O ENSINO DA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA

Por Bruna Barcelos | 01/12/2009 | Educação

A venda da coleção de arte de Adolpho Leiner, composta de obras construtivas brasileiras, para o Museu de Belas Artes de Houston, Texas, fez emergir mais uma vez a discussão sobre o êxodo das obras de arte brasileira. Mesmo com o surgimento de “novos” colecionadores no Brasil, a quantidade de obras que deixam o país é infinitamente superior ao número daquelas que são adquiridas por esses mecenas, ou incorporadas aos acervos públicos. O êxodo de obras tem sido um tema recorrente, e em nada, recente. Decerto não pode ser entendido como exagero afirmar que parcelas significativas da história cultural brasileira já não se encontram no país. E é justamente dessa percepção que surge a necessidade de se investigar as implicações do êxodo do patrimônio nacional para o ensino da história da arte brasileira. Na medida em que essas obras não fazem parte do convívio da sociedade em coleções públicas, será possível construir efetivamente uma história da arte brasileira? Através do distanciamento das reproduções? E a experiência direta com a obra, com o gesto do artista, não seria isso realmente relevante? Certamente o ensino de história da arte brasileira fica prejudicado diante da inacessibilidade de obras, sendo necessária uma viagem ao exterior para um contato direto com a obra. O presente artigo pretende se debruçar sobre a complexidade dessa situação, levando em consideração o fato de que, em um mundo globalizado, o simples fechamento das portas (ou das fronteiras) não se constitui como uma possibilidade. Assim, enquanto nos parece relevante empreender uma reflexão acerca da necessidade de implementação de políticas públicas de constituição de acervos de arte como forma de enfrentar e inibir o êxodo do patrimônio nacional, por outro lado procuraremos elencar mecanismos que entendemos alternativos para diminuir o impacto desse êxodo (inevitável) no ensino de história da arte brasileira. PALAVRAS-CHAVE Ensino da história da arte brasileira; êxodo de obras de arte; mercado das artes visuais; coleções; novas tecnologias no ensino.

1  O êxodo das obras de arte brasileiras: o caso da coleção de Adolpho Leirner

No dia 17 de março de 2007 foi anunciada a venda da coleção de arte de Adolpho Leirner para o Museu de Belas Artes de Houston (MFAH), no Texas. A coleção de Leirner, que possui os mais requintados exemplos de abstração geométrica em pinturas, desenhos, cartazes e materiais gráficos dos mais destacados artistas brasileiros da época posterior à Segunda Guerra Mundial, estava à venda desde 1998. O acervo de Adolpho Leirner era considerado a maior coleção particular de arte construtiva das Américas. Reunido por Leirner ao longo de 40 anos, a coleção representa um acervo crucial da arte contemporânea brasileira. Estima-se que essa coleção tenha sido vendida por mais de US$ 15 milhões (aproximadamente R$ 26,55 milhões).

Segundo o diretor do MFAH, Peter C. Marzio, a força e impacto internacional da coleção de Leirner surgem porque as obras foram colecionadas de uma maneira altamente focada e disciplinada, abrangendo desde os primeiros exemplos de abstração geométrica até as últimas obras de vanguarda produzidas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para Peter C. Marzio, a coleção é insuperável.1

A venda de uma parcela tão importante da cultura nacional causou inúmeros protestos vindos do mundo das artes artístico. De Paris, por exemplo, a curadora Ligia Canongia afirmou que "todos sabemos [sabíamos] que o Leirner estava vendendo a coleção; ele ofereceu ao MAM [Museu de Arte Moderna] paulista e à Pinacoteca [do Estado de São Paulo], mas ninguém aqui se preocupa com patrimônio cultural, há uma falta de comprometimento", para em seguida completar: "Que pais é esse? Essa coleção tinha que ter sido comprada, tombada e exposta em caráter permanente no Brasil. É a história do país saindo pelo ralo".2 No mesmo tom, a historiadora de arte Aracy Amaral critica a "falta de espírito público por parte das instituições brasileiras, em nível federal, estadual e municipal, da elite financeira e do próprio colecionador".3 Em outra reportagem sobre a venda da coleção, a jornalista Suzana Velasco afirma que "ninguém tem dúvida do cuidado que o museu [MFAH]terá com ela. O que vem revoltando artistas e críticos é justamente a ausência desse cuidado em instituições brasileiras".4

O crítico de arte Paulo Sergio Duarte também deu seu depoimento, lembrando que "é importante pensar como, havendo R$1 bilhão disponível em isenção fiscal este ano, ninguém esteve disposto a comprar essa coleção".5 Moacir dos Anjos, diretor do Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães (MAMAM) de Recife, afirmou que "essa venda expressa a total incapacidade do Estado e da sociedade brasileira de conservarem seu patrimônio".6

     Mesmo sem que houvesse qualquer solicitação a respeito, uma vez que o maior alvo das críticas foi o governo, em suas diferentes estâncias, e sua falta de iniciativa diante da possibilidade de venda da coleção, Adolpho Leirner veio a público para se defender: "meu sonho era deixá-la [a coleção] no Brasil. Sou a pessoa mais infeliz porque a coleção foi para fora, mas também sou a mais feliz porque ela está em Houston, em boas condições".7 O colecionador ainda tenta relativizar os protestos afirmando que "nos últimos quatro anos, 400 obras do mesmo período da coleção saíram do Brasil, o que ninguém diz"7.

     O êxodo de obras de arte brasileiras tem se tornado quase que uma tradição (perversa) da cultura nacional. Não é exagero afirmar que parcelas significativas da história cultural brasileira já não se encontram no país. O exemplo de maior notoriedade dessa afirmação nos é fornecido pela obra Abaporu, de Tarsila do Amaral, que integra uma das fases mais importantes do modernismo, tendo inspirado Oswald de Andrade na criação do "movimento antropofágico". Este marco da história da arte brasileira foi vendido, em 1995, por US$ 1,4 milhão ao colecionador argentino Eduardo Constantini, integrando atualmente o acervo do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA). Outro exemplo nos é fornecido por declaração do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): "recentemente, a Tate Gallery, de Londres, comprou a obra Tropicália, de Oiticica. Essa é a obra dá nome ao movimento brasileiro dos anos [19]60, mas agora para a reprodução dela no Brasil, é preciso pagar direitos para a Inglaterra".8

     Segundo Luiz Fernando Almeida, presidente do Iphan, nos termos da legislação, o governo brasileiro não pode fazer nada em relação às negociações: "a legislação do país protege aquilo que é tombado - o que não é o caso dessa coleção - e as obras até o período monárquico"9. Patrícia Canetti, artista, criadora e coordenadora do site Canal Contemporâneo, encabeça parte dos protestos que surgiram após a venda da coleção de Leirner e sugere que seja exigido por lei a divulgação da venda das coleções nos cadernos de cultura de jornais e revistas de grande circulação, usando a cota de publicidade do governo, sem o que a Iphan não autorizaria a saída das obras. A idéia de Canetti é que, dessa forma, o Estado e a sociedade brasileiros tomem conhecimento das ofertas de coleções de arte10.

     A resposta do Iphan veio através da criação de uma instrução normativa que obriga a todos os comerciantes de obras de arte, antiguidades e outros itens antigos ou raros a procurarem o Iphan com relação das peças que comercializam. Essa nova obrigatoriedade, regulamentada no último dia 11 de junho, é um pré-requisito para a legalidade dos negócios com obras de arte no Brasil, abrangendo tanto pessoas físicas como jurídicas; "para implementar uma política de proteção, é preciso saber quais são essas obras, e onde estão – com o cadastro poderemos saber pelo menos quais estão sendo comercializadas", explica Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan.  
 

2 As Coleções Privadas

     Depois de todo esse rebuliço provocado pela venda da coleção construtiva de Leirner, o também colecionador João Sattamini, proprietário de um dos maiores acervos privados de arte do país, em entrevista a Fabio Cypriano para o jornal Folha de São Paulo, cogita a possibilidade de não renovar o empréstimo e de retirar sua coleção do Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro (MAC-Niterói): "estou aguardando uma reserva técnica adequada; se isso não acontecer, vou retirar as obras; essa é a única moeda de troca que tenho"11.

      A coleção de Sattamini possui cerca de 1200 obras de arte contemporânea brasileira, com destaque para Abraham Palatnik, Aluísio Carvão, Amilcar de Castro, Antonio Dias, Antonio Manuel, Artur Barrio, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Daniel Senise, Farnese de Andrade, Flavio-Shiró, Frans Krajcberg, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Iole de Freitas, João Carlos Goldberg, Jorge Duarte, Jorge Guinle, José Maria Dias da Cruz, Luiz Alphonsus, Lygia Clark, Lygia Pape, Mira Schendel, Raymundo Colares, Roberto Magalhães, Rubens Gerchman, Tomie Ohtake, Tunga, Waltércio Caldas, entre outros. Essas obras foram cedidas em comodato e estão no MAC desde a criação do museu em 1997.

     Outro acervo cedido em comodato é a coleção de Gilberto Chateaubriand. A coleção, que está sob os cuidados do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) desde 1993, compreende o período do modernismo ao contemporâneo com mais de 6.000 obras de 266 artistas. Os nomes mais conhecidos e significativos na coleção são Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Vicente do Rego Monteiro, Portinari, Pancetti, Aluísio Carvão, Ivan Serpa, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Carlos Vergara, Roberto Magalhães, Wesley Duke Lee, Nelson Leirner, Artur Barrio, Antônio Manuel, Jorge Guinle, Daniel Senise, José Bechara, Rosângela Rennó, Ernesto Neto, entre outros.

     O comodato é um contrato de empréstimo de coleções a museus. Para que estes possam usufruir o acervo, é necessário que se comprometam a preservar as obras. De acordo com estimativas do Ministério da Cultura, os recursos já investidos pelos museus no estudo, conservação e divulgação das coleções que estão sob sua responsabilidade por comodato dariam para adquirir as mesmas coleções. O diretor do departamento de museus do Ministério da Cultura, José do Nascimento Junior, alega que não são os museus que ganham com as coleções privadas cedidas em comodato, mas as coleções que ganham com os museus:

        As coleções foram valorizadas pelos lugares onde elas estão, os museus. Esses museus investiram, estudaram, catalogaram e, principalmente, conservaram e divulgaram essas obras, ou seja, agregaram valor às coleções12.

     Boa parte da riqueza artística nacional não se encontra nos museus, mas nas grandes coleções privadas. Adolpho Leirner, João Sattamini, Gilberto Chateaubriand e Sérgio Fadel são considerados os veteranos do ramo da coleção particular. O jornalista Antonio Gonçalves Filho revela:

        O perfil dos colecionadores de arte também mudou [...] Maduros, na faixa entre 40 e 50 anos, os novos colecionadores estão ajudando a definir o quadro da arte contemporânea brasileira, que já há algum tempo faz barulho em mostras internacionais como a Documenta de Kassel e a Bienal de Veneza13.

     O jornalista prossegue afirmando que o estereótipo do milionário que gasta fortunas num simples rabisco faliu. O novo colecionador avalia e na maioria das vezes recorre à consultoria de um curador de artes antes de efetuar a compra que, na maioria das vezes, é parcelada. Segundo a galerista Nara Roesler, seus melhores clientes são profissionais liberais que apostam nos contemporâneos14. O jornalista Marcelo Marthe explica:

        O gosto pessoal ainda fala alto, sim, mas eles preferem dar seus passos guiados por curadores. Entre esses novos mecenas figuram profissionais bem-sucedidos como o ex-banqueiro Roger Wright, que montou aquele que é considerado o acervo mais representativo de arte pop brasileira dos anos 60, o executivo do mercado financeiro José Olympio Pereira, dono de preciosidades do neoconcretismo, e o advogado Paulo Vieira, que tem uma coleção calcada no tema da paisagem na arte contemporânea. Mas as figuras mais pitorescas são o empresário mineiro Bernardo Paz e o banqueiro paulista Edemar Cid Ferreira. Paz está transformando seu sítio, a 60 quilômetros de Belo Horizonte, num museu com seis pavilhões construídos para abrigar suas 450 peças de sessenta artistas. Ferreira pretende fazer de seu acervo uma incubadora de exposições, que ele sonha em ver circular pelo mundo.15 

    Esses novos colecionadores estão movimentando o mercado das artes no Brasil, ou pelo menos no eixo Rio-São Paulo. O marchand Jones Bergamin diz que o setor movimenta anualmente cerca de R$ 40 milhões16. O jornalista Ivan Cláudio acredita que, contribuindo para este aumento do número de colecionadores, deve-se considerar o rigor da Receita Federal no combate ao "caixa dois" e à sonegação de impostos, aliado à baixa cotação do dólar norte-americano, propiciando que recursos fossem transferidos para o mercado de arte, transformado em uma das melhores e, em algumas vezes, a mais rentável opção de investimento de longo prazo17. O colecionador Charles Cosac lembra ainda uma importante motivação do ato de colecionar: "quem disser que colecionar não é um fetiche, está [estará] mentindo. Sinto um prazer quase sexual ao tocar minhas obras".18

     Porém, a quantidade de obras que saem do Brasil é infinitamente maior do que as que permanecem na mão desses mecenas, ou então nas instituições públicas. Os colecionadores explicam que, muitas vezes, não dispõem de recursos suficientes para a aquisição de mais obras brasileiras. Afinal, com o investimento das galerias e dos marchands, a obra de arte brasileira ficou conhecida e valorizada junto aos compradores estrangeiros, o que ocasionou um aumento significativo no valor de mercado dessas obras19. Quando questionado por Fabio Cypriano acerca do valor das obras, se entendia que a arte brasileira estava cara, o colecionador João Sattamini não hesitou:

        Acho, mas aqui há um problema duplo, porque é preciso considerar o preço da arte no Brasil em relação à renda, então não dá para cobrar como nos EUA. Por outro lado, a arte brasileira é a melhor da América Latina. Nem a argentina ou a mexicana se comparam, mas ela não tem o preço dos mexicanos, pois eles estão ali do lado dos EUA. É justo que artistas como Adriana Varejão ou Beatriz Milhazes ganhem o que ganham pelas obras, pois elas merecem, mas restringe muito a aquisição, por exemplo, do Gilberto, que é um comprador voraz, compra muito mais do que eu. Então temos que ir para os novos. Nesse sentido, tive duas sortes: uma foi comprar os concretos que estavam abandonados e depois a geração 80, que estava começando sua produção20.  

     Apesar das coleções privadas estarem aumentando, o número de pessoas que têm acesso às obras ainda é muito baixo. Os colecionadores têm consciência de que as obras que incorporam às suas coleções são mais da sociedade do que deles, como o próprio Leirner afirma em depoimento do livro Arte Construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner, organizado por Aracy Amaral: "[…] de maneira geral, [os colecionadores] entendem que não reúnem suas coleções somente para o seu convívio, mas para a sociedade, o que as mantém unidas".21 Contudo, são poucas as políticas praticadas para que essas obras cheguem efetivamente ao convívio do público.

     Como dito antes, alguns colecionadores cedem sua obra aos museus em comodato, para que esse cuide, divulgue e garanta o acesso do público. Infelizmente, são poucos os museus que possuem um espaço amplo para que essas obras fiquem em exposição permanente, o que compromete sobremaneira a eficácia e os objetivos desse mecanismo de comodato. Alguns dos novos colecionadores têm optado por criar institutos particulares de maneira a franquear o acesso público às coleções. No entanto, poucos dispõem dos recursos financeiros para abraçar essa solução, uma vez que a manutenção de um instituto ou fundação requer a contratação de empregados, pagamento de impostos, além de outras despesas pesadas até mesmo para o bolso de um colecionador de artes. 

     A falta de exibição da coleção particular acaba sendo um problema expressivo, principalmente se aliado ao êxodo das obras para outros países e à falta de políticas públicas de aquisição. Para se ter uma idéia, antes da coleção de Adolpho Leirner ser vendida para o MFAH, ela só havia sido exposta em seu conjunto em apenas duas ocasiões (1998 e 1999), no MAM de São Paulo e no MAM do Rio de Janeiro. José Nascimento Júnior, diretor de museus do Iphan, reconhece o problema ao reconhecer a necessidade de formação de "uma comissão para discutir uma política em relação ao patrimônio cultural. São necessários incentivos para que as coleções privadas possam se tornar visitáveis; faltam mecanismos nesse campo".22

     Selecionando um trecho da reportagem de Marthe para o caderno de arte da revista Veja, podemos constatar que:

        A legislação também contribui para que os acervos privados fiquem longe dos olhos do público. Enquanto em países como a França e os Estados Unidos as doações são estimuladas por meio de generosas deduções de impostos, no Brasil as vantagens são praticamente nulas. No Primeiro Mundo, também é possível abater as pesadas taxas sobre transferência de heranças com obras de arte. Foi o que fez a família do pintor Pablo Picasso, que doou boa parte de seu espólio ao governo francês, dando origem ao Museu Picasso. Outra dificuldade diz respeito à importação de obras de arte. Em países do Primeiro Mundo, os colecionadores podem comprar peças no exterior sem pagar impostos – uma maneira de incentivar a formação de acervos. 'No Brasil, só a importação de obras com mais de 100 anos tem esse benefício', informa o advogado João Mauricio Araújo Pinho, presidente do MAM carioca. Não é difícil perceber o absurdo: para trazer do estrangeiro um quadro de Tarsila do Amaral dos anos 20, seria preciso pagar imposto como de qualquer produto. Na ausência de alternativas, os colecionadores têm de encontrar suas próprias estratégias para assegurar o futuro, como criar fundações23. 

       Muitos alimentaram a expectativa de que a criação de uma sede da casa Daros-Latinamerica no Brasil significaria uma melhoria de acesso da população brasileira às obras nacionais. Afinal, a casa Daros, instituição sediada em Zurique, Suíça, é mundialmente conhecida pelo seu acervo de arte, reunido a partir de 2000, que conta com mais de mil obras de artistas latino-americanos dos anos 1960 até hoje, com nomes como Lygia Clark, Antonio Dias e Rosângela Rennó, a colombiana Doris Salcedo e o chileno Alfredo Jaar. No entanto, o diretor-geral da Casa Daros, o alemão Hans-Michel Herzog, já informou que a sede, que há um ano ocupa um prédio no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, e que tem data de inauguração prevista para 2008, não pretende mostrar "um material brasileiro, que já é conhecido aqui, e sim a arte latino-americana, pouco conhecida".24 

 

3 A ausência de políticas de acervo de arte na administração pública

   O governo brasileiro não tem nenhuma política consistente de constituição de acervo de obras de arte. Isso é resultado da forma com que o país resolveu encarar a cultura, ao assumir a renúncia fiscal como sua principal política cultural. Os recursos destinados à arte e à cultura passam a ser administrados pela lógica das diretorias de marketing do setor empresarial, com todas suas implicações políticas, culturais e sociais. Se já é raro ver no Brasil uma empresa apoiar a manutenção de um museu, imagina patrocinar a aquisição de uma determinada obra para o acervo de arte de um museu.

     O êxodo das obras de arte brasileiras, a falta de políticas de acesso às coleções particulares e a ausência de projetos de aquisição de acervos para os museus fazem com que nossas obras de arte sejam inacessíveis à população, e cada vez mais distantes e estrangeiras para a nação. O número de brasileiros que nunca ouviram falar de nomes que escreveram a história da arte do nosso país ainda é muito grande, e não há como exigir que essas pessoas gostem ou sintam orgulho de Tarsila do Amaral, Hélio Oiticica e Lygia Clark, se nem ao menos sabem quem foram ou o que fizeram por nós. Nesse cenário, não é raro encontrarmos pessoas que já tenham ido a mais de uma exposição de artistas internacionais, mas que nunca tenham visitado uma exposição de Lygia, Hélio ou Tarsila.

     O colecionador Adolpho Leirner dá seu depoimento no livro Arte Construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner:

        Tenho preocupações com relação à nossa política cultural e, felizmente, observo uma nova ordem e interesse com relação a patrocínios e incentivos. Vejo com muita alegria, nos últimos anos, o desenvolvimento de nossas instituições culturais. Observo com reservas o patrocínio de exposições milionárias somente para a obra de artistas internacionais. Elas são necessárias e importantíssimas, mas o apoio à nossa arte deveria ser privilegiado em todos os aspectos e não situar-se numa posição da inferioridade para que, a partir de nossa casa, possamos nos respeitar e receber o reconhecimento do exterior. Observei que a programação de nossos museus chegou, nos últimos dois anos, a 70% de exposições dedicadas a artistas estrangeiros. Não compreendo como artistas da qualidade de um Guignard e de uma Tarsila, por exemplo, não estejam presentes até hoje no Brasil inteiro, em nenhuma instituição ou sala, onde se possa ver a trajetória de suas obras em exposições permanentes. Uma política de aquisições e doações é essencial aos museus. Falta a organização de exposições temáticas, retrospectivas de artistas vivos ou mortos que, infelizmente, ainda não foram resgatados, proteger a dispersão de suas produções, um aumento substancial da nossa pequena bibliografia e a formação de catálogos raisonnés. Uma dedicação maior à arte brasileira é premente25. 
         

4 As implicações do êxodo de obras no ensino da história da arte brasileira

     Com a falta do acesso do público à produção artística nacional, o ensino da história da arte brasileira se torna cada vez mais complicado. O conhecimento passa a ser textual e descritivo, retirando toda a experiência estética proporcionado pelo encontro direto com a obra de arte. Sem o necessário contato com a obra de arte, torna-se extremamente difícil para os estudantes de história da arte sentirem, compreenderem e admirarem a produção nacional. Em um cenário como esse, não é de se espantar que casos de incompreensão se revelem público diante da produção de um artista contemporâneo. Não se pode exigir que o público, privado de acesso aos ícones históricos da arte brasileira, venha a entender e apreciar a arte de nomes contemporâneos como Erika Verzutti, Ernesto Neto, Janaína Tschäpe ou Leda Catunda.

      Também não adianta alegar que a arte basta por si só – é necessário que o público a veja. Caso contrário, ela continuará sendo compartilhada por um diminuto número de pessoas pertencentes ao mundo da arte. É preciso formar um público para arte, de maneira a que todos tenham direito ao acesso físico e intelectual, já que um não consegue ser completo sem o outro.

     O acesso físico acaba não ocorrendo devido a todos os fatores aqui comentados, o que compromete definitivamente o avanço do acesso intelectual. A educadora Ana Mae Barbosa acredita ser imprescindível discutir e descrever a imagem em sala, porém é sempre necessário o contato com a obra, incentivando continuamente o hábito de leitura imagética como exercício para a ampliação da capacidade cognitiva26. 
 
 

5 Algumas possíveis soluções (?)

     Com uma maior atenção vinda do governo, das empresas patrocinadoras e da população do terceiro setor poderíamos começar a montar um acervo para os museus, além de espaços para exposições permanentes para as obras adquiridas. Para que não fiquemos apenas na utopia, podemos nos espelhar no MAM paulista que conseguiu reunir cinco grandes empresas (Banco Real, Bradesco, Itaú, Camargo Corrêa e MasterCard) que ajudam a manutenção do museu, ao lado de uma política agressiva de busca de recursos governamentais, de novos sócios e visitantes. O MAM-SP possui um acervo de cerca de 4.000 obras de arte brasileira moderna e contemporânea, criado a partir do pós-guerra e o exibido permanentemente na Oca do MAM-SP, situada também no Parque do Ibirapuera.

      Quanto à falta de acesso às coleções privadas, os próprios curadores e espaços expositivos podem se associar aos colecionadores propondo projetos de exposição de suas obras, uma vez que isso interessaria a todos: o museu faria uma exposição de alta qualidade, proporcionaria acesso a obras particulares e os colecionadores teriam seus acervos divulgados e valorizados.

     Sem dúvida a maior dificuldade de acesso provém do êxodo das obras de arte; o processo de (re)importação temporária para exposições é caro e burocratizado. Mas ainda assim é possível fazer projetos de intercâmbio dessas obras para exposições no Brasil. Ou até mesmo criar uma política de reaquisição das obras vendidas, a partir de leilões e outras ofertas no mercado internacional de obras significativas para a história da arte brasileira; nessas ocasiões, o governo deveria promover um esforço para recuperá-las para o convívio dos brasileiros.

     Porém o ensino da história da arte não pode esperar que o governo resolva todos os (inúmeros) problemas e forneça todas as soluções. Se ficarmos esperando, mais e mais turmas se formarão com enormes defasagens no aprendizado. É preciso encontrar pelo menos soluções (paliativas) de maneira que a mitigar a perda dos conteúdos no ensino da história da arte. Essas soluções podem surgir da união entre educação e tecnologia. Ao montarmos e disponibilizarmos on-line o conjunto da produção de um determinado artista, algo como um catálogo raisonné digital, fazemos com que pelo menos as imagens fotográficas do conjunto das obras fiquem ao alcance de todos, mesmo que esta "solução" não propicie um contato direto com a obra. Apesar disso, e dos inúmeros comprometimentos e perdas que essa "solução" acarreta, entre os quais o não-reconhecimento da "aura", conforme expresso por Walter Benjamin, seria possível ao menos uma visão integralizadora do conjunto da obra do artista.

     Não há como negar que vivemos em um mundo dominado pelo poder tecnológico. Essa revolução, que ocorreu há pouco tempo, acarreta uma redefinição das maneiras de acesso ao conhecimento. Como afirma o educador Mario Barajas, embora os sistemas educacionais se caracterizem em todo o mundo por uma grande resistência às mudanças, a consolidação do uso de novas tecnologias para a informação e comunicação parece um feito incontrolável. Não se pode negar que essas novas tecnologias já permeiam o cotidiano da massa estudantil. Cabe ao educador a apropriação dessas tecnologias e a busca de otimização de sua utilização27.

     Um exemplo dessa associação entre ensino da história da arte e as novas tecnologias pode ser encontrado na Internet, onde o Projeto Portinari disponibiliza as obras do pintor brasileiro Candido Potinari em formato digital, formando um vasto acervo virtual28. É claro que uma fotografia nunca será igual ao contato físico com a obra, porém não podemos ignorar o fato de que pelo menos com os recursos tecnológicos o acesso intelectual fluirá com maior facilidade. 
 

6 Conclusão

      Como monitora da disciplina Arte Brasileira e Cultura Contemporânea, ministrada pelo orientador desse artigo na Universidade Federal Fluminense, pudemos constatar a diferença provocada pelo acesso físico direto à produção de arte, o que permitiu uma melhor compreensão e assimilação dos conteúdos da história da arte e das teorias da arte brasileira por parte dos estudantes. Em ocasiões distintas, os estudantes puderam visitar as mostras Tropicália no MAM carioca, e Anos 70: Arte como Questão, no Instituto Tomie Ohtake na capital paulista. Nessas duas ocasiões, os conteúdos da disciplina foram exaustivamente trabalhados no âmbito da sala de aula, sendo intercalados pelo contato direto com as obras nas visitas às duas exposições, além de contatos com curadores, etc.

      Diante dessa experiência, nos parece claro e fundamental que superemos as deficiências decorrentes da ausência de políticas governamentais consistentes para a constituição de acervos públicos, de maneira a propiciar uma facilitação de acesso às obras de arte brasileira a um público ampliado, além de diminuir a dependência de nossos museus em relação às exposições temporárias e contratos de comodatos, e, mais grave, que possamos mitigar o fluxo de êxodo de obras de arte para o exterior.

     Cada vez mais o governo parece abdicar dos serviços que em outros tempos tinha a pretensão de proporcionar à população, transferindo-os para iniciativa privada ou semi-privada, com conseqüências que têm sido denunciadas e necessitam ser debatidas em profundidade. É necessário que encontremos meios para resgatar parcelas significativas da arte brasileira que foram levadas ao exterior, já que, entre as inúmeras conseqüências dessa situação, conforme pretendemos investigar nessa pesquisa, a falta de acesso físico impõe uma série de dificuldades e defasagens no ensino da história da arte brasileira, sendo cada vez mais urgente a pesquisa por soluções de acessibilidade, já que, decerto, nos impossível levar todos os nossos estudantes de arte e de história da arte do Brasil a Houston, Estados Unidos, para conhecer (de perto e de fato) o patrimônio da ex-coleção de Adolpho Leirner. 
 

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