O Destino Transcendental
Por Oscar Rosario Jorge Daniel | 23/04/2013 | LiteraturaO DESTINO TRANSCENDENTAL
Por: Óscar Rosário Jorge Daniel
Nestas nossas andanças literárias, deparámo-nos com os textos: Nas Águas do Tempo, da obra “Estórias Abensonhadas” de Mia Couto (1994), e, A terceira Margem do Rio, da obra “Primeiras Estórias” de João Guimarães Rosa (1995). São dois escritores distantes, tanto geograficamente assim como em termos de geração (Moçambique e Brasil) mas que se aproximam tematicamente.
Propomos o título acima por termos constatados que nos dois contos se trata de uma viagem para um mundo “além” das personagens: avô do narrador, no primeiro conto, e, pai do narrador no segundo.
Esta viagem nos dois contos é feita no rio através de uma pequena canoa “... enfilado em seu pequeno concho (...) [o] barquito cabecinhava...” (M. Couto; 1994:13); “...Encomendou a canoa especial, de pau vinhático, pequena, (...) como para caber justo remador.” (J.G. Rosa;1995:79); (o destacado é nosso).
No âmbito da nossa análise, procuraremos identificar as ideologias subjacentes em ambos contos através dos recursos técnico-literários neles existentes. Para tal, achamos viável usar o conceito da intertextualidade, porque é a partir deste que encontraremos e descreveremos os modos de manifestação dos códigos literários presentes nos contos e a projecção dos elementos temático-ideológicos neles predominantes, como afirma Carlos Reis (1982:32-34), que “... a análise da intertextualidade passa necessariamente pela denúncia e descrição de códigos comuns aos textos em correlação intertextual”, e, mais adiante acrescenta: “ a leitura intertextual (...) será tanto mais viável quanto mais consistentes forem os âmbitos semióticos e os sistemas de signos envolvidos no fenómeno da intertextualidade: códigos retóricos, códigos actanciais (...) determinantes periodológicas em que encontraremos projectados elementos temáticos e vectores ideológicos de algum modo esboçados já no âmbito da afirmação semântica dos textos em paralelos.” Desse pressuposto, partiremos com a seguinte hipótese de análise: A ideologia subjacente nesses dois contos é da transmissão de ensinamentos tradicionais entre avô-neto, no primeiro conto, e, pai-filho no segundo.
Antes de avançarmos para os contos, é pertinente definir o conceito análise, que segundo Carlos Reis (1981:39), é uma decomposição de um certo texto nos seus elementos constitutivos, descrevendo e descortinando as distintas partes que compõe o texto. E esta actividade só é completada com a integração da interpretação.
Assim, tomaremos como base esta definição para analisar os dois contos, procurando descrever e descortinar os elementos que os ligam e diferem, partindo de algumas técnicas-narrativas que a seguir usaremos, como afirma Michel Zéraffa (1974) citado por Carlos Reis (1982:20), que “a exigência estética do escritor dita-lhe, antes de mais nada, que escolha instrumentos de trabalho graças aos quais será capaz de traduzir uma experiência que lhe fez precisamente ver quanto a “sociedade” deferia do “social” (...) o romancista tem, contudo, uma forte consciência dos imperativos técnicos e estéticos de que dependerá a transcrição da sua visão de si mesmo e dos outros”.
Nos dois contos, o tema essencial é do destino para o mundo “além” das personagens protagonistas: avô do narrador, no primeiro conto, e, pai do narrador, no segundo. Esta viagem, como referimos anteriormente, é feita no rio – que para o segundo conto, passa à beira da casa do narrador através de uma pequena canoa. No segundo conto, a canoa só cabia para o pai do narrador, “Encomendou a canoa especial, (...) pequena, (...) como para caber justo remador (J.G.Rosa, p.79), e para o primeiro, apesar de ser pequena, cabia para o neto “ Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho” (M. Couto, p.13).
Por serem narradores homodiegéticos nos dois contos; isto é, sujeitos da enunciação que relatam acontecimentos por eles vividos mas que estiveram integrados na condição de personagens secundárias, há uma dificuldade do conhecimento dos motivos profundos dessas viagens por parte dos seus progenitores “Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento” (M. Couto, p.13); “Seria que, ele (...) se ia propor agora para pescarias e caçadas?” (J.G.Rosa, p.79); Mas, pela distância temporal que o narrador do primeiro conto leva na vivência com o seu avô, acabou sendo contado a motivação profunda que o levava a navegar naquele rio até ao lago proibido “... no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos (...) Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões.”(M. Couto, p.15-16). Esta distância temporal vivida no primeiro conto nos é caracterizada pelas conjugações verbais no pretérito imperfeito “...me levava rio abaixo (...) [a] maneira como me apertava era de um cego (...), Entrávamos no barquinho (...) depois viajávamos até ao grande lago...” (M. Couto, p.13-14) (destacado nosso), que difere do segundo conto onde o uso do pretérito perfeito dá-nos uma acção ocorrida e acabada naquele dado momento e não prolongada; o que ainda deixou em dúvida o narrador do segundo conta até ao fim da história.
Além disso, o que dificultou o tal conhecimento foi também a característica comunicativa das personagens progenitores dos narradores. Sinais, acenos, gestos, eram os modos de comunicação privilegiados pelos progenitores dos narradores tanto antes da partida para o mundo “além”, assim como depois de lá estarem. O antes: “Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.” (M. Couto, p.13) “Nosso pai nada não dizia (...) [n]em falou outras palavras (...) não fez alguma recomendação(...) nosso pai suspendeu a resposta(...) me acenando de vir também” (J.G.Rosa, p.79 – 80); (destacado nosso). O depois: “Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão (...) não vê o pano branco, a dançar-se? (...) eu coincidia com meu avô na visão do pano...” (M. Couto, p.14-17); “ Com um lenço, para o aceno ser mais (...), ele apareceu (...) ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto.” (J.G.Rosa, p.84- 85). Estas últimas passagens são características do mundo transcendental, onde a comunicação é gestual e não verbal.
O que difere nos dois contos é que no primeiro encontramos duas cores de panos: a vermelha acenada pelo vovô de narrador e a branca que é acenada pelos viventes do mundo transcendental. Esta última cor, no princípio era vista apenas pelo avô do narrador, mas depois de este ter estado no outro mundo já era visto também pelo narrador “ Não vê o pano branco, a dançar- se? Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde.” Depois: “ Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano.” (M. Couto, p.14-17).
A atitude da mãe do narrador tanto no primeiro conto, assim como no segundo é sempre a mesma de contestar as partidas dos progenitores dos narradores: “Nossa mãe jurou muito contra a ideia”, (J.G. Rosa, p. 79); “Era aflição de minha mãe (...) Em casa, minha mãe nos recebia com azedura” (M. Couto, p.13-14). Mas, o que difere o primeiro do segundo é o facto do segundo conto, a mãe ter o conhecimento das ameaças ocorridas naquele lago, assim como desconfiava dos propósitos do avô do narrador.
Depois da partida das personagens protagonistas para o mundo “além”, no primeiro conto, criou uma estranheza nas pessoas, que mais tarde reuniram-se e decidiram em procurá-lo “ A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente (...) Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho (...), o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beira do rio (...), se rezava e se chamava.” (J.G.Rosa, p.80- 81) enquanto no segundo conto não houve qualquer preocupação de o procurar porque o neto-narrador já tinha conhecimento da situação “... eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos (...) [p]resenciei o velho a alonjar-se com a descrição de uma nuvem” (M. Couto, p.15- 17).
Até aqui, achamos termos elementos suficientes para passarmos a identificar as ideologias subjacentes nos dois contos, visto ser impossível esgotar os signos literários patentes nos dois contos que nos permitem oferecer as luzes ideológicas neles representadas.
O rio, a canoa, atitudes das personagens protagonistas e a dos narradores, a característica de outro mundo são alguns elementos que foram abordados anteriormente e serão neste preciso momento usados para encontrarmos a sua denotação.
Todas acções nos dois contos, decorrem no rio, e, no segundo conto, é do conhecimento de todos que é um lugar proibido “ Aquele era o lugar das interditas criaturas” (M. Couto, p.14).
Carlos Reis (2000:407), considera que o espaço sendo uma categoria pluridimensional e estática, é possível e necessário que seja submetido à dinâmica temporal da narrativa e, se estabeleça uma verdadeira integração do espaço no tempo. Sendo assim, Lima Vaz (1993), citado por Alessandro Darós Vieira (2001) relaciona a tradição com o fluxo temporal e, acrescenta também que “na compreensão do termo tradição (parádosis, traditio) em sua significação restrita, "indicando entrega ou transmissão de uma riqueza simbólica que as gerações se passam uma à outra", denota a estrutura histórica e sua relação original ao fluxo do tempo", o que nos remete ao rio escolhido por estes dois autores como algo fluido que denota a transmissão de uma tradição dos progenitores (pai e avô) aos génitos (narradores).
No primeiro conto, a transmissão é dificultada tanto pelo pai, assim como pelo filho-narrador. O caso do pai: ele mandou fazer canoa para si próprio, com tamanho menor, que só cabia sozinho, “... nosso pai mandou fazer para si uma canoa (...) especial, (...) pequena, mal com a tabuinha de popa, como para caber justo o remador” (J.G.Rosa, p.79). O tamanho menor da canoa, dificultava a entrada do narrador que tanto desejou em viajar com o pai, o que podemos denotar que era uma forma de negar dar os ensinamentos ao seu filho. Além do tamanho da canoa, a atitude do pai em não querer se comunicar verbalmente com o filho, e em optar pela comunicação gestual, que se espalha pelo conto todo desde o início até ao fim do conto: a decisão do adeus, o convite feito ao filho para viagem, a bênção que dá ao filho, o primeiro saudar de gesto depois de longos anos; o que ele escondia no seu íntimo? Achamos que era também o não querer transmitir os ensinamentos da tradição que só ele os conhecia.
Por parte do filho-narrador, tanto ele desejou e esperou o regresso do pai, tanto esforço fez para que o pai voltasse, quando ele aparece o narrador pediu para que lhe substituísse, naquela canoa “...Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, (...) eu tomo o seu lugar, senhor, na canoa! (J.G. Rosa, p.85), e, quando o pai quis lhe ceder o lugar, o filho-narrador fugiu correndo “... corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado” (J.G. Rosa, p.85). Remete-nos também, uma atitude de rejeição por parte do filho-narrador de ensinamentos tradicionais.
Enquanto no segundo conto, há uma recepção e assimilação dos ensinamentos da tradição por parte do neto-narrador, desde o início até ao fim do conto. Embora a canoa fosse pequena, o vovô não excluía o seu neto “ Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso (...) Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor.” (M. Couto, p. 13- 14). Além disso, era frequente navegar naquele rio e sempre o velho levava o seu neto, ia transmitindo-o os ensinamentos “ Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava. – Sempre em favor da água, nunca esqueça! (...) Não se pode contrariar os espíritos que flúem (...) – Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo? Eu não via. Mas insistia, desabotoando os nervos ”. (M. Couto, p. 14). Sempre o vovô procurava amostrar o que ele próprio via noutra margem do rio, até chegou de lhe contar os segredos “Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões” (M. Couto, p. 16). No fim do conto quando o neto-narrador conseguiu ver o pano vermelho do seu avô, ele correspondeu “... lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares.” (M. Couto, p. 17). Por fim, começou a remar lentamente a meditar as palavras que o seu velho deixara e que partindo delas, procuraria ensinar o seu filho.
Partindo desta última abordagem e recorrendo ao conceito de intertextualidade na visão de Julia Kristeva, citado por Carlos Reis (1981: 128) que “a intertextualidade corresponde a um processo de absorção e transformação mais ou menos radical de múltiplos textos que se projectam (prolongados ou rejeitados) na superfície de um texto literário particular”, chegamos a concluir que, o segundo conto foi um prolongamento do primeiro, não em termos de dar um fim, mas sim, procurou dar o início, quando diz “A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem” (M. Couto, p. 17) e, o primeiro conto começa com a expressão “ Nosso pai era homem (...) mandou fazer para si uma canoa” (J.G. Rosa, p. 79), já nos remete ser este filho prometido em ser ensinado que depois não foi ensinado.
BIBLIOGRAFIA
COUTO, Mia (1994), Nas águas do Tempo - Estórias Abensonhadas- Caminho, Portugal
REIS, Carlos (1981), Estatuto e Perspectivas do Narrador na Ficção de Eça de Queirós – 2ª ed. Livraria Almedina, Coimbra.
REIS, Carlos (1981), Técnicas de Análise Textual– 3ª ed. Revista, Livraria Almedina, Coimbra
REIS, Carlos (1982), Construção da leitura – Instituto Nacional de Investigação Científica, Universidade de Coimbra
REIS, C.; LOPES, Ana C. M (2000), Dicionário da Narratologia – Livraria Almedina, Coimbra.
ROSA, J. G. (1995), A terceira margem do rio – Primeiras Estórias – 28ª ed. Nova Fronteira
VIEIRA, A. D. (2001), Análise Literária do conto “ A terceira margem do rio- Dissertação de Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal do Espírito Santo