O ETONISMO PERANTE UMA ANGOLA EM BUSCA DA CULTURA DE PAZ[1]

 

Teixeira Gregório Jamba[2]

Membro da Associação Etonista de Filosofia

 

Resumo: O presente artigo tem como objectivo abordar sobre uma Angola que busca a cultura da paz, discorrendo sobre o conceito de cultura, paz e perspectivas para efectivação de uma Angola rodeada de paz em todas suas dimensões política, cultural e social.

Palavras-Chave: Cultura de Paz, Diálogo, Tolerância, Harmonia social.

 

Abstract: This article aims to address an Angola that seeks the culture of peace, discussing the concept of culture, peace and perspectives for the realization of an Angola surrounded by peace in all its political, cultural and social dimensions.

Keywords: Culture of Peace, Dialogue, Tolerance, Social harmony.

 

  1. Introdução

 

O nascimento de uma sociedade é identificada por aquilo que a gerou e, as ideias, a formação de um pensamento cultural, político, social e económico constituem bases para sua estruturação. A construção do pensamento de qualquer sociedade passa sempre por épocas e fases determinadas e distintas que carregam consigo experiências negativas e positivas que contribuem para seu estar nos anais da historia.

Após um longo período de luta anticolonial, Angola entrou num momento de conflito interno entre os angolanos que, felizmente veio a ser superado passados, aproximadamente, 27 anos de guerra civil entre os movimentos revolucionários liderados por Holden Roberto, Agostinho Neto e Jonas Savimbi. Os projectos diferentes para o futuro governo de Angola no imaginário dos movimentos de libertação nacional; o grande montante de recursos minerais, principalmente diamantes e petróleo existentes no território angolano, que, além de atiçarem a cobiça e os interesses internacionais, em si mesmas sediavam o conflito entre os angolanos; a intervenção de países como ex-URSS, Cuba, EUA, Zaire, África do Sul e outros actores internacionais, especialmente no auge da Guerra Fria, os quais polarizaram mais ainda as disputas internas pelo controle do governo de Angola; e a postura tendenciosa de Portugal na elaboração e aplicação do modelo de governo de transição de colónia para a independência através do Acordo de Alvor, cujos signatários foram o governo português, o MPLA, a UNITA e a FNLA que influenciaram de forma decisiva o agravamento das disputas no país, José (2008, p.167) citado por Matos (2020).

Não obstante os vários impasses, foi possível a assinatura de muitos acordos quer com o considerado colonizador bem como entre os angolanos conflituantes, dentre eles destacam-se: o de Alvor, que permitiu o governo de transição; de Bicesse que nos conduziu às eleições multipartidárias; Memorando de Luena que marcou o fim da guerra civil e o alcance da paz e o processo de reconciliação. Embora, como entende Matos (2020), a paz e a reconciliação em si, não uniu os angolanos, nem tão pouco provocou um impedimento entre os cidadãos divididos ideologicamente, porque os membros do partido no poder hostilizam os membros do partido da oposição, a população angolana continua profundamente dividida entre os patriotas e os antipatriotas, com acusações de quem matou mais, passando a criar uma rotulação ingénua aos cidadão de que, ou pertences aqui ou és daí.

A dialéctica do contexto cultural actual de Angola transporta-nos para a reflexão do modo de ser e estar connosco e com os outros, uma cultura onde os valores morais são teimosamente relegados para o poço, desvirtuando os pressupostos bantu, desligado da noção de «muntu» e «ubuntu», de harmonia social. Perante este contexto, questionamos o seguinte: Em que medida a busca por uma cultura de paz traria harmonia e bem-estar para o angolano?

 

  1. Enquadramento Teórico

 

“Não basta falar de paz. É preciso acreditar nela. E não basta acreditar nela. É preciso trabalhar por ela”. [Eleanor Roosevelt]

 

A cultura é definida de tendo em conta vários aspectos da vida humana. Existem várias definições sobre a mesma, mas vamos nos ater a definição apresentada pelo Tylor (1871), que compreende a cultura como um complexo no qual estão incluídos conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.

Fazendo uma abordagem sobre a cultura de paz, a organização DAS/UFRGS (2021), apresenta a definição de paz e cultura para melhor esclarecer sobre o que venha a ser a cultura de paz. No entanto, o conceito de paz está atrelado à possibilidade de viver em harmonia, concórdia, buscando minorar (diminuir) a criação de guerras e a ocorrência de conflitos pessoais e não só. Enquanto a cultura está relacionada à produção de significados mentais que compõem o conjunto de crenças, opiniões, hábitos e atitudes de determinada comunidade em um momento histórico definido. Nesta ordem de ideia, o homem na sua actuação como ser social nada mais é do que a reprodução contexto histórico-cultural.

A paz sempre se fez necessária na vida do homem, embora seja ele o causador da sua ausência. A paz só pode ser alcançada pelo comportamento quotidiano. É esta a mais importante contribuição da proclamação do ano 2000 como Ano Internacional da Cultura da Paz. O Manifesto 2000 foi lançado em Paris (França), no dia 4 de Março de 1999, e apresentado à Assembleia-Geral das Nações Unidas em sua reunião da virada do milénio em Setembro do ano 2000. Com esta iniciativa, a UNESCO e as Nações Unidas tornaram claro que a paz não é apenas uma condição política ou uma aspiração ética mas uma categoria moral e até cultural do homem. Por essa razão, movido pelo mesmo espírito, na altura, o antigo Director-Geral da UNESCO, Federico Mayor Zaragoza, disse: “Para transformarmos uma cultura da guerra numa cultura da paz, temos que mudar os valores, atitudes e comportamentos do passado. Em vez do cínico provérbio 'se queres a paz, prepara a guerra', temos que proclamar se queres a paz, prepara-te para a paz e tenta construí-la na tua vida quotidiana” UNESCO (2000, p. 41).

As discussões sobre a cultura de paz reservam marcas muito antigas, fruto das várias guerras que foram acontecendo ao longo da história da humanidade. Mas lembra o antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, que a verdadeira paz é muito mais do que a ausência de guerra. É um fenómeno que envolve desenvolvimento económico e justiça social. Supõe a salvaguarda do ambiente global e o decréscimo da corrida aos armamentos. Significa democracia, diversidade e dignidade; respeito pelos direitos humanos e pelo estado de direito; e mais, muito mais. Pois, a guerra começa na mente dos homens, é na mente dos homens que se devem construir as defesas da paz.

Portanto, é responsabilidade de cada um colocar em prática os valores, as atitudes e as formas de conduta que inspirem uma cultura de paz. Todos podem contribuir para esse objectivo dentro de sua família, de seu bairro, de sua cidade, de sua região e de seu país ao promover a não-violência, a empatia, a tolerância, o diálogo, a reconciliação, a justiça e a solidariedade em atitudes quotidianas.

 

  1. Análise e Discussão

 

No âmbito de mais uma celebração da paz em Angola, o professor da Universidade do Minho, Eugénio Alves da Silva, sustentou a necessidade de se continuar a trabalhar “arduamente”, visando a conso­lidação dos inúmeros ganhos da paz. Ao presidir a palestra sobre o 4 de Abril, Dia da Paz e da Reconci­liação Nacional, promovida pela Embaixada de Angola em Portugal, Eugénio Silva enumerou os feitos da paz no domínio político, económico, social, patrimonial, jurídico, entre outros que, na verdade não são sentidos por uma maioria da população. Pois, a liberdade, os direitos civis, a participação na vida pública, bens e serviços, o sentido de justiça e bem-estar quase que são inexistentes para essa maioria.

A desorientação generalizada a que assistimos, por conta da carência dos princípios morais, dos parâmetros válidos para os próprios juízos e para a própria conduta, teve como consequência lógica a perversão dos costumes, pois as pessoas, mais do que nunca, tornam-se, dia apos dia, escravas dos seus próprios instintos: o egoísmo, o prazer, o ódio, o poder e a violência, traindo, deste modo, a cultura angolana genuína, propensa ao respeito e à defesa da vida, ao altruísmo, à hospitalidade, ao dialogo, ao convívio, à paz, à amizade, etc. Imbamba (2003, p. 131).

Neste sentido, tanto a cultura de guerra quanto a de paz apresentam raízes profundas na história, tendo ambas se reproduzido lado a lado dentro de uma mesma sociedade. E, segundo Imbamba (2003, p.105), o mito da independência, acrescento, e da paz trouxeram a confusão, a instabilidade, insegurança, intolerância, corrupção, a mentira e os desmandos instalaram-se no dia-a-dia da vida dos angolanos; os interesses nacionais passaram a ser condicionados e confundidos com os interesses partidários, pessoais, fazendo prevalecer a vontade de guerra sobre a vontade de paz, progresso social, político e económico, fazendo nascer um homem mal orientado.

Assim, torna-se meio complexo desenrolar sobre a cultura de paz numa sociedade onde cada um busca os seus interesses não importando quem sairá magoado com as suas acções. No entanto, tal como em Kant que para termos a lei moral precisamos antes ter a ideia de bem, de igual modo para cultura de paz, só será possível se tivermos a ideia de paz, tolerância, respeito ao outro, empatia, sensibilidade, etc…

E é sobre esse espírito que nasce o Etonismo, uma corrente com matriz filosófica que encontrou na tolerância as bases para construção de uma Angola em que os angolanos sejam capazes de transmitir um ao outro a tranquilidade, concórdia, a paz e a harmonia social. Que nas palavras Professor Batsîkama, o maior teórico da corrente (sd. p. 1), a definição articulada por Etona é que o Etonismo é um

«diálogo tolerante entre o Eu, o Não-Eu e o Outro», baseando-se nas afirmações da produção artística de António Tomás Ana. Trata-se de uma leitura pictórica e escultórica sobre a dinâmica social de Angola. As características dos dialogadores (eu, não-eu e outro) determinam a tolerância enquanto método dialógico da sociedade plural. Um tipo de dialéctica evoluée, que deixa de ser choque das contrariedades que proporciona a verdade para ser, desta vez, equilíbrio entre verdade tautológica, probabilidades da verdade e impossibilidades da verdade. A verdade tautológica (eu) e probabilidades da verdade (não-eu) determinam o reflexo à volta da realidade, ao passo que as impossibilidades da verdade (outro).

Portanto, o Etonismo é o chamamento da razão do tolerado e a transmissão da paz de espírito do tolerante. É desligar-se dos desejos egoístas e solipsista, é aceitar a nossa condição de seres falhos, é buscar no outro o princípio e o fim da nossa existência, é desconstruir os nossos complexos, é perceber as nossas limitações, é aprender a desaprender a nossa condição diária, é saltar para o outro lado e ter a possibilidade de ter dupla visão, etc. O Etonismo compreende as manifestações expressas nas obras artísticas de Etona. Apresentação da harmonia descomplexada entre o eu, o não-eu e o outro, como fundamentos do Etonismo demonstrando a tolerância por via racional movido pela força vital que caracteriza o bantu. Neste sentido, é importante a promoção da cultura da razão tolerante, da paz, do diálogo, do viver na diversidade; sentir que quando adentramos no Etonismo instruímos e educamos o homem a aprender a viver consigo mesmo e com os outros num processo participativo e dinâmico.

Desta feita, a cultura de paz é uma cultura que promove a diversidade pacífica. Tal cultura inclui modos de vida, padrões de crença, valores e comportamento, bem como os correspondentes arranjos institucionais que promovem o cuidado mútuo e bem-estar, bem como uma igualdade, equidade que inclui o reconhecimento das diferenças, a guarda responsável e partilha justa dos recursos da Terra entre seus membros e com todos seres vivos, Boulding (2000, p. 1).

Segundo a UNESCO (2003), a Cultura de Paz se constitui dos valores, atitudes e comportamentos que reflectem o respeito à vida, à pessoa humana e à sua dignidade, aos direitos humanos, entendidos em seu conjunto, interdependentes e indissociáveis. Viver em uma Cultura de Paz significa repudiar todas as formas de violência, especialmente a cotidiana, e promover os princípios da liberdade, justiça, solidariedade e tolerância, bem como estimular a compreensão entre os povos e as pessoas

Se o homem é produto do processo educacional, cultural, político que a sociedade lhe oferece, então deve ser por estas vias que devemos nos engajar, capacitar e sensibilizar para a cultura de paz. Estando no Estado constituído a paz deve ser um resultado de um pacto a ser cumprido por todos, para evitar a intranquilidade social, política e espiritual dos indivíduos. Pois, é preciso que haja estes valores que preservem a harmonia social, por meio do sentido de justiça, que Aristóteles considera a única virtude, dentre as muitas, que parece ser o “bem de um outro”. Contemplando a educação para a paz; a igualdade entre homens e mulheres; a participação democrática; o curso livre de informações; os direitos humanos; o desarmamento e segurança humana; a resolução não violenta de conflitos; a pluralidade étnico-racial; o desenvolvimento sustentável; a desmilitarização; a paz e segurança nacional e internacionais (GUIMARÃES, 2005)

 

 

 

  1. Conclusão

 

A condição humana é possível de ser superada. Tudo decorre ao seu tempo. Apenas a eternidade garantida pelo divino será permanente, a perseguição, a opressão e todas outras formas de aniquilar o outro são passageira, assim entendia Simão G. Toco. A paz e a esperança dominam a vida do homem, sendo por isso, que o homem deve ser Bom e limpo de comportamento, tal como a cor branca.

 

Contudo, a construção de uma sociedade movida pela cultura de paz é resultante de um conjunto de factores criados pelos membros da mesma. Todavia, assim como a paz, a cultura de paz não significa ausência de conflito ou enfrentamento entre os indivíduos, mas dá a possibilidade destes conflitos serem resolvidos a base do diálogo, compreensão e respeito a diferença, respeito à vida e a diversidade, rejeitar a violência, ser generoso, saber ouvir para compreender, redescobrir a solidariedade, buscar a equidade nas relações humana, empatia, preservar o planeta e ter sensibilidade ao outro. Uma cultura de paz nos remete a saber gerir conflitos, o egoísmo, orgulho para gerar harmonia.

Não obstante a isso, é preciso compreender que cada um de nós é resultado da educação familiar, escolar, social, política, quiçá económica, que recebeu. Então somos condicionados por isso. É exactamente por isso que a ideia de tolerância se faz necessária, sempre. Pois, pensamos e agimos de maneira diferente ou semelhante numa ou noutra coisa, mas o que o outro pensa é fruto da diferença do que cada um de nós pensa, então respeitemos a trajectória do outro. É preciso estar aberto, ter uma visão holística sobre as coisas e não se limitar ao que pensamos ser o certo não dando possibilidade de que o outro tenha o direito de apresentar o seu ponto de vista.

Com o 4 de Abril de 2002 nasceu a esperança de uma convivência pacífica entre os angolanos outrora desavindos. Passado este período, volvido mais de 20 anos ainda soam os alarmes dos discursos da guerra, sobretudo em período de campanhas eleitorais, envolvendo uma camada da sociedade que não presenciou, dos que mataram, destruíram e criaram o caos que se vivenciou, dando a entender que os estragos foram perdoados e não compreendidos. Neste sentido, não se perdoa, é preciso que se compreenda. Como seres falhos precisamos compreender um ao outro. Assim, uma cultura de paz significaria transmitir o sentido de respeito, empatia, sensibilidade, tolerância ao outro, que não é meu inimigo mas alguém que pensa diferente de mim e que o meu pensar só existe fruto do pensar dele.

   

  1. Referências Bibliográficas

BATSÎKAMA, P. (sd). Etonismo. Ver os textos publicados por nós na bibliografia: 2006; 2009; 2018.

Boulding, E. (2000). Cultures of Peace: The hidden side of history. Syracuse University Press. New York.

DAS/UFRGS (2021). Promovendo a cultura de paz na UFRGS . Organizado por Divisão de Promoção da Saúde. Porto Alegre.

Guimarães, M. (2005). Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias do Sul: EDUCS.

Imbamba, J. M. (2003). Uma nova cultura para Mulheres e Homens novos. Um projecto Filosófico para Angola do 3º Milénio à luz da Filosofia de Battista Mondim. Instituto Missionário Filhas de São Paulo – Luanda.

Matos, J. F. de., O processo de paz em angola como ponto de viragem para a Reconciliação nacional: caminhos e perspectivas. https://www.encontro2020.pe.anpuh.org/resources/anais/22/anpuhpeeeh2020/1601249031_ARQUIVO_bf871a6d2aa806cd8652a4261e68ee48.pdf

Pureza, J. M. (2000). Prevenção de Conflitos e Cultura da Paz. Nação Defesa. INSTITUTO DA DEFESA. N° 95/96 • Outono-Inverno 2000 • 2ª Série.

Tylor, E. B. (1871). Nos parágrafos iniciais de Primitive Culture (A cultura Primitiva). https://www.megatimes.com.br/2012/07/cultura-um-conceito-antropologico.html

UNESCO. Manifesto 2000: por uma cultura de paz e não violência (Manifesto 2000: For a Culture of Peace and Non-Violence). Disponível em: http://www.pucsp.br/ecopolitica/documentos/cultura_da_paz/docs/manifesto_2000_U ES CO_cultura_da_paz.pdf

___________ Disponível em http://www.unesco.org.br/programas/index.html. Acesso em

janeiro 2003.

 www.embaixadadeangola.org. Jornal Mwangolé, Abril 2013.

 

[1] Comunicação apresentada na Conferência Sobre o ETONISMO, ao 26 de Fevereiro de 2023.

[2] Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, mestrando em Filosofia pela Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto, tendo como áreas de interesse Ética Aplicada e Filosofia Social. Membro da Associação Etonista de Filosofia.