescar enquanto a noite não vinha.
Naquela noite o Chicão pegou um daqueles toletes de esterco e enfiando um pedaço de pau fino no seu centro, para depois enfiar a outra ponta do pau no chão, no centro do barracão, ficando aquilo parecido com um cogumelo gigante. Depois pegou um isqueiro e fez fogo em uma das extremidades do esterco enfiado no chão e o deixou fumarando aquele fio de fumaça, feito um defumador. O certo é que um tolete daquele tamanho durava aceso uma noite inteira e posicionando vários deles em pontos estratégicos do barracão, não se via mais nenhuma muriçoca. Somente que o cheiro da fumaça impregnava tudo quanto era de redes e roupas existentes ali. Porém não ligávamos para isso, uma vez que estávamos livres daquele incômodo medonho, que eram as ferroadas irritantes daqueles insetos vorazes; Esterco tinha de sobra lá no curral do Tio Chico.
Pela manhã bem cedo, ainda com escuro, acordávamos pelo ronco do motor do pampinha de Arnôzinho, que vinha chegando com o Dorico e o João gordo. Eu imediatamente providenciava o café, não antes de junto com os outros, ter tomado uma talagada de pinga e mastigado um dente de alho. Depois ia até ao rio, escovava os dentes e tomava o meu gostoso e morno banho matinal. Só então acendia o fogão a lenha e preparava o café da manhã.
? Tomá uma de manhãzinha e mastigá um dente de aio prucima, num dá malária é cum nojo! ? Dizia o negrão segurando o copo de pinga com uma das mãos e com a outra, um dente de alho. O Dioclécio preferia beber a sua no caminho da privada, quando ao se levantar, ia direitinho para lá, levando na mão um dente de alho e olhando para um e para outro lado do caminho, a procura da garrafa escondida por ali assim.
Eu era o encarregado da cozinha, por isso, além de cozinhar, lavar as vasilhas, limpar o barracão, também tinha que lenhar. No dia em que eu tirava para lenhar, lenhava logo o suficiente para abastecer o fogão por vários dias seguidos. Quando acabava o esterco, eu era quem tinha que ir buscar mais, lá no curral do Tio Chico. Por tanto, ao aprontar o almoço, que também dava para o jantar, não tendo mais o que fazer durante o resto do dia, quando eu não ia pescar, ia ajudar os companheiros na montagem da draga.
Na primeira semana tudo ficou pronto; A balsa estava montada e sobre ela uma cobertura de palha de babaçu, que servia para dar sombra ao maraqueiro e ao seu ajudante, o Dioclécio; Também os canos e as mangueiras já estavam todos conectados, o molinete a posto, a maraca no fundo do rio e a chupadeira só esperando a hora de sugar seixo. A peneira também estava construída e lá em cima dela estava o Chicão, esperando os canos vomitarem material. Faltava somente dar partida no motor.
? Tudo pronto aí? ? Perguntou o maraqueiro.
? Tudo ok, pacêro! ? Respondeu o Chicão lá de cima da peneira.
Era já de tardezinha e iríamos somente fazer um teste de primeiro momento. A expectativa de ver aquela geringonça funcionando era grande e geral. Se tudo corresse bem, iríamos botar para "rodar" de verdade só no dia seguinte, logo bem cedo.
O negrão deu a partida no motor. O motor roncou assustando um bando de tetéus que bibicavam na areia da beira do rio e levantaram vôo grasnando de susto. O motor permaneceu funcionando em marcha lenta e depois de alguns minutos acelerou a toda força. Com pouco começou a jorrar água lá em cima na peneira. O negrão movimentava o braço da maraca para um lado, para outro, de repente ouviu-se o crepitar do seixo que passava por dentro dos canos de ferro. Logo começou a despejar seixo na peneira e o Chicão começou o seu bate-bate, batendo com uma pá nas peneiras, para facilitar o escoar do material pelas bitolas. A draga funcionou por quase duas horas sem nenhum problema. Ao desligar o motor, em baixo das peneiras havia seixo que dava para mais de cinco carradas. Diante de tal sucesso, a alegria foi geral. Tudo deu certo. Agora era só produzir. O dinheiro viria com certeza e com fartura.
Naquela noite tomamos umas quatro garrafas de cachaça. Os companheiros todos cantavam de alegres que estavam e eu os acompanhava tocando o meu violão que até aquele dia se manteve o tempo todo pendurado numa forquilha a um canto do barracão.
A segunda semana foi toda de trabalho e como não havia mais espaço para estocar o material, além disso não tínhamos uma máquina para tirá-lo de debaixo da peneira, O Dorico e o João gordo resolveram ir até à cidade, para avisarem ao gerente da Construamec, que já podiam vir fazer o transporte da primeira remessa de seixo e areia. No dia seguinte acordamos pelo barulho dos motores das caçambas que chegavam a comboio, e mais atrás uma pá carregadeira.
Depois de terem saboreado um bom caldo de peixe, regado com uma boa talagada de pinga, o operador da pá carregadeira deu início ao carregamento das caçambas. Uma a uma foram sendo carregadas, depois saíram no mesmo comboio.
O operador desligou a máquina e veio para o barracão.
? Parece que vai dar umas cinco viagens de cada caçamba. ? Disse o operador.
? Quantos metros pega cada uma? ? Indagou o João gordo.
? Uns doze metros cúbicos. ? Falou novamente o operador.
? Pois então vai dar cento e vinte e cinco carradas ? Afirmou o Dorico.
? É mais ou menos isso aí ? Finalizou o operador.
? Cento e vinte e cinco vezes doze... ? João gordo calculava o valor em dinheiro que renderia aquela primeira produção.
? É. ? Voltou a falar o Dorico ? Vai dar pra pagar metade das dívidas... Os funcionários, só no fim do mês.
? Olha, ? Disse o operador ? O gerente, o seu ceguinho, mandou dizer que as caçambas só poderão vir aos sábados. Ele falou pra vocês trabalharem durante a semana inteira, que no sábado nós viremos buscar a produção.
? Há, pode deixar, ? Afirmou o João gordo esfregando as mãos de contentamento.
? Turma, ? Continuou ? Vamos trampar agora só na segunda. Arnôzinho, vai lá no São Domingos e me traz mais cachaça, que a daqui já tá acabando. Hoje nós vamos dormir aqui com a turma e vamos beber até dizer: Chega!
? Chicão ? Gritou o Dorico ? Enquanto ainda tá cedo, vai lá no pedral, vê se pega uns tucunaré pra nós tirar o gosto.
? É pra já, pacêro.
Naquela noite o violão soou até de madrugada, ao mesmo tempo em que a cachaça era entornada goela adentro nos companheiros. Só eu não tinha sossego, pois de vez em quando tinha que largar o violão para ir assar um suculento tucunaré.
Passou um mês inteiro. Tudo corria dentro da normalidade. A produção ia de bom a melhor, e as dívidas dos patrões já haviam sido pagas, assim também como o nosso primeiro salário. Eu só não me sentia melhor naquele lugar agradável, porque padecia muito da saudade da minha esposa, quem eu não via já por um mês inteiro.
Entrando já para o segundo mês de trabalho, no dia em que vieram fazer o nosso pagamento, o Dorico e o João gordo trouxeram as suas esposas e com elas veio também a minha. Matamos a saudade um do outro; Pescamos, tomamos banho e dormimos juntos naquela noite. No outro dia partiram e nós ficamos alimentados pela promessa de que no sábado próximo trariam as esposas de todos os operários da draga. A do Chicão já estava ali pertinho, pois ele residia a um quilometro a cima, na margem do Araguaia e quase todas as noites entrava na sua canoinha e remava rio acima; Ia dormir em sua casa .
E assim entramos no terceiro mês naquela beira de rio; Depois de fazer o almoço, eu pegava a canoa do Chicão, um caniço, linha e vários anzóis, algumas minhocas e ia pescar. Ao retornar, sempre trazia uma variedade de peixes saudáveis e fresquinhos; Piaus, tucunarés, piranhas, traíras, surubins...
Apesar de não faltar carne vermelha naquele barracão, todos os dias ali se comia peixe; Pela manhã, ainda com escuro, o pirão de surubim, após uma boa talagada de pinga, que era para espantar o frio. Ao meio dia, o tucunaré assado, depois de outro trago bem servido, que era para despertar o apetite e de tardezinha, mais uma, desta vez com um dente de alho, que era para fechar o corpo contra a malária e também abrir o apetite para o pirão de peixe com arroz.
A minha esposa aprendeu a gostar daquele lugar, e por isso, todos os sábados vinha com minha irmã, a esposa do Dorico e com a esposa do João gordo.
Não tinha vida mais agradável do que aquela que eu ia levando. O terceiro salário já havia saído e o meu veio um pouco mais gordo que o dos demais, talvez por eu ser parente de um dos patrões.
Como tudo que é bom dura pouco, numa manhã, pelas nove horas, quando eu preparava o almoço, ouvi o ronco do motor da draga ser interrompido logo depois de um forte barulho de ferro se partindo. Era o motor que acabava de "bater a biela". Depois, somente as vozes dos trabalhadores:
? O qui foi?
? Sei não, parece qui o bichão aqui bateu a biela.
? E agora?
? Agora tem qui levá pa marabá, pa vê o qui foi qui deu nesse troço.
Naquele mesmo dia o Dorico e o João gordo foram a São domingos e retornaram com o Abílio, no azulão, para fazerem o transporte do motor até a Marabá. Nós que ficamos no barracão, passamos o resto daquele dia tomando cachaça enquanto eu tocava o meu violão.
No outro dia, estávamos todos deitados em nossas redes, pelo meio dia, quando de repente ouvimos o ronco do motor do azulão, prestes a aparecer na clareira, saindo daquela boca negra, que era a estrada entrando na mata.
? Já? ? Indagou o negrão.
? Ainda nun deu tempo de dismontá aquele motôzão não! ? Exclamou o Dioclécio ? e ainda tem qui trocá as peça, montá ele de novo e fazê a viage de volta... Nun deu tempo não.
Então ficamos todos em silêncio, na escuta, ouvindo aquele barulho que agora repentinamente ia esvaindo-se, como se estivesse fazendo viagem de volta.
? Ôxente! ? Exclamou o negrão ? qui diabo é isso? Já fôimbora?
? Não! ? Entrou o Chicão ? nun tem Cuma, a istrada nun tem lugá prêle fazê a curva não. Ele tinha qui fazê a volta era aqui na clarêra.
Diante daquilo, ficamos todos se entreolhando, pensativos e ensimesmando naquele acontecimento inexplicável.
? Deve tê sido ôtro carro ? Disse o Ireneu ? maderêro rodando puraí, purôta vicinal, né?
? Não, ? Falou o Chicão novamente, ele que conhecia aquela região como ninguém ? nun tem ôtra istrada aqui não. A qui fica mais perto é a São Francisco, daqui uns déis quilômetro.
? E outra coisa, ? Disse eu ? Aquele barulho era do azulão, e parecia vir chegando ali na boca da mata.
? Intão foi o cão! ? Exclamou novamente o Dioclécio.
Levantamo-nos das redes e tomamos cada um a sua talagada. Depois de cada um ter feito o seu cigarro, voltamos a nos deitar e a filosofar sobre aquele assunto novo.
Pelas três horas da tarde, quando já estávamos um pouco embalados pela pinga, o azulão voltou a roncar, dessa vez mais nitidamente, chegando a reboar o seu eco sob a cobertura da mata.
Interrompemos a nossa prosa e ficamos em silêncio, ouvindo aquele barulho que aumentava gradualmente, como se o caminhão fosse chegando lá na boca da mata, para depois, da mesma forma ir diminuindo, como se estivesse voltando, até perder-se na distância.
? Viu? ? Disse o negrão se levantando da rede ? agora já tá virando é sacanage. O qui caráio é isso?
? Só pode sê assombração! ? Exclamou o Ireneu ? será qui nesse barraco já morreu gente?
? Hum, Hum, e tu credita em fantasma, Ireneu? ? Indagou o Chicão.
? Quem sabe? Tudo ixiste nesse mundão... Será qui aconteceu alguma coisa ruim cum Dorico mais o João gordo? Será se o azulão tombou...
? Qual é, cara, ? Cortou o Chicão ? corta essa!
Pela tardinha daquele mesmo dia, aquele barulho voltou a nos surpreender, para acabar de engordar a nossa cisma.
Durante toda aquela semana a coisa se repetia, agora de hora em hora e a nossa curiosidade se transformou em pavor na maioria dos companheiros. Eu mesmo não sentia medo algum daquilo, porém me impressionava muito aquele fato sem explicação.
Houve um dia durante aquela semana, que nós saímos do barracão e andamos até chegar à fazenda do tio Chico, no objetivo de vermos algum rastro ou vestígios de algum caminhão naquela estrada, todavia não encontramos pista alguma. Então voltamos para o barracão e tão somente chegamos ao seu limiar, o ronco do azulão soou novamente, provocando um ar de surpresa, espanto e pavor no semblante dos mais medrosos.
? Qué sabê duacoisa? ? Falou o Dioclécio ? Amanhã mermo eu vô mimbora. Esse imprêgo já gorô mermo. Num vê a istrada cumé quitá? È um lamaçal só. Cum esse chuvêro todo, aqui nun vai entrá nem jegue, qui dirá o azulão cum aquele motôzão. E pra terminá, a Construamec nun vai mais pudê mandá as caçamba vim buscar sêcho e nois vamo vivê do quê? E ainda tem mais esse fantasma agora pra atazaná nossa paciência e dêchá nois nervoso. Tem jeito não, amanhã eu vazo.
? É rapaz, ? Disse o Ireneu ? também concordo. Cum esse chuvêro todo, a Construamec vai é merda, vim buscá mais sêcho aqui. E esse fantasma? Se nun é um fantasma, o qui diabo é intão? Isso deve sê um aviso de coisa ruim, um mau agôro... Vou é mimbora, e amanhã mermo cum Dió.
No dia seguinte, pelas sete horas da manhã, o Dioclécio e o Ireneu, ambos com suas borocas sobre os lombos, se despediam de nós, quando o ronco do azulão soou, como se também desse o seu adeus aos dois camaradas que nos iam deixar, desta vez bem mais forte e nítido, feito uma ordem de partida. Dioclécio e Ireneu apressaram-se em tomarem a última pinga antes de pegarem a estrada;
? Fiqué pôrra! ? Exclamou o Dioclécio.
? Rumbora, pacêro. ? Completou o Ireneu ? Tchau prus qui fica aí, na companhia desse fantasma, brrrrrrrrr!
O motor da draga havia pifado no sábado anterior e já estávamos no outro sábado, dia em que somente eu e o Chicão ainda restávamos de funcionários naquele barracão. O negrão também nos abandonou no dia seguinte ao da partida do Dioclécio e do Ireneu. Além da desilusão pela fisionomia da estrada, o aguaceiro que despencava todas as noites e que transformava a estrada a cada momento em um lamaçal intrafegável, de ponta a ponta, também havia o medo do fantasma do barracão, motivos que levaram o negrão a também partir sem pensar duas vezes.
? Aqui nun vai mais dá roque não, pacêro, a istrada nun dá mais pra entrá nem carro de boi, a valí caçanba pra fazê o transporte do sêcho. Purôto lado, já recebemo o salário do mês, e essa semana passada nun trabaiamo não; Só fizemo foi matá rancho. Purisso, diga prus patrão, que eles nun me deve nada não, viu? Tchau pra vocês.
Enquanto o negrão entornava a sua dose de pinga no copo, o som do escoar da cachaça foi substituído pelo ronco do azulão. Era o fantasma do barracão que pregava o seu último susto no negrão que naquele momento esbugalhou os olhos, chegando quase a saltarem das suas órbitas, pelo tamanho do susto que tomou. Sorveu gulosa e apressadamente a dose de pinga, não conseguindo evitar que parte dela lhe escorresse pelos cantos da boca e saiu fazendo uma horrível careta e ameaças de vômito. Com pouco se sumiu tragado pela boca da mata.
Ficamos somente eu e o Chicão.
? E tu, Chicão? ? Indaguei ? não vai embora também, com medo do fantasma?
? Qui nada, pacêro, eu nun tem medo nem dos vivo, quanto mais de fantasma.
? E o nosso emprego? ? Voltei a indagar ? do jeito em que se encontra esta bendita estrada...
? Qui nada, pacêro, pra qui serve o rio aí?
? O rio?
? É, o rio, ora!
? Como assim?
? Meu pêxe, aqui tem sêcho de sobra, qui dá pa pagá o conserto do motô da draga, pagá também o nosso salário e pa pagá um barco pa carregá o material até no Apinagés. De lá pu São domingos, a Construamec se vira. E óia qui do Apinagés pra lá, fica muito mais perto do qui daqui, viu?
? É, tens toda razão! E o fantasma?
? É Cumêu digo; Fantasma nun ixiste não!
? Chicão, o que é que você acha que deve ser esse ronco parecido com o do azulão, que há uma semana vem pregando susto na gente?
? Há, eu só me incabulei no primêro dia, depois...
? Depois o que?
? Pacêro, tu prestô tenção nuancoisa? Esse fantasma só prega susto de dia. De noite não. Fantasma, se é qui ixiste mermo, prega susto a quarqué hora do dia ô da noite.
? E daí?
? Daí é qui eu acho qui o Dorico mais o João gordo vai chegar hoje, nem qui seja altas hora, de barco, e amanhã eu te mostro o qui é esse fantasma, viu? Agora rumbora tomá uma.
? É mesmo, Chicão?
? É, pacêro.
Dito e feito. Naquela mesma noite, estávamos deitados em nossas redes, a conversar, de vez em quando tomando uma, quando principiou ao longe, o ruído do motor de um barco e aos poucos foi se aproximando, até que por fim, já muito próximo ao nosso porto, foi diminuindo aquele barulho, quando parou de vez, permanecendo somente o das vozes, das quais identificamos como sendo uma delas a do João gordo. Levantamo-nos e fomos direto ao porto que distava a uns cem metros do barracão.
? E aí, parceiros ? Saudou-nos o João gordo ? tudo legal?
? Beleza, pacêro! ? Exclamou o Chicão.
? Vambora ? Continuou o João gordo ? venham ajudar a desembarcar o motor.
? Ficou bom? ? Indaguei.
? Só o milho, ? Afirmou o Dorico.
? Então vamos lá. ? Concluí.
? Cadê o Arnôzin? ? Indagou o Chicão.
? O Arnôzinho ? Respondeu o Dorico ? agora daqui pra frente vai ficar rodando só do São Domingos para o Apinagés. Só vai vir aqui se for pra turismo. De agora em diante, pelo menos durante esse inverno medonho, nós vamos transportar o seixo é de barco, até no Apinagés. De lá pra São domingos, já é com a Construamec.
? Pôrra! ? Exclamei ? quando estou a pensar que vocês dois estão indo, já estão é voltando.
? É claro ? Entrou o João gordo na conversa ? a estrada está uma merda. Constatamos isso hoje pela manhã, quando viemos até lá na entrada, na beira da Transamazônica, e tivemos que voltar para o Apinagés, no azulão carregado com esse motôzão.
Já combinamos com a Construamec, de ela ir pegar o seixo lá no Apinagés, que por sinal ainda fica mais perto para eles; Aceitaram na hora, não foi, Dorico?
? Hum, hum...
? Os barqueiros vão dormir aqui com nós, para amanhã bem cedo começarem o transporte do material que aí está estocado ? Concluiu o João gordo.
Tomando uma aqui e acolá, lá pela meia noite foi que terminamos de estacionar o motor em seu devido lugar. Testamos o seu funcionamento, o despejar do seixo lá em cima na peneira e constatamos que estava tudo bem, melhor ainda que antes. Nesse período foi que deram pela falta dos outros funcionários.
? Cadê os outros? ? Perguntou o João gordo.
? Foram todos embora. ? Respondi prontamente.
? Ôxente, por quê?
? Primêro ? Entrou o Chicão ? disiludido cum a istrada ruim. Dispois, se borrando de medo do fantasma do barracão.
? Fantasma do barracão? ? Interrogou novamente o João gordo com um ar de surpresa. ? que caralho é isso?
? Amanhã eu amostro pra vocês tudo, tá? ? Concluiu o Chicão.
No dia seguinte, domingo, logo bem cedo, após o café da manhã, o barco começou a ser carregado com o seixo estocado. O Dorico e o João gordo decidiram ficar para irem na última barcada, lá pela noitinha. Estávamos sentados em troncos rolados a moto serra, os quais nos serviam de bancos, em redor de uma garrafa de cachaça, eu, o Chicão, o Dorico e o João gordo, um tacho de peixe a ferver no fogão, conversa vai, conversa vem, quando subitamente o nosso papo foi interrompido pelo ronco do azulão. O João gordo e o Dorico imediatamente puseram-se de pé e saíram do barracão, com os olhos fitos na boca da mata, convictos de ser o azulão se aproximando da clareira.
? Como diabo o Abílio conseguiu chegar até aqui, nessa estrada que é um atoleiro só? ? Indagava o João gordo.
? Não, não tem como. ? Afirmou o Dorico.
Assim como começou, aquele ruído foi diminuindo, diminuindo e nada do azulão apontar na estrada. Tudo como das outras vezes.
Os dois resolveram voltar para debaixo do barracão.
? Agora eu vi merda. ? Afirma João gordo.
? Que caralho é isso? ? Indagou Dorico ? é esse o fantasma do barracão?
? É, pacêro. ? Confirmou o Chicão com um ar de riso.
? Então mostra logo para nós o que diabo é isso, Chicão. ? Entrei na conversa.
? Dêchêle voltá, ? Voltou a falar o Chicão ? num vai uma hora, e ele volta de novo.
Voltamos a nos sentar nos troncos, tomamos mais uma cada um, trouxemos de volta a tranqüilidade da nossa prosa, quando mais ou menos uma hora depois, fomos novamente surpreendidos por aquele barulho de caminhão com descarga furada, parecendo que vinha se aproximando não muito distante.
Como se tivesse tomado um choque elétrico, o Chicão imediatamente se levantou e dirigiu-se no rumo do meu violão que estava pendurado pelo braço em uma forquilha do barracão. Pegou-o e o trouxe até nós:
? Tá veno? O ronco do azulão tá saino é de dento desse violão.
? É mesmo! ? Exclamamos os três em côro.
? E o que será isso? ? Perguntou o João gordo.
? Calma! ? Exclamou o Chicão, ao mesmo tempo em que depositava o violão no chão, com as cordas voltadas para cima, bem no meio da nossa rodada. O barulho continuava e quem o ouvia dali de dentro do barracão, tinha a impressão de que ele vinha da estrada. Com pouco, saiu de dentro do violão um marimbondo grande, daqueles que fazem as suas moradias de barro, o "João de barro" e antes de voar para fora do barracão, ainda permaneceu flutuando por algum tempo, bem em frente ao orifício redondo do violão, num movimento de vaivém, atitude essa que fazia com que aquele barulho se tornasse ainda mais nítido e semelhante ao ruído da descarga do azulão.
? Viu? ? Indagou o Chicão.
? Caralho! ? Exclamou o Dorico.
? Pôrra! ? Exclamou também o João gordo.
? Esse fela da puta, ? Voltou a falar o Chicão apontando para o marimbondo que ainda flutuava em frente às cordas do violão ? aresorveu fazê a casa dele bem aí dento; Ele é qui é o fantasma do barracão; Toda vêis quêle chega, quando vai se aproximando do violão, a gente pensa qué o azulão chegando. Quando ele vai saino, a gente pensa qué o azulão inimbora, viu?
Diante daquela sábia explicação do Chicão, caímos todos em estrondosas gargalhadas.
? Chicão, ? Disse o João gordo ? bota esse violão lá onde ele estava, e deixa esse azulão roncar até dizer: Chega!
? É pra já, pacêro.
Depois de tomarmos mais algumas talagadas, fiquei calado, na espera de poder demonstrar meus conhecimentos adquiridos por força de muita leitura, coisa que eu gostava de fazer quando estava a beber em meio a uma rodada de leigos, até que o João gordo perguntou mais para si mesmo do que para os demais:
? Como é que pode um marimbondo e um violão provocar um som igualzinho ao ronco do azulão?
Imediatamente, quase antes mesmo de ele fechar a boca, eu entrei com as minhas explicações;
? Isso é um fenômeno, parceiro. Chama-se efeito da ressonância.
? E o que caralho é isso? ? Perguntou novamente o João gordo, sentado no tronco, de braços cruzados e balançando as pernas num vaivém nervoso.
? Todo corpo ? Retornei com as minhas explicações ? tem a sua freqüência de ressonância. Por tanto, as asinhas desse marimbondo, ao realizar seus rápidos movimentos de vaivém, provocam um som de certa freqüência, freqüência essa que por ironia do destino, coincide com a freqüência de ressonância das cordas do meu violão. Quando uma freqüência sonora coincide com a freqüência de ressonância de um corpo em repouso, o que está em repouso passa a vibrar de acordo a freqüência sonora que está em atividade. Sendo o violão um instrumento amplificador do som de suas cordas em vibração, conseqüentemente também amplifica o barulho das asinhas desse marimbondo, quando o mesmo se aproxima a certa distância desse orifício. E por coincidência, esse som sai identicozinho ao ronco do azulão. Quando o marimbondo vem chegando, o som amplificado das cordas e das suas asas dá a impressão de que é o ronco do azulão chegando ali pela boca da mata; Quando o marimbondo vai saindo, a gente tem a impressão de que é o azulão indo-se já lá da boca da mata para frente... Estão satisfeitos?
? Tá direito, meu peixe!
? Sim, ? Entrou o Dorico na conversa ? e por que é que tu, Chicão, não disse logo que o fantasma era apenas um marimbondo? Assim tinha evitado os outros de irem embora se borrando de medo. Agora temos um novo problema; Onde arranjar um maraqueiro com a experiência do negrão? Ajudantes até que não é problema, mas um maraqueiro...
? Qui nada, pacêro, ? Respondeu o Chicão ? nesses quase trêis méis qui tô trabaiano aqui nessa draga, eu aprendi a labutá cum maraca. O negão minsinô os macête tudinho. Hoje, se eu subesse iscrevê, eu era capais de iscrevê um livro só sobre maraca, tá intendeno?
Caímos novamente em gostosas gargalhadas.
? Então, ? Voltou a falar o João gordo ? tu queria mesmo era tomar a vaga do negrão, né? Foi por isso que não revelou o segredo do fantasma, hem?
? Nada, pacêro; Ele quizimbora, pobrema dele. Cabra medroso nun selve pa trabaiá imbêra de rio. E ôtra coisa; Eu tem dois homão fio meu, pai de famia, quistão precisano de imprêgo; Posso chamá ês pa trabaiá aqui cum nois?
? Vai, Chicão, trás os homens, ? Disse o João gordo, e depois se virou para mim:
? Cozinheiro, seu fela da puta, pega aquela panela de surubim e trás ela pra cá, pro meio da rodada, que hoje nós vamos beber até dizer: Chega, viu? Amanhã é dia de trampo e nós temos emprego garantido até ao final da obra, uns três anos mais ou menos, viu?
O céu estava nublado. Nuvens escuras ameaçavam chuva para antes do anoitecer. Uma brisa fresca e suave bafejava o interior do barracão. Lá além, no último galho de um pau seco, um casal de tucanos emitia o seu canto, escritinho latidos de cachorro novo. Vez por outra se ouvia a rabanada de algum peixe nas águas do Araguaia, ali próximo ao barracão.
Enquanto eu preparava a panela de peixe, para depois trazê-la para o meio da rodada, fez-se um silêncio total de vozes humana. Ouvia-se somente o som da natureza; O vento malinando nas águas provocava o um barulho gostoso, de encher os ouvidos; Chuááá... Chuááá... Da cobertura de palha do barracão, ouvia-se o rapa cuia de uma rã, que chamava a chuva; Croot... Croot... Croot... Crooooot...
O canto alegre dos bem-te-vis, das pipiras, o arrulho manso da juriti, o piado dos patos selvagens que passavam aos bandos, voando bem rente as águas lá no meio do rio, o côro entoado pelos guaribas, que ecoava lá na mata, toda aquela harmonia sonora foi repentinamente rompida pelo ronco provocado pelas asas do marimbondo, que novamente se aproximava da boca do violão, trazendo mais material para a construção da sua casinha e provocando o ronco do azulão; Uuuoonnn... Uuuoonnn... Uuuoooonnnnnnnn... Entreolhamo-nos mais uma vez e rompemos em estrondosas gargalhadas. O João gordo, entre uma e outra gargalhada, já um pouco abastecido de alegria da pinga, gritava a todo pulmão:
? Êêêta azulão da pôôôrra...!