O Direito Achado na Rua e o papel...

Por Andrey Fontes Farias | 30/06/2017 | Direito

O DIREITO ACHADO NA RUA E O PAPEL HERMENÊUTICO-JURÍDICO NA (DES)COISIFICAÇÃO DO MUNDO NO SÉCULO XXI

1 INTRODUÇÃO

Em sua história jurídica, o Brasil por muito tempo foi marcado pelo positivismo. Os profissionais do direito atuavam como meros aplicadores das normas contidas nas legislações vigentes, sem importar-se com questões externas tão importantes como a justiça, por exemplo. Porém, diante da realidade brasileira repleta de desigualdades, exploração e miséria, a pretensão de aplicar o Direito de forma tão técnica não atende mais a uma das funções mais básicas deste campo: ser um instrumento de transformação social.

Destarte, surgiu nas últimas décadas o movimento do Direito achado na rua. Sendo de suma importância conhecer e expandir a ideia desenvolvida por seus pensadores, estes pretendem aplicar o Direito sob a ótica do bem comum e do interesse social. Buscam ouvir a voz daqueles que por muito tempo negou-se a escutar, proporcionando, assim, uma transformação da ordem jurídica.

Expressão concatenada pelo escritor e jurista brasileiro Roberto Lyra Filho, o Direito achado na rua é vertente que trata de uma legitimidade jurídica além dos códigos, leis, regimentos etc. Alcança as ruas, o espaço público, as ideologias do próprio povo, dos que vivenciam o direito em sua práxis — numa forte alusão humanista inerente a esse pensamento.

Entretanto, numa espécie de herança do pensamento metafísico moderno em sua estruturação das relações de acordo com a lógica sujeito-objeto, o Direito acaba criando uma objetificação até mesmo dos próprios sujeitos na sua produção jurídico-social. Boaventura de Sousa Santos (2010, p.33) revela que foram construídas divisórias, linhas abissais. Na maioria das vezes invisíveis, que separam a sociedade — de um lado a legalidade, proteção, monopólio, busca por justiça, do outro ilegalidade, esquecimento, violência, dominação. O Direito torna-se, então, uma manifestação de sucesso do pensamento abissal.

Com isso, a ciência jurídica é amplamente influenciada pelo senso comum teórico dos juristas. Pierre Bourdieu (2010, p.209) demonstra que tal ciência estuda o Direito como algo fechado, autônomo, que para ser compreendido tem de ser visualizado em sua própria dinâmica interna. Desse modo, ainda hoje se enxerga o positivismo preponderando em diversas circunstâncias. Muitas são as decisões de juízes que mais se preocupam em definir se a lei é justa em vez de perseguir se a interpretação desta é justa, segundo Juarez Freitas (1987, p.29). O processo interpretativo torna-se tendencioso quando oportuniza apenas os valores, crenças, justificativas e ideologias frutos de uma dogmática jurídica.

Nesse sentido, o trabalho aqui construído já é alvo de estudos por tais outros autores, como Boaventura de Sousa Santos. Ele defende a existência de um direito informal, pluralista, que não nega o Direito Estatal mas rechaça que este seja a única forma de Direito existente numa sociedade complexa. Em consonância, Juarez Freitas ensina que o papel do intérprete do Direito deve ser criar, produzir sentido através do diálogo entre os textos normativos e a realidade em análise, dando vida à norma. Lenio Streck, por sua vez, faz uma crítica ao modelo de produção jurídica ainda dominante na sociedade pós-moderna, onde a dogmática jurídica pressupõe já existirem respostas prontas para os problemas levados à sua apreciação. Outro autor é Pierre Bourdieu que ilumina a existência de um poder simbólico, o qual o Direito como um campo exerce esse tipo de poder sobre outros campos. Já Martin Heidegger apresenta o grande questionamento de sua fenomenologia hermenêutica: a pergunta pelo ser (Seinsfrage). Desse modo ele modifica o estatuto ontológico de uma relação com a materialidade dos objetos para uma relação de instrumentalidade. Na fenomenologia hermenêutica, o filósofo Heidegger critica o pensamento metafísico moderno quando diz que este entificou o ser ao pensá-lo exclusivamente de forma objetiva, tomando-o autoritariamente como um objeto. O Direito muitas vezes não é justo, pois é tido como um objeto isolado da própria sociedade onde acontece. Na verdade, sobre o fundamento hermenêutico, deve ser produto, reflexo do entorno. Assim, o Direito deve ser contextualizado, historicizado, incluído ao seu redor.

Portanto, com esse pensamento, busca-se entender qual o papel da hermenêutica, juntamente com o Direito achado na rua, no lidar com a tendência coisificante do mundo. Para isso, numa questão de método, investiga-se o conceito do Direito achado na rua, a realidade objetualizada e a mudança de paradigma proporcionada pela hermenêutica jurídica, à luz da analítica existencial heideggeriana. A pesquisa deste trabalho assume, portanto, um caráter exploratório, essencialmente sob a forma de pesquisa teórica ou bibliográfica, vez que se constitui de livros de referência, de leitura corrente, publicações periódicas, artigos, jurisprudência etc (GIL, 2002, p.162).

2 O DIREITO ACHADO NA RUA E SUA RELEVÂNCIA

A partir da corrente crítica de pensamento do jurista Roberto Lyra Filho, introduz-se um novo conceito chamado Direito Achado na Rua. Essa vertente desenvolveu um movimento chamado Nova Escola Jurídica Brasileira. Esta, logo após a morte de Lyra Filho,  foi continuada pelo professor José Geraldo Jr. através do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO, 2013, p.[?]). Esse núcleo tinha como alvo todos os envolvidos na área de Direito, principalmente os em contato com movimentos sociais, ONGs, comissões de Direitos Humanos, professores, estudantes etc. Enfim, todos os que buscaram uma nova forma de pensar o direito, uma compreensão crítica do fenômeno jurídico.

Posteriormente, tal corrente adquire maior consistência teórica e metodológica ao ser assumida por um grupo de pesquisadores da UnB que mantinham contato com parceiros por todo o país e até mesmo no exterior. O resultado disso foi a publicação de inúmeros livros e trabalhos concernentes ao direito achado na rua, ganhando profunda repercussão no meio acadêmico e profissional (NEP, p.[?]).

O ponto de partida para estudos jurídicos umedecidos pelo Direito Achado na Rua é a superação de certas visões que, prima facie, apresentam-se como óbvias à luz de um direito tradicionalista. Conforme a estrutura atual do direito, há uma forte separação entre a teoria e a prática. As fases de elaboração e criação de dogmas, normas etc, são na maioria das vezes desgarradas das entranhas do fato, do fenômeno jurídico prático, que ensejou ou será influenciado por aquela produção. O problema é que, desentranhar-se da prática é afastar-se da justiça, da pacificação social, da resolução de lides. O que se vê, em muitas situações é justamente a eclosão de novos conflitos, insatisfação, rejeição, principalmente por parte dos que diretamente serão envolvidos pela matéria teórico-dogmática.

O direito achado na rua põe em cheque esse fracionamento. Considera que não há teoria sem o suporte fático, sem a prática. Todo dogma precisa de uma fundamentação. E não há fundamentação menos democrática do que aquela que se ensurdece diante das exigências, questionamentos e reclamações do povo que será afetado. Roberto Lyra Filho (1980, p.40) expressa que sua corrente põe-se contra uma formulação teórica anterior à compreensão do Direito na prática social, pois a construção não deve ser restrita a um seleto grupo que elabora os dogmas, ainda que sustentados pelo sufrágio.

Como exemplo desta frequente separação, destaca-se o sociólogo e pesquisador Boaventura de Sousa Santos, que na década de 70 dedicou-se a analisar o nascimento de um fenômeno jurídico alternativo na favela do Jacarezinho, situada no Rio de Janeiro. Um nome fictício foi criado pelo autor para referir-se a esta comunidade: Pasárgada. 

Cumpre mencionar que esta designação adotada pelo pesquisador teve o intuito de preservar a própria comunidade na qual ele realizava seus estudos à época. Temia-se que as informações obtidas através dos moradores e líderes da favela os prejudicasse politicamente (KONZEN, 2006, p.172). 

Em seu estudo, Boaventura (1974, p.1) deparou-se com a presença de um pluralismo jurídico, que nas palavras do autor, existe “sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica”. No caso de Pasárgada, trata-se de um direito informal, não-oficial, gerido pela Associação de Moradores da favela para garantir a ordem na comunidade e resolver os próprios conflitos internos que surgiam entre eles.

 As lides levadas à apreciação da Associação versavam principalmente acerca da posse de terras e direito sobre os barracos que ali eram construídos constantemente. Como destaca Lucas Konzen (2006, p.174) “[...] justamente em relação a esses casos, o acesso à via oficial de resolução de conflitos estava vedado”. Boaventura (1974, p.2) demonstra que isto se dá porque à luz do direito oficial, a habitação dos membros da favela do Jacarezinho era toda ilegal. 

Insta salientar que no caso dos moradores de Pasárgada, chamar a polícia nunca era uma opção na busca pela resolução de conflitos. Temia-se que a comunidade pudesse ganhar mais visibilidade, gerando pretextos para remoção da comunidade “ilegal” da área em que se instalou. Os moradores também não ingressavam no Poder Judiciário porque não possuíam recursos para custear os honorários advocatícios. Por essas e outras, o sociólogo português constatou que os próprios moradores tinham a “consciência” de que eram ilegais frente ao direito presente nas legislações brasileiras. 

Assim, a busca por um direito era inútil e perigoso demais para um morador de Pasárgada. Boaventura percebe este elemento ao conversar com os membros da comunidade sobre os conflitos de terras. Para eles, a inutilidade se contemplava porque “‘os tribunais tem que seguir o código e pelos códigos nos não tínhamos nenhum direito’, e era perigoso porque levar os conflitos dos ilegais para apreciação do Estado poderia levá-los a “’nos jogar na cadeia’” (SANTOS, 1974, p.5, grifo nosso).

Assim, tendo como base o estudo de Boaventura de Sousa Santos percebe-se a existência de outros direitos não-oficiais. Estes vigoram paralelamente ao direito Estatal positivado nos códigos, nos quais os magistrados ainda ficam muito atrelados. Esquecem-se, na maioria das vezes, das exigências de justiça social tão presentes na realidade. Ademais, nota-se que o direito alternativo é fruto de práticas pluralistas como a da favela do Jacarezinho (Pasárgada), onde se busca novas interpretações por parte dos aplicadores do Direito. Isso tudo em virtude da “necessidade de romper paradigmas e colocar a justiça a serviço do povo.” (SOUSA, 2014, p.[?]).

3 O DIREITO E A OBJETUALIZAÇÃO DA REALIDADE

Destarte, o movimento do direito achado nas ruas visa a formação de um direito “vivo”, onde permite-se a aproximação entre o magistrado e as múltiplas realidades sociais existentes no Brasil. Isto se faz necessário porque o Direito, na verdade, não se encontra na lei, e sim no dinamismo social. Por isso a importância de se reconhecer que “o Direito é um fenômeno social que nasce das demandas sociais e a elas deveria se voltar” (RAMOS, 2012, p.1). Esta é uma das razões das inúmeras críticas tecidas por Lenio Streck (2005) no tocante ao atual ensino jurídico. Segundo o autor, a educação é totalmente descontextualizada, onde se trabalha apenas com conflitos interindividuais. A exemplo dos casos hipotéticos de conflitos entre Caio e Tício, já se tem à disposição do operador do direito respostas prontas para solucionar os problemas em questão. Porém, Streck revela que hoje predominam os conflitos de cunho transindividuais. Assim, envolvem não somente Caio e Tício que disputam uma propriedade de terra, mas também João, Maria, José, Antônio e outras milhares de pessoas sem teto que invadiram uma propriedade de outrem porque não tinham onde morar – como no caso estudado de Pasárgada. E diante destes casos, “os juristas só conseguem ‘pensar’ o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualista-normativista de produção de Direito.” (STRECK, 2005, p. 35).

Ressalta-se, mais uma vez, a necessidade de mudança de pensamentos dos atuais operadores do direito, como bem anota Roberto Lyra Filho:

[...]

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