O Estatuto da Criança e do Adolescente e a delinquencia juvenil

Por Thiago Alves Bessa | 14/08/2011 | Direito

THIAGO ALVES BESSA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO COMBATE A DELINQUENCIA JUVENIL 

 

 

 

 

 

                                         

 

 

 

 

MONTES CLAROS

2011

RESUMO



O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com pouco mais de vinte anos de existência, tem sido alvo, atualmente, de constantes críticas, por vários setores da sociedade, sobre a aplicação das medidas sócioeducativas aos adolescentes autores de atos infracionais. Entendem muitos, que o ECA é uma legislação avançada para o país, e por isso, não tem eficácia, ou seja, não pune o infrator pelos seus atos antissociais e ainda contribui para o aumento da violência e da criminalidade, tendo em vista, que as sanções previstas no estatuto não inibem o adolescente infrator, gerando assim, a certeza da impunidade por estes agentes, que continuam a delinqüir .O ECA, no entanto, deve ser compreendido como uma evolução, ou melhor, como uma garantia da crescente necessidade da proteção dos direitos humanos em um Estado Democrático de Direito, que é a República Federativa do Brasil. O ECA é uma legislação garantista dos direitos da criança e do adolescente, produto de um passado de constantes agressões e violações aos direitos infanto-juvenis. O ECA, ao contrário do que pensam muitos, além de responsabilizar os adolescentes pelos atos infracionais que cometem, mediante a aplicação de medidas sócioeducativas previstas, como por exemplo, a medida privativa de liberdade de internação, onde o adolescente infrator pode ficar privado de sua liberdade por até três anos; também, prevê dispositivos de natureza preventiva, ou seja, dispositivos a serem observados pelo poder público e também por toda a sociedade como forma de combater a violência e a criminalidade. Possuem as medidas sócioeducativas natureza essencialmente ressocializadora, sem contudo, afastar o seu caráter punitivo de responsabilização social. São várias as situações, que na verdade, impedem ou mesmo dificultam a correta aplicação das medidas sócioeducativas previstas no estatuto da criança e do adolescente, como também, são gritantes as dificuldades apresentadas pelo poder público, na aplicação dos programas previstos pelo estatuto, destinados ao combate da marginalidade juvenil, através da política preventiva. A Falta de políticas públicas, bem como a ausência do Estado no combate a fome, a saúde, a vulnerabilidade social, a pobreza, são fatores que contribuem para a "ineficácia" das medidas adotadas no combate a marginalidade juvenil. Nisso, o problema da violência e da criminalidade juvenil no Brasil se deve a ausência de outros fatores considerados de relevância social, como saúde e educação de qualidade, o que contribui para a inobservância e inaplicabilidade dos dispositivos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e não a simples existência desse diploma como uma legislação paternalista afim de proteger o adolescente infrator como entendem muitos.

 

 

 

 

 

PALAVRAS E EXPRESSOES-CHAVES

Adolescente. Delinqüência juvenil. Estatuto da Criança e do Adolescente.

SUMÁRIO

Introdução. 1Análise histórica da marginalização juvenil. 2 fatores sociais da criminalidade juvenil.3 O ECA frente ao problema da marginalização juvenil. 4 Conclusão. 



1. INTRODUÇAO 


                   O Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) é um marco na história da proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, haja vista a Constituição da Republica Federativa do Brasil (CRFB/1988) ter adotado a doutrina da proteção integral as crianças e adolescentes, prevista na convenção das Organizações das Nações Unidas (ONU), responsabilizando a família a sociedade e o Estado por tal proteção (CRFB/1988, art.227). O ECA prevê direitos bem como responsabilidades as crianças e adolescentes que pratiquem atos infracionais, aplicando a esses, medida protetiva ou socioeducativa, respectivamente, de acordo com a sua idade, a culpabilidade, a conduta antissocial e outros aspectos valorados pelo magistrado na escolha da melhor aplicação da medida a ser imposta ao adolescente infrator. Embora o senso comum entenda ser o ECA uma "proteção paternalista ao menor infrator"; que é "causa do aumento da impunidade e da violência", dada a “benevolência” das medidas impostas aos adolescentes infratores; que os mecanismos previstos no estatuto não impedem ou mesmo não intimidam a prática dos atos antissociais (o que pode ser observado na alta reincidência nos atos infracionais); tal entendimento, é, na verdade, fruto de um desconhecimento das reais situações que dificultam ou mesmo tornam ineficazes a aplicabilidade dos dispositivos previstos no ECA e que por conseqüência geram um constante descrédito social. O Estatuto da Criança e do Adolescente não é uma legislação avançada para o Brasil, como entendem muitos, muito pelo contrário, como acontece, como na maioria das leis que são elaboradas no país, os dispositivos previstos no ECA, não são aplicados como deveriam ser, ou seja, depois de pouco mais de vinte anos de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda se constatam algumas situações que dificultam o seu cumprimento, quais sejam: o desconhecimento e a não aplicação efetiva da lei que foi criada com o intuito de garantir um mínimo de dignidade às crianças e adolescentes, reconhecidos como prioridade absoluta, assegurando o acesso integral  ao atendimento de suas necessidades como educação, saúde, lazer, família, cultura, etc; Falta de políticas básicas de atendimento às crianças, adolescentes e de suas famílias; Inexpressividade de uma intervenção positiva e efetiva de políticas públicas para mudar a triste realidade social das crianças e adolescentes que vivem em situações de marginalidade; e, principalmente, as dificuldades enfrentadas pelos conselhos tutelares nos municípios brasileiros que, em muitos casos, trabalham em situações precárias para atender a constante demanda que cresce de forma desproporcional a sua real capacidade.  E é diante da preocupação desta constante situação se dissemine em nosso meio social, passando a ser tomada como verdade absoluta e inalterável, que o ECA deve ser compreendido como uma legislação sólida que deve ser tratada por todos com o respeito e a dedicação que merece. Para isso, é importante, que o poder público e a própria sociedade somem esforços para a aplicação efetiva dos dispositivos previstos no estatuto como forma de combater a violência e a criminalidade, resgatando os adolescentes infratores da marginalidade em que se encontram para assim, participar da construção de uma sociedade mais justa e igualitária.


1. Análise histórica da marginalização juvenil.


                   Frequentemente, observamos nos noticiários de telejornais, rádios, jornais, páginas de internet e outros meios de comunicação o aumento da violência, mais precisamente, no aumento de adolescentes que praticam atos infracionais reputados graves que causam clamor publico, indignação e sensação de impunidade.

O caráter essencialmente retributivo da pena está ainda inserido na mentalidade da sociedade brasileira como sanção imprescindível a fazer justiça social, levando o autor da infração penal à privação da liberdade como forma de se trazer pacificação social.

Seguindo esse mesmo pensamento, com o adolescente autor de ato infracional não é diferente, ou seja, como os imputáveis, que praticam crimes, os inimputáveis, que praticam atos infracionais, também são vistos pela sociedade como um problema que deve ser resolvido com o seu encarceramento, como forma de punição, tirando-o assim do convívio social.

Tal modo de pensar, prosperou na segunda metade do século XIX com influencia de uma corrente de pensamento, defendida por Emile Durkheim, conhecida como Funcionalismo, onde se acreditava que a sociedade funcionava mais ou menos como se fosse um organismo vivo.

Segundo esse grande estudioso, a característica de todo organismo vivo é que todas as partes, e cada uma delas, contribui para a manutenção do todo. Através dessa metáfora, Durkheim percebe a sociedade como um todo ordenado, estável, e seus elementos como funcionais á permanência do todo. Algo que atrapalhe, perturbe a estabilidade da sociedade, como aconteceria com o corpo humano, é encarado como uma doença, um elemento disfuncional e patológico, que deve ser eliminado para que o todo permaneça existindo.

Nesse prisma, segundo Durkheim, o crime não é resultado de defecções biológicas como preconizada na abordagem clássica desenvolvida pelo Italiano Cesare Lombroso, em 1876, nem mesmo é um sintoma de um ou mais doenças mentais, desordens emocionais ou distúrbios psíquicos, defendida pela vertente psicológica.

Para o supramencionado estudioso, considerado um dos percussores da sociologia moderna, o crime deve ser entendido como um fenômeno sociológico tendo em vista que:

[...] O crime como fenômeno sociológico é a resposta da sociedade a determinada ação que vai de encontro á medida dos valores constituídos [...] quanto maior a gravidade da ação particular, maior o horror, maior a resposta da sociedade a esta ação e consequentemente, maior a punição esperada[...] (Durkheim,2004).

Essa mentalidade de se fazer justiça, para se evitar a chamada vingança privada, retirando o infrator do convívio social, por ser este um elemento disfuncional, fez com que cada vez mais se criassem estabelecimentos prisionais para o encarceramento do individuo, como cadeias, presídios e penitenciarias, aumentado assim, a população carcerária sem nenhuma preocupação com a recuperação desses, gerando por conseqüência a superlotação das celas, causando motins, tumultos e rebeliões.

O fracasso do sistema prisional, além de gerar gastos excessivos para o Estado não recupera o preso, ou seja, a prisão tem sido visto como uma verdadeira escola do crime, onde o condenado a pena privativa de liberdade, depois de cumprir a pena imposta, sai da prisão pior do que entrou; não recuperado, este volta a para a sociedade com formação no mundo do crime, praticando crimes mais graves, aumentando assim a violência nos centros urbanos.

Nesse prima, durante muito tempo, por falta de legislação especifica que regulamentasse a aplicação de sanções pela violação de normas penais por crianças e adolescentes, elas, eram tratadas como adultos e cumpriam penas junto com estes em estabelecimentos prisionais, potencializando constantes abusos e violência de todo o gênero.

Uma das maneiras de exercer o controle sobre a infância desamparada e delinqüente, foi a promulgação, em 1927 do código de menores, que foi a primeira legislação especifica para a infância no Brasil onde estatutava que a responsabilidade penal da criança começava aos 9 anos, “sendo tratada ora como adulto, que pode responder perante a justiça ou assumir responsabilidades, ora como incapaz de responder por si”.(VALLE,2003:59)

O "menor" infrator era visto como um desviante e deveria ser tratado como determina o funcionalismo de Emile Durkheim, nisso, continuava sendo responsabilizado como adulto e por conseqüência, sofria diversos abusos dentro das cadeias onde cumpriam pena.

Mais de cinqüenta anos depois, em 1979, surgiu o novo código de menores, que, dentre outras coisas, determinava que o poder público criasse as instituições de assistência e proteção ao menor infrator, momento esse que, em diferentes Estados da federação, foram criadas as chamadas Fundação de Bem Estar do Menor (FEBEM).

Considerados de responsabilidade dos governos Estaduais, mas sob a supervisão das políticas gerais estabelecidas pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), esses estabelecimentos, foram concebidos como centros especializados destinados a triagem e observação dos menores, bem como a sua permanência física em restrição de liberdade.

Com fundamento na doutrina da situação irregular preconizada pelo código de menores de 1979, muitas crianças e adolescentes eram internados nas FEBEM por motivo de falta ou carência de recursos materiais o que as colocavam em uma situação de marginalidade, ou seja, em situação irregular, o que fundamentava a sua inserção nesse sistema.  

Na pratica as FEBEM, eram consideradas verdadeiras prisões para menores, não havia uma política especifica para tratar a infância e a juventude no Brasil e nem mecanismos de proteção que garantisse a inviolabilidade de direitos básicos inerentes a sua condição humana e social.

O psicanalista Oscar Cirino, argumenta que as legislações que tratam de menores no Brasil foram impregnadas pelos princípios da doutrina da situação irregular, praticamente hegemônica em nosso continente, pelo menos até a década de 80. Segundo esse mesmo psicanalista, trata-se de uma doutrina arbitrária que, embora vagamente formulada, permite que juízes, com competência penal e tutelar possam declarar em situação irregular (e por conseguinte objeto explícito de intervenção Estatal) a criança e o adolescente que enfrentam dificuldades não taxativamente definidas, pois iam desde a carência material até o abandono moral. Assim, crianças e adolescentes abandonados, vítimas de maus-tratos e supostos infratores da lei penal, quando pertencentes aos setores mais débeis da sociedade, se constituíam em alvos potenciais dessa definição. 

Durante décadas, no entanto, o Estado brasileiro não assumiu, de fato, a responsabilidade pela assistência pobre, foco prioritário de praticas de caridade individual e filantrópicas. Limitava-se as funções de estudo e de controle da assistência do menor, bem como da repressão aos desviantes, através da criação de órgãos públicos especializados, como o Departamento Nacional da criança (1919) ou o Serviço Nacional de Menores (1941).

Foi somente nos anos 60 que o Estado Brasileiro se tornou um grande interventor e o principal responsável pela proteção e assistência a infância abandonada em situação de risco no Brasil. Essa nova postura foi, sem duvida, influenciada pela Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) que faz serie com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Direitos da Mulher proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Dentre esses direitos, destacam-se: o direito a vida, saúde; liberdade respeito, dignidade; convivência familiar e comunitária; educação, cultura, esporte, lazer; profissionalização e a proteção no trabalho. Todas as crianças ganham, então, status de sujeito de direitos, cabendo ao estado protetor atuar para garantir essa nova posição.

Pressionado pela Declaração, o governo militar cria, em 1964, a FUNABEM, que introduziu, nos assuntos da assistência a infância no Brasil, a perspecticva do Estado do Bem-estar social (Welfare State). No entanto, nesse momento da ditadura, o dever de proteger e garantir o bem-estar das crianças mistura-se á lei de segurança nacional.

Com o restabelecimento do Estado de Direito, e o agravamento da pobreza e violência urbanas, as reações começam a surgir, sobretudo na década de 80, resultando em movimentos como a pastoral do Menor (posteriormente pastoral da criança) e na presença ativa de organizações não-governamentais nacionais e internacionais, denunciando o desrespeito constante aos direitos da criança.

A intensa mobilização, que envolveu movimentos sociais, políticas publicas e mundo jurídico culminou com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei no 8.069/90), cujos destinatários já não eram mais os menores, mas todas as crianças e adolescentes, sem distinção. Incorporando os princípios da nova Constituição da Republica Federativa do Brasil (1988), o estatuto deixou integralmente sem efeito as leis que dispunham sobre a política nacional do bem-estar do menor e sobre o Código de Menores rompendo com a tradição latino-americana, ao substituir a chamada doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral.


2. fatores sociais da criminalidade juvenil

Embora tenha havido, nos últimos vinte anos, uma grande evolução histórica acerca dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, ainda existe vários fatores externos que influenciam a prática de atos infracionais por crianças e adolescentes, e que por sua vez, promovem o aumento da violência e da criminalidade. 

Mário Altenfelder, estudioso sobre o tema, compreende que a marginalização do adolescente infrator está ligado a condição pessoal, familiar, cultural e econômica em que está inserido no meio social:

[...] Entende-se, portanto, que a marginalização do menor é aspecto e manifestação do processo social que marginaliza certos grupos sociais, os quais, por sua vez, marginalizam em massa o menor, quando transferem para este menor as marcas de sua indigência econômica e financeira; abandonam-no, carente e desassistido, forçando-o à prática de atividades marginalizantes; provocam, pelas condições de mobilidade, habitação, saúde, incultura, subdesenvolvimento etc., a desintegração individual do menor em todos os aspectos. Esse menor passa a ser, então, dentro da comunidade nacional, menor problema social e, assim, resíduo final de um complexo processo social que apresenta estágios de evolução ou graus diferentes de apresentação. Inicia-se com o menor em vias de marginalização social e culmina com o menor infrator, considerando-se a criminalidade o grau máximo de marginalização social. (ALTENFELDER ,1980).

Cesar Barros Leal, em argumento centrado nos fatores e na prevenção da delinqüência juvenil, referindo-se às causas, assim explica o fenômeno da delinqüência juvenil:

[...] No Brasil, a delinqüência juvenil é um problema eminentemente estrutural. Os menores delinqüentes ou infratores não importam como sejam rotulados em sua maior parte são procedentes das classes desfavorecidas e praticam, no mais das vezes, delitos contra o patrimônio, destacando-se entre eles o furto.(LEAL,1983)

Segundo o membro do Ministério Púbico do Estado do Paraná, Rudi Rigo Bürkle, existem vários fatores que atualmente influenciam a formação do cidadão, de sua “personalidade”, fatores esses basicamente exógenos, externos, deixando-se de lado os fatores endógenos, biológicos ou psicológicos, eis que, segundo ele, de menor relevância e possibilidade de eliminação, senão através das ciências humanas; assim, segundo o promotor acima descrito, pode-se citar como fatores exógenos: 1 - fatores sócio-familiares, a direta influência da família sobre os seus membros, com assimilação de suas características e ensinamentos; 2 - fatores ambientais, influência das pessoas e das condições sob as quais se vive; 3 - fatores sócio-ético-pedagógicos, influência de todo o processo de aculturamento social do cidadão, desde a informação da escola até a informação da mídia que por si é colhida e assimilada; e 4 - fatores econômicos, influência direta da situação econômica sob a qual está sujeita o indivíduo e, decorrente dessa, a maior ou menor dificuldade de acesso às condições adequadas de vida, saúde, educação, lazer, etc.

Nesse entendimento, os fatores sociais, econômicos, familiares, culturais e ambientais, são determinantes para a formação do delinqüente e a sua marginalização na sociedade civil organizada. A falta do poder público na distribuição das riquezas do país, como forma de combater a vulnerabilidade social, a miséria e as desigualdades sociais que geram um processo constante de marginalização, contribuem maciçamente para o aumento da violência e da criminalidade, haja vista, que a massa de excluídos perdem as referencias normativas que regem o convívio social e lançam-se em um processo constante de anomia, potencializando assim, o aumento a violência e a criminalidade no seio social.

Carla B.L. Carneiro, entendendo ser o infrator subproduto do capitalismo que gera desigualdades e marginalização, discorre:

[..]Por meio do exame da questão dos meninos infratores, podemos refletir sobre os limites de coerção, a ruptura do tecido social e o seu “apodrecimento”, porque eles espelha esse “outro” que insistimos em não ver-esse outro produto da sociedade capitalista e de um modelo de desenvolvimento centrado na lógica da produtividade e acumulação, no individualismo auto-interessado e nas prerrogativas de mercado. Porque, de certa forma, o infrator espelha esse outro ruim, o lado negro da condição e das sociedades humanas que muitas vezes preferimos não enxergar, que gostaríamos de congelar no freezer, isolar, segregar, tirar de circulação. Que tipo de sociedade, formas de sociabilidade, que padrão de dignidade humana construímos como coletividade? Como garantir direitos em uma sociedade na qual a desigualdade extrema e a pobreza, negação manifesta dos direitos fundamentais, conformam a vida de uma grande parcela da população? Como é possível garantir direitos civis, cívicos e sociais, de forma efetiva, para a população como um todo e especialmente para grupos socialmente vulneráveis, como os infratores? Como garantir, ainda, os direitos da população à segurança pessoal e social?(CARNEIRO, 1999, p. 13).

Nesse sentido, o individuo que nasceu em meio a pobreza generalizada, sem condições mínimas de dignidade humana, esquecido pelo poder público, sem possibilidade de conseguir emprego (tendo em vista a sua vulnerabilidade social), estigmatizado, seduzido pelo capitalismo desenfreado da sociedade moderna e sentindo-se excluído como cidadão transformador desse processo; haveria porque ele obedecer ao contrato social firmado e se submeter as normas que regulam a sociedade civil organizada se entende que o próprio Estado falhou na atuação de suas obrigações? Teriam os menores abandonados, que se encontram marginalizados, maltrapilhos, desnutridos, perambulando pelas ruas das milhares cidades brasileiras, praticando mendicância, sendo explorados sexualmente e usando diversos tipos de drogas, algum pudor em praticar algum ato infracional e ser responsabilizado por esse ato com uma medida socioeducativa que venha privá-lo da liberdade? 

Assim, Carla B. L. Carneiro, continua:


[...]Em um cenário de profundas desigualdades sociais, de precarização das condições de vida e trabalho, de um certo desencanto das utopias sociais, como dimensionar analiticamente a criminalidade, a violência e o abandono, a emergência de gangues e de adolescentes em conflito com a lei, o tráfico de drogas , a prostituição e o trabalho infantil, o extermínio de crianças de rua, o comércio de armas, dentre tantas ?realidades? do mundo atual? Esses fenômenos revelam as fissuras do nosso sistema social, a manutenção precária de uma ordem regida pela injustiça social, centrada em padrões de produção e de consumo não sustentáveis e violadores de direitos básicos, civis, sociais e humanos. A segregação social constitui o cenário de fundo no qual o drama das crianças e jovens nas ruas, de rua e infratores se desenrola".( CARNEIRO, 1999, p. 13).


                   O processo constante de anomia, decorrente dos fatores acima referidos, está cada vez mais inserido na personalidade do adolescente infrator que passa a fazer parte de uma cultura criminosa na medida em que rompe com todas as normas, proibições e obrigações que regem o convívio em sociedade, e se entregam a ideologia do crime, passando a se identificar com o meio criminoso, meio esse, que tem linguagem, regras, modo de vestir e músicas próprias que falam de violência e criminalidade. Esta cultura criminosa que forma a personalidade do adolescente desviante, pode ser observado nas tatuagens marcadas em seu corpo que fazem referências a artigos do código penal ou mesmo expressões como “ódio” e “vida loka” que também identificam a mentalidade moldada para o crime.

É nesse meio precário, que se faz ausente o poder público, que se instalam os traficantes de drogas, recrutando os menos abastados, adolescentes marginalizados, a fomentar a indústria do crime, responsáveis pelo aumento da violência e da criminalidade, espalhando o medo e o terror nos centros urbanos.

O uso de drogas como forma de fugir da dura realidade em que se encontram, levam vários adolescentes a prática de atos infracionais como forma de sustentar o vicio; vício este, que “mergulhou”, muitas vezes, para “tapar” um “buraco” pré-existente, decorrente da falta de oportunidades ou mesmo da existência de uma estrutura familiar carente de todos os recursos básicos essenciais para uma vida com o mínimo de dignidade.

Diferentemente daqueles fruto do descaso, produto dos diversos fatores supramencionados, existem adolescentes que embora tenham uma vida longe das mazelas sociais, tendo boa educação, moradia e outras condições econômicas que em tese não o levariam a delinqüir, também, são seduzidos pelo mundo das drogas, isso porque a adolescência é um período de desenvolvimento, de novas descobertas, onde o proibido e o desconhecido exercem um certo fascínio, o que leva ao consumo de drogas, e a conseqüente dependência química levando-o ao vício e também a prática de atos infracionais.


3.O ECA frente ao problema da marginalização juvenil

 

Em virtude do exposto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio com o objetivo de resgatar a cidadania das crianças e adolescentes a quem se atribua a autoria de ato infracional, como sujeito de direitos e deveres na sociedade em que vive, regulamentando todas as diretrizes que digam respeito aos mesmos, tratando-os de maneira diferenciada como cidadãos em pleno desenvolvimento físico e mental. 

                   Segundo Antônio Fernando do Amaral e Silva, Desembargador do Tribunal de justiça de Santa Catarina, dispõe que:

[...] O Estatuto, atento as Beijing Rules, determina a desjudicialização das hipóteses sem gravidade, preconizando medidas protetivas ou preventivas, independentemente de processo formal. Para reincidentes ou violentos, prevê ação de pretensão sócio-educativa. Os casos de reincidência, gravidade, violência, podem resultar em medidas mais severas, inclusive privação de liberdade, em flagrante ou provisória. Em qualquer hipótese, observados os direitos constitucionais. (SILVA, a criança e o adolescente em conflito com a lei,tjsc,Disponível em:http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/criança _ conflito_amaral_silva.htm>Acesso em 24/06/2011).

                   Estabelece o referido Desembargador, que o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, consagra diversos dispositivos em seu texto como forma de garantir o respeito aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, bem como, a sua responsabilização na pratica de atos infracionais, observando o seu aspecto preventivo e sancionador, tais como: a prevenção primária, multissetorial, assegurando direitos fundamentais saúde, educação, esporte, lazer, profissionalização, etc., inclusive através de ações cíveis públicas; prevenção secundária, pelos Conselhos Tutelares com medidas protetivas e assistência educativa à família; prevenção terciária, através de medidas sócio-educativas reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e privação de liberdade em estabelecimento educacional.

                   Contudo, existem algumas situações que dificultam ou mesmo impedem que os dispositivos previstos no estatuto sejam aplicados como desejo do legislador originário, como as dificuldades para a implementação de políticas públicas de prevenção e resposta aos atos antissociais praticados pelas crianças e adolescentes.

                   As políticas preventivas exteriorizam-se através de programas preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente: orientação, apoio e acompanhamento; assistência educativa à família; auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; liberdade assistida; acompanhamento de egressos; restabelecimento de vínculos familiares; serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vitimas de negligência, maus tratos, exploração, abuso e crueldade; serviço de identificação de pais, responsáveis, crianças e adolescentes desaparecidos; proteção jurídico social, etc.

Todavia, a maioria dos municípios brasileiros, encontram dificuldades de recursos financeiros para a implementação das referidas políticas preconizada pelo ECA, quer seja pela má administração pública, pelas constantes improbidades administrativas realizadas pelos administradores e agentes públicos que causam desvios de verbas públicas e outros ilícitos ou mesmo pela falta efetiva de recursos financeiros, dada as fontes escassas de se auferir recursos públicos em alguns municípios que tem como fonte exclusivamente o FPM (Fundo de Participação dos Municípios).

A falta de recursos, principalmente nas áreas técnica e da pesquisa tem sido apontadas como dificuldades da política de prevenção, principalmente da delinqüência juvenil. Se é que se pode falar em política de prevenção da criminalidade, quase inexistente, na prática, no país.

Nisso, a falta de investimentos do poder público, tem feito particulares lucrarem com as mazelas sociais, o que pode ser observado, no aumento de clínicas para o tratamento de toxicômanos e alcoólatras, acessíveis apenas aqueles que podem pagar tal tratamento.A maioria, no entanto, adolescentes oriundos de família pobre que vivem marginalizados,como não tem condições financeiras,continuam praticando ilícitos para saciar o vicio.

A precariedade da política preventiva de egresso é outro fator que prejudica a aplicabilidade dos dispositivos previstos no ECA, haja vista que o adolescente que cumpre medida socioeducativa privativa de liberdade (internação), em centros sócioeducativos, depois de cumprida a medida imposta, desligando-se do sistema, não é acompanhado com efetividade pela política de egresso como forma de orientá-lo a continuar com os estudos ou mesmo prepará-lo para ser inserido no mercado de trabalho, isso acontece ou porque não existe ainda na cidade em que mora ou porque é precária as instalações e os recursos materiais e de pessoal para o grande número egressos do sistema sócioeducativo. A conseqüência verificada é o aumento do número de reincidência na pratica de atos infracionais.

O ECA ainda prevê a repressão aos atos antissociais de adolescentes em conflito com a lei. Esses adolescentes, contudo, deverão cumprir a medida socioeducativa de internação imposta em unidades sócioeducativas (centros socioeducativos) que são ambientes específicos, dotado de profissionais da área de segurança e de corpo técnico qualificados para atender aos internos, isso, respeitando-se o dispositivo constitucional do art. 5º, XLVIII, chamado por muitos estudiosos de “mandado constitucional de criminalização”, onde dispõe que: “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”.

Contudo, ainda existem vários adolescentes que cumprem a medida socioeducativa de internação, em diversos cantos do país, em cadeias públicas, misturados com presos adultos, o que fere dispositivo constitucional citado acima e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), piorando ainda o estado da delinqüência juvenil, haja vista que nesse ambiente carcerário, sofrem diversos tipos de abusos e se qualificam na aprendizagem criminosa. 


4. Conclusão


                   O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como qualquer outra norma prevista na legislação brasileira, não é aplicado como deveria ser aplicado de acordo com o seu texto legal, haja vista, as diversas dificuldades encontradas que prejudicam a aplicação dos dispositivos e a sua eficácia diante da problemática da delinqüência juvenil.

Não é o ECA, uma lei que veio, unicamente para proteger o adolescente infrator, e sim, uma legislação que foi criada com o objetivo a assegurar uma maior proteção as crianças e adolescentes, atribuindo-os direitos e responsabilidades sem deixar de promover o necessário para a sua recuperação e retorno a sociedade como pessoas aptas a promover o bem e conscientes do seu papel na sociedade.

As responsabilidades previstas no ECA, de acordo com a infração, pune o adolescente infrator com medidas socioeducativas adequadas ao caso concreto, que pode ser de uma simples advertência, aplicada pela autoridade do juiz competente, até uma medida de internação, ou seja, uma medida restritiva de liberdade onde ficará privado da liberdade por ate 03 anos.

A medida socioeducativa de internação, pode-se dizer, que é uma tentativa de recuperar aquele adolescente infrator que praticou algum ato infracional reputado como grave, mas, para que não venha este praticar novamente o mesmo ou outros atos infracionais, quando desligado do sistema socioeducativo, é necessário, que seja observado toda a rede de apoio, ou seja, as políticas preventivas exteriorizada em programas preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sem a implantação das referidas políticas que são necessárias a combater a marginalidade juvenil, o ECA, continuará sendo hostilizado como mais uma legislação que não tem eficácia, passando a ser tomada como verdade absoluta e inalterável, e, decorrente disso, com a perspectiva da alteração dos dispositivos de uma lei que sequer teve oportunidade de ser compreendida para que veio.

Para uma efetiva aplicação dos dispositivos previstos no Estatuto da Criança
e do Adolescente, faz-se necessário a participação de toda a sociedade, com vistas a promover o respeito aos direitos humanos, notadamente, quando se refere aos direitos da criança e do adolescente, que são o futuro do país, ainda mais, em um Estado Democrático de Direito como a Republica Federativa do Brasil cujo preceito constitucional estabelece: “a construção de uma sociedade, livre, justa e solidária”. (CRFB, art. 3º, I)

Diante de todo o exposto, pelos fundamentos já mencionados, pode-se afirmar que o ECA é uma legislação atual que respeita os direitos humanos, sobretudo os direitos das crianças e dos adolescentes. Está o ECA em consonância com as diretrizes regulamentadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), sendo um diploma garantista e inovador. Para um maior cumprimento dos dispositivos previstos no estatuto e o combate a delinqüência juvenil, exige-se a participação de todos os setores da sociedade brasileira, bem como do poder público, personalizado nos entes da federação (União, Estados, DF, Municípios) que devem atuar de maneira efetiva, sendo planejadas as ações de combate às vulnerabilidades sociais e primazia nas políticas públicas envolvendo crianças e  adolescentes, por meio dos planos plurianuais (PPA) e lei orçamentárias anuais (LOAS), para promover uma eficaz e efetiva inclusão social daqueles marginalizados por ausência das políticas públicas, combatendo a miséria e outros flagelos sociais, como forma de reduzir as desigualdades sociais e regionais previstos em nossa constituição maior.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICA

 

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