O Escritor de Obituários

Por Nivea Santana | 25/11/2010 | Crônicas

O ESCRITOR DE OBITUÁRIOS


"Precisa-se de escritor de obituário. Exige-se experiência e carta de recomendação.Salário a combinar. Tratar com: Arnaldo Bitencur, editor chefe do Diário de Vésper".

Esta era a mensagem escrita nos classificados de um jornal de grande circulação da capital. Abaixo constava um número de telefone, assim como o endereço de uma pequena cidade do interior do estado, a qual ficava a mais ou menos 260 km da região metropolitana e era famosa por suas fontes de águas tépidas, boas, segundo diziam, para quem sofria dos males das articulações.
Para qualquer um que não fosse habitante daquela cidadezinha, tal anúncio poderia soar, no mínimo, um tanto excêntrico, uma vez que a sessão de obituários era, talvez, a menos atraente da redação de um jornal, e todos que nela trabalhavam mal esperavam o momento de serem promovidos a um cargo de maior importância, como os classificados ou quem sabe a sessão de imóveis, afinal, quem é que iria querer passar a vida escrevendo obituários?
Mesmo assim e graças a constante escassez de empregos, não faltaram candidatos para responderem ao anúncio e o tal Arnaldo Bitencur, editor chefe, não precisou esperar nem 24 horas para que batessem a sua porta os primeiros concorrentes a vaga de escritor de obituários.
A gráfica funcionava nos fundos da casa do editor chefe e a redação ocupava boa parte da mesma casa, a qual, sejamos francos, não era nenhum palácio. Isto de modo algum deixava os funcionários desconfortáveis, uma vez que estes se constituíam apenas de três indivíduos que dividiam entre si as funções de repórter, redator, fotógrafo, tipógrafo e faxineiro; a correção e edição dos textos ficava por conta do Arnaldo, que havia se formado em jornalismo pela faculdade estadual, enquanto a distribuição era feita por um rapazote de 14 anos que fazia as entregas antes de ir à escola e tinha direito a um acréscimo no minguado salário, por cada jornal que vendia por fora das assinaturas.
O jornal local Diário de Vésper fora o que se pode chamar de um negócio familiar. Surgira durante os anos difíceis de duração da segunda guerra mundial, quando mais da metade dos jovens daquela cidade fora convocada para lutar na frente de batalha, deixando um imenso vazio nos corações de seus familiares, que não tinham dúvidas: uma convocação tão numerosa de rapazes de um mesmo lugar, só se dera devido a ascendência italiana dos mesmos, afinal, a cidade originara-se de uma colônia de imigrantes italianos e o Brasil entrara em guerra contra o Eixo.
Adquiriu, então, um pai saudoso, um velho prelo enferrujado como forma de pagamento por um serviço que executara e cujo valor nunca recebera até o falecimento do devedor, que era tipógrafo. Quando a viúva do finado lhe ofereceu o prelo, único bem da família, alegando que não queria mais aquela máquina em casa, pois a fazia lembrar o falecido, sem jeito de dizer não a uma mulher de luto, o pai aceitou e como não arranjasse comprador para a geringonça, decidiu ele mesmo ver se a máquina funcionava, a princípio por curiosidade, sendo depois tomado por um desejo quase obsessivo de provar a si mesmo que seria capaz de acabar o trabalho iniciado.
Depois de duas semanas de trabalho duro, com pausas apenas para o café, o homem conseguiu colocar os tipos em condições de funcionar; substituiu as peças de madeiras apodrecidas pelo mofo e pelos cupins, lixou e retirou boa parte da ferrugem que tomava conta das engrenagens e quando acabou o que sentiu foi uma grande sensação de vazio, como se seus filhos tivessem acabado de sair de casa naquele momento e então, sentado ao lado do prelo, quase tão velho quanto ele, o homem chorou.
Só quando havia passado um bom quarto de horas chorando foi que ele se deu conta que sua dor era grande demais para ficar contida apenas em meras lágrimas choradas no escuro; era a dor de um pai que já velho e cansado, talvez jamais voltasse a ver seus filhos, único tesouro que possuía na vida. E todos os sonhos que eles haviam sonhado juntos quiçá nunca iriam se realizar. Não mais netos, não mais risos, não mais ceias de natal ao redor da mesa com a mama servindo pasta e todos felizes cantando cantigas da terra distante. Então, num reflexo, ele levantou e se dirigiu à porta da oficina e enquanto caminhava pela rua arborizada, tomou a direção da casa da viúva do tipógrafo. A estrela vespertina iluminava seus passos.
Iniciava-se assim a trajetória da primeira edição do Diário de Vésper, pois após a visita do pai saudoso, o filho mais velho do tipógrafo aceitou o convite para ensinar-lhe a operar a máquina e tornou-se seu primeiro colaborador na edição do jornal, que passou a sair uma vez por quinzena e tratava dos temas mais variados: poesia, receitas de bolos, informativos clericais, música, entre outros assuntos da bucólica cidade. Contudo, a sessão aguardada com maior ansiedade e apreensão era a de obituários, onde vinham as listas dos pracinhas que pereciam na guerra, pois se esperava a todo momento vê-se o nome de um parente ou um conhecido que tivesse embarcado para o estrangeiro estampado nas letrinhas miúdas daquela página.
Tal era o interesse dos leitores pela sessão de obituários que o prefeito designou um funcionário para fazer a viagem todos os dias da cidadezinha para a capital para trazer os obituários dos jornais de grande circulação para melhor informar a sua população, todavia, quando havia impressão do Diário de Vésper, os jornais da capital ficavam encalhados. Tudo porque um dia, após verificar a notícia da morte do filho de um vizinho escrita da maneira mais impessoal e fria possível, o dileto editor do DV, decidiu escrever a seguinte nota na publicação quinzenal de seu jornal:

"É com o peito carregado e os olhos embargados de lágrimas que temos o doloroso dever de informar que o jovem Mario Fiozzi, filho de Genaro e Madalena Fiozzi, desceu a morada eterna no último dia 20/09/1944 e agora encontra-se sentado ao lado do Pai, a olhar seus entes queridos. Saudades de todos que tiveram o prazer de ter sua companhia".


Ao saberem de nota tão gentil, os pais do falecido trataram de ir agradecer ao dileto editor, que não era ninguém mais ninguém menos que o mesmo pai saudoso que há meses atrás, ressuscitara um prelo velho e enferrujado, buscando consolo pela partida dos filhos para a guerra. Este, com sua timidez habitual, limitou-se a assentir com a cabeça enquanto aqueles lhes falavam de como ficaram comovidos ao verem tal declaração acerca de seu filho, nem mesmo o padre fizera um pronunciamento tão bonito durante a missa de corpo ausente. Então, sem que o diletíssimo senhor esperasse, os pais, viúvos do único filho, lhe disseram meio encabulados que também um casal conhecido seu havia perdido o filho há poucos dias, não para a guerra, mas para uma doença.
O pedido era que o editor fizesse publicar uma nota semelhante a que fora dedicada ao pracinha Mario, mas referindo-se ao rapaz José Maria, pois, segundo eles, saber que o filho fora tão bem lembrado podia trazer um pouco de consolo para aqueles outros pais órfãos, como ocorrera com eles.
Dizendo-se lisonjeado e não merecedor de tanta consideração _ o pai saudoso ? editor e escritor de obituários do Diário de Vésper _ aceitou o pedido e, inspirado pelas palavras dos pais do pracinha Mário, tomou para si a missão, ou melhor, o dever de escrever os mais belos obituários que a população da cidade e redondezas já havia visto.
E assim fez durante os 15 anos de vida que lhes restavam. Escreveu diariamente suas notas fúnebres, pequenas elegias aos finados, sendo a mais difícil delas, segundo suas próprias palavras, a que tratava de seu próprio filho, o caçula, cujo corpo ficara plantado do outro lado do Atlântico, conforme notícia trazida pelo filho mais velho, cuja alma e vontade de viver também ficaram plantadas lá.
Pouco antes de morrer, com a artrite já lhe dificultando o manusear até mesmo de uma caneta, o pai enlutado ? editor e escritor de obituários, vendeu para um jornalista recém formado, os direitos sobre o Diário de Vésper e a pequena casa onde vivera durante os últimos 50 anos.
O jornalista recém formado, do alto de toda sua arrogância juvenil, voltara a pouco para a cidade natal e ao assumir o jornal, achou que fizera o melhor negócio de sua vida, uma vez que praticamente todos os habitantes da cidade liam e grande parte era assinante do DV, não seria difícil tocar um periódico do interior, pensou. Como prova de sua magnanimidade e para agradar aos pais, ele ainda permitiu que o antigo proprietário, continuasse a fazer os obituários, que, diga-se de passagem, devido a vida calma do lugar, eram bem raros.
Assim, quando chegou a vez do velho pai enlutado ? antigo editor e escritor de obituários, como este não tinha mais parentes vivos, uma vez que a loucura da guerra finalmente havia vencido seu filho há dois anos, seu obituário não passou de uma pequena nota, fria e impessoal redigida às pressas entre um gole e outro de café. Nada de palavras rebuscadas, nem mesmo um pequeno Haikai. Não se entoou quiçá um réquiem em seu velório, que aconteceu na capela do cemitério, por falta de espaço para o caixão no quarto dos fundos que ocupava.
Ninguém chorou mais que o necessário ou comentou mais que o suficiente a sua morte, entretanto, duas edições após ela acontecer, o jovem jornalista _ novo proprietário ? editor e escritor de obituários do Diário de Vésper _ constatou uma queda nas vendas dos exemplares avulsos do jornal. Dois meses depois começaram os cancelamentos de assinaturas e uma queda expressiva nas tiragens, que levou a demissão dos dois assistentes.
Vendo seus 10 anos de economias se esvaírem em menos de 10 meses, o novo proprietário?editor, decidiu que não descansaria enquanto não descobrisse o que estava fazendo de errado e, ato contínuo, começou a comparar algumas edições antigas do DV com as novas. Quanto mais lia, mais confirmava sua opinião de que suas edições eram superiores, tanto na diagramação, quanto na forma da escrita e no conteúdo, afinal, ele passara quatro anos na faculdade e o antigo dono o que fazia? Três dias e dezenas de edições depois, a resposta para esta pergunta lhe veio como uma epifania.
E, na manhã seguinte, ainda aturdido _ o novo proprietário?editor do Diário de Vésper _ tomou o primeiro ônibus para a capital, dirigiu-se ao jornal de maior circulação e, na sessão de classificados começou a ditar o seguinte anúncio: Precisa-se de escritor de obituário?


NMAS