O DESPERTAR

Por Maria Aglaide Neves | 06/12/2013 | Contos

O DESPERTAR

     Quem não se lembra da capelinha do morro São Clemente, aquela casa de oração que todos frequentavam assiduamente com muito respeito e contrição. Situada no simpático bairro das Palmeiras onde as casas eram de taipas com chãos batidos e a comunidade unida onde todos se entendiam com fraternidade. Foi ali que nasci, cresci e fui batizado com o nome de Vinícius Sousa. Com pouca idade subia aquela ladeira íngreme com toda naturalidade, todos os dias, até duas vezes. Havia lá a vendinha do Sr. Rivaldo que minha mãe D. Aurora Sousa, viúva, me ordenava a fazer compras para o nosso sustento. Éramos três: Mamãe, eu e minha irmã Judite. Nosso pai Avelino Sousa, morrera num acidente de carro ao atravessar a rua Vicente Paiva na vila São Clemente. Hoje resta apenas uma pequena cruz como simples e dorida recordação desta tragédia que muito nos abalou.

Meu pai era o único barbeiro do local, todos o conheciam e respeitavam. Na pequena sala da frente havia uma cadeira rotativa onde ele trabalhava honestamente com sua simplicidade para ganhar o pão. Fez na verdade grandes amigos que muito nos ajudaram após sua morte, nos visitavam e consolavam. Eu tinha na ocasião onze anos de idade e Judite três, frequentava a Escola Estadual Frei Florence fazendo o quarto ano primário e minha irmã estudava na creche Alvorada. Quando meu pai era vivo, nada nos faltava, ele comprava todo o nosso material escolar. Lembro-me com saudade da minha sacola azul com a insígnia seguinte: “FREQUENTE AS AULAS”, as letras eram brancas, meu uniforme azul com gola branca em formato marinheiro com âncoras bordadas de azul para contrastar e dar aquele visual bonito.

 Orgulhava-me ao sair pelas calçadas naquele traje de estudante da Escola Padre Clemente. Este padre viveu naquele local por vários anos, vindo da Cruzada Santa. Ali morrera deixando boas obras e bons costumes. Tornara-se célebre pelos serviços prestados. Não se pode avaliar o grande número de filhos adotivos que obteve. Era virtuoso em extremo, caridoso e popular. Criava-os e educava-os com recursos obtidos de uma sociedade cristã que envolvia muitos fazendeiros e que fora fundada por ele com o fim especial de ajudar as crianças carentes do local. Eu fui uma delas, tive este privilégio, estudei e me formei como advogado, em vaga obtida pelos seus adeptos, continuadores de sua carreira vocacional e criteriológica de cristianizar os jovens e prepará-los educadamente. Fui perseverante nos estudos religiosos, cresci participando de todos os eventos da escola e da igreja me devotando a irmandade Clarence. Após formado, instalei meu escritório na cidade exercendo a profissão de advogado em dias alternados e nos outros, cumpro o dever cristão que assumi como missionário visitante indo aos lares consolar os enfermos e orar a frente aos leitos dos moribundos.

Minha irmã Judite estudou em colégio de freiras tornando-se irmã de caridade. Trabalhou por anos a fio na CCC (Casa de Caridade Clarence) da mesma cidade São Clemente. Fora muito cortejada e desejada, porém sua decisão de dedicar-se a Cristo imperava em seu ser, nada lhe fez seguir o caminho da vaidade e da ilusão mundana. Sempre serena e bela, de fronte erguida seguiu o caminho da fraternidade e da caridade. Alegre e feliz é a flor odorífica de todos os tempos. Hoje tem quarenta e três anos e eu cinquenta e um, considera-me o seu guia e me envaideço agradecido. Nossa mãe viveu até os setenta e dois anos. Muito lutou para nos criar e educar. Foi cozinheira da escola Paroquial durante dezoito anos. Cumpriu mais do que o seu dever materno impôs. Só nos deu bom exemplo em sua trajetória terrestre. Muito simples, humilde, benigna e fervorosa. Morrera como uma ave mansa que volta voando para o seu habitat. Nossos corações, meu e de Judite, pararam por algum tempo, como máquinas enferrujadas. Depois do terrível acontecimento nos abraçamos como alucinados e perdemos a noção de nossas vidas por meses seguidos. Vizinhos e religiosos nos confortavam e nos forçavam a alimentarmos.  Eu permanecia solteiro e não queria casar-me para não deixar minha irmã em desamparo.

Naquela ocasião tristonha recebemos a visita de uma missionária de outra irmandade, por nome Deusanira, formada em teologia e lecionava na Faculdade Via da Luz Florence. Viera ver o nosso estado de desolação e inconformismo que nos causava depressão aguda.Impressionou-me o fato de nunca ter mantido contato e não conhecer aquela doce cristã, apesar de atuarmos em áreas afins.

Não medira consequências, pedira licença aos seus superiores e viera até nós com o simples propósito de nos libertar daquela dor insuportável. Cuidadosamente encaminhara-nos ao Dr. Ercílio Laerte, especialista em distúrbios neuróticos, acompanhando-nos em todas as consultas até o nosso restabelecimento.

Porém a minha gratidão com a mesma transformara-se em paixão ardente sem perceber que ela fora também atacada pelo mesmo cupido. Declarei-me corajosamente e fui aceito com ternura e muita doçura de sua parte. Durara apenas cinco meses nosso respeitável namoro para nos conhecermos melhor. Casamo-nos cheios de amor que a cada dia cresce e nos deleita. Fomos agraciados com três filhos homens: Claro, Clemente e Carlos e agora rogávamos a Deus que nos brindasse com a chegada de uma menina para que o nosso jardim fosse adornado pela feminilidade.

Frequentávamos o templo do AMOR A CRISTO com a finalidade de obtermos mais esta benesse que viria solucionar o nosso problema. Tencionávamos batizá-la com o nome de Aurora em homenagem póstuma a minha idolatrada e saudosa mãe. Carlos, nosso caçula já tinha nove anos e sentíamos a falta de uma criança em nosso lar.

Graças ao bom Deus era muito benquistono meu escritório de advocacia e tinha ótimos consulentes. Minha esposa Deusanira, adorável e perseverante, continuava trabalhando na mesma casa, Via da Luz, como responsável por cento e quarenta e oito crianças carentes e desamparadas. O seu ganho sempre fora aplicado em doações às famílias desassistidas e constantemente realiza visitas periódicas às comunidades carente da nossa cidade e arredores. Era o anjo da guarda dos necessitados. Comanda um grupo de dezesseis auxiliares que seguiam rigidamente a lei de Cristo Jesus.

Hoje a antiga capelinha do morro São Clemente fora restaurada e tombada como patrimônio histórico da grande cidade a qual se transformou. Foi construída a Catedral Espírita: “Clemência”, que tem feito prodígios e se tornara a fonte de esperança para todas as causas e males. Às vezes chego a comentar com Deusa, minha esposa, que aquela região é sagrada, talvez como se fosse a morada dos anjos por muitos motivos: calma, tranquilidade, fraternidade e evolução. Ali tudo cresce e floresce. Tudo se multiplica em benesses e realizações. Seus dirigentes são firmes em conduta, com planos honestos e transparentes. Há todo conforto possível. Atrai turistas pela sua posição geográfica, de serras, montes, cascatas e lindas relvas. É arborizada naturalmente, as árvores crescem, florescem e frutificam com abundância. Existem cinco nascentes de águas cristalinas que em suas cachoeiras banham-se crianças e adultos. Os visitantes se impressionam com tanta beleza natural. Há clubes, restaurantes e parques de primeiro mundo, onde os frequentadores fazem escolha do melhor lazer e conforto ao mesmo tempo. O trânsito é calmo e controlado. Os jovens percorrem as ruas de bicicletas. Adultos trabalhadores andam de metrôs confortáveis, asseados e baratos, pago pelos empregadores. Carros de luxo são guiados para altos funcionários de hierarquia com nível superior. Há muitas montadoras de autos e concessionária de carros populares que proporcionam aos chefes de família, comprarem com prestações módicas e preço total favorável, conforme suas posses. A saúde é ponto primordial dos governantes. Os médicos são privilegiados com moradas e ganhos excelentes. Hospitais muito bem equipados com aparelhagem de alta tecnologia. Há proteção respeitosa aos idosos. O policiamento é bem remunerado, trajam-se bem e são extremamente gentis. Pois possuem curso de especialização em comunicação humana. Há batalhões preparados especialmente para casos emergenciais, havendo entre as forças armadas muita união para manterem a paz e o desenvolvimento sustentável entre os habitantes da cidade. Interessante: não há cadeia. Há apenas uma irmandade espírita, conselheira, que se dispõe a contribuir com regularidade seus préstimos aos mais desenformados e ensina-os a conviverem sem atritos, seguindo normas de relacionamento de uma política racional. Portanto, a população vive num paraíso. Anda-se a pé pelas calçadas, ladeadas por jardins fantásticos. As plantas florescem perfumando as praças, onde todos se reúnem para passearem à vontade encontrando amigos e parentes. A cultura e a paz imperam, pois há entre eles comunicação amistosa. É fiscalizada atentamente a entrada de cargas para o controle de tráfico, bebidas alcoólicas e cigarros. As regras ditadas terão que ser cumpridas. Os moradores seguem a lei ou não continuarão morando na cidade. Não há escapatória, não aceitam propina no descumprimento das leis. Novos moradores ao chegarem naquela irmandade São Clarence para residirem participam de reuniões esclarecedoras dos seus deveres e comportamento. Construíram um bairro do outro lado do rio Claro, com conselheiros credenciados para ajuste e informações precisas no preparo de futuros moradores naquela cidade Eclética. Não demonstrando conduta adequada será expulso pelo órgão que dita a lei: “VIVER E PROCEDER BEM”. É uma cidade modelo em todos os aspectos.

Estou convicta que os meus leitores gostaram dos estatutos que a regem esta cidade. Depois deste preâmbulo permita-me dar continuidade a história do casal Vinicius e Deusanira.

Viviam em paz com os três filhos, porém continuavam desejando que a natureza exercesse uma função de suma importância para suas vidas, trazendo-lhes uma criança dosexo feminino para completar a família. Os dois se submeteram a exames meticulosos e foram desenganados pelos médicos que chegaram a conclusão haver esgotados as vias de produtividade nos três filhos existentes.

Não conformados, frequentavam assiduamente a casa espírita Via Luz, que na verdade era eficiente e levava seus adeptos a uma direção única segura e divina. A esperança e a confiança os confortavam e harmonizavam no que muito desejavam.

Certo dia Deusanira chegara do médico chorando de alegria e emoção, pois os exames constataram a gravidez de uma criança do sexo feminino. Bem, o pai muito satisfeito com a notícia gritava aos filhos: ─ Em pouco tempo chegará a irmã que vocês desejam e haverá de chamar-se Aurora como a avó de vocês, pois fiz esta promessa aos santos. Isto representará o renascer de nossa família.

A alegria reinava naquele lar era só o que comentavam. Foi preparado um belo quarto e o adornaram em grande estilo para recebê-la. No tempo certo chegara a hora da criança vir ao mundo no hospital São Claro. Bem, nascera a pequena tão esperada. Era bela como um anjo, porém fora constatado um problema: Uma de suas mãos era hermeticamente fechada e os médicos, depois de longo e acurado exame, avisaram aos pais que só a operariam com doze meses de idade e que se acalmassem, pois o problema era reversível.

Ela crescia como uma rosa em desabrocho: linda, sorridente e calma. Seus olhos azuis como o manto celestial. As faces de cútis corada como uma pétala da mais encantadora rosa. Era o idílio de todos. Numa sombria manhã de maio, mês de Maria, enquanto o pai a mantinha nos braços viu a sua mãozinha naturalmente se abrir e na palma havia uma palavra escrita com nitidez: “LOUVEM A JESUS” e desfalecera instantaneamente dando seu último suspiro. Vinícius aflito gritou por Deusanira que ao ver sua adorável filha morta sofreu imediatamente um delíquio perdendo os sentidos, voltando a si somente após a chegada do médico.

 Naquele dia deu-se o velório da Aurora e no dia seguinte o enterro daquela tão preciosa filha. Amigos, parentes e irmãos em Cristo, abismados com o inédito fenômeno e inexplicável acontecimento, comentavam e demonstravam grande sentimento pelo extraordinário e inesperado golpe. A mãe um pouco debilitada e desorientada assombrara-se com tudo que acontecera, pois não compreendia, a fundo, o grau da espiritualidade que poderosamente enviara aquela missiva inédita na mão de sua filha e chorava desesperadamente. O pai a aconselhava a suportar a dor com resignação e calma, porque nunca se sabe os mistérios infindos citados pelo mestre da vida.

No dia seguinte, em silêncio e sozinha, a mãe preparara um ramalhete de flores e fora a necrópole. Ao aproximar-se do túmulo da pequena filha ouviu um choro abafado e imediatamente participou ao coveiro e aos seus auxiliares, que não mediram esforços para aquela missão tão importante iniciando a escavação. O pai, ao ser comunicado, ansioso viera rapidamente ajuda-los. Mantinha-se trêmulo, choroso e ao mesmo tempo com grande preocupação para desvencilhar o que estava acontecendo.

Logo após a retirada e abertura do pequeno caixão todos observaram extasiados que aquela criaturinha tão doce realizara um pequeno movimento voluntário e emitira um breve som. Sem perca de tempo ligaram para o médico perito da Legião Espírita Clarence e este trouxera alguns livros de explicação sobre morte aparente e constatou com clareza que a criança estava com vida, não houve a morte cerebral, pois o mesmo funcionava normalmente.

Avaliem a satisfação dos pais com o milagre acontecido. Realmente a encantadora criança estava completamente normal e a retiraram da cova com grande surpresa e satisfação. Trouxeram-na cautelosamente para casa e Deusanira, diante de tamanho acontecimento, foi medicada para suportar a reação do milagre acontecido. A felicidade era imensa para os pais, parentes e amigos. Houve muita oração e pranto de gratidão a Deus Todo Poderoso.

Aurora, linda e exuberante, estendia a mão direita não apresentando mais aquelas palavras que ao nascer trouxera. Todos atribuíam este fenômeno ao regulamento daquela cidade e ao bom comportamento dos seus habitantes. Este miraculoso fato fez reavivar a fé cristã em todos os corações piedosos. O Senhor Bispo, Padres, Missionários, Irmãs de diversos conventos festejavam a grande graça com cânticos solenes e orações. Houve festa nas igrejas, procissões e bandeirolas no pátio da catedral com os dizeres: “LOUVEM A JESUS”.

O Bispo junto à comunidade religiosa dera início a novena, com este precioso tema e a cidade cada dia compreendia a missiva enviada pelo Altíssimo. São Clemente se tornara o maior centro espírita de todos os tempos. Fundaram muitas igrejas com referências a este estupendo milagre da palavra do SENHOR trazida na mão de uma inocente, para beneficiar de norte a sul todo o pessoal que ali habitava. Portanto: "Salve Deus!”.

Aurora, a bem aventurada escolhida por Deus, Crescera bela de formosura sem par e de bondade incomensurável. Morrera depois de atingir idade adulta deixando mil exemplos para todos e foi canonizada como a única e muito poderosa santinha do local. A cidade tornara-se ponto de grande romaria para ver aquela imagem que tantos milagres operara.

Findo agradecendo aos meus amigos do além, pela ajuda obtida na elaboração deste conto. Todos nós temos anjos que nos acompanham, só precisamos ter firme confiança.

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