O Desenvolvimento do Documentário Etnográfico

Por Kelly Porto Ribeiro | 11/12/2013 | Sociedade

  

Autora: Kelly Porto Ribeiro, Radialista graduada em Comunicação Social com ênfase em Rádio e TV pela Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

 

 

 

 

O DESENVOLVIMENTO DO DOCUMENTÁRIO ETNOGRÁFICO i

 

 

 

  

Histórico

 

 

 

Os filmes etnográficos são registros de caráter antropológico, geralmente no formato de documentário, que buscam estudar as diferentes sociedades e culturas. Os primeiros registros etnográficos foram produzidos como puro objeto de pesquisa. Equipamentos como máquinas fotográficas e, posteriormente, câmeras filmadoras eram instrumentos usados por pesquisadores, viajantes e exploradores.

 

Os primeiros filmes serviam como documentos de diferentes povos, pois continham descrições cotidianas e não ficcionais. A antropologia, que sempre busca o registro do “real”, passa assim a usufruir das ferramentas de captura proporcionadas pela fotografia e pelo cinema, dando início ao filme etnográfico e, no século XX, com o desenvolvimento de técnicas cinematográficas, ao documentário etnográfico.

 

A diferença de um formato para o outro é que os filmes passavam de um registro cru e objetivo da realidade, muitas vezes até sem montagem, a uma experiência fílmica interpretativa estruturada em torno de um argumento e seguindo as novas convenções de narrativa criadas para o formato de documentário.

 

Já no final do século XIX universidades e museus buscavam formar acervos com objetos, documentos e outros tipos de materiais a fim de sustentar uma boa base para pesquisa. Essa demanda estimulou ainda mais a produção de imagens fotográficas e em vídeo, de cunho etnográfico.

 

O filme Rondônia, de 1912, realizado por Roquette Pinto, é um exemplo de um dos primeiros registros fílmicos etnográficos a fazerem parte de acervos de pesquisa. A obra em questão exibe imagens do “exótico” através de gestos e comportamentos do outro.

 

Sem montagem ou som, ainda não desenvolvidos na época, o trabalho se inclui entre aqueles advindos da “geração intermediária” de etnógrafos, que atuavam apenas na observação e pesquisa de campo, distantes espacial e culturalmente da sociedade de estudo.

 

O cinema ganha novas perspectivas no pós-guerra: surge o “desenvolvimento do sonho no filme” com Meliès e um novo tipo de documentário, que tem como principais representantes Dziga Vertov e Robert Flaherty.

 

Vertov propõe o “Cinema Verdade” que vai contra qualquer tipo de dramaturgia e ficção. Para ele, o filme deveria consistir somente na observação e escolha, passando por três etapas: visão estratégica de filmagem, organização do que é visível durante a filmagem e produção de um sentido específico a partir do material bruto. Seu filme mais aclamado foi O Homem com a Câmera, de 1929.

 

Robert Flaherty tornou-se referência para o gênero de documentário devido a seu ideal de mostrar a comunidade observada por meio do ponto de vista do próprio nativo. Em Nanook of the North, de 1922, ele sugere esse registro de “um dia na vida de...”, que, desde então, passou a ser muito desenvolvido nos próximos documentários etnográficos.

 

Um trabalho semelhante ao de Flaherty, no sentido antropológico, é o de Bronislaw Malinowski em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922. A monografia foi resultado de uma pesquisa de campo fundamentada na verdadeira imersão do etnógrafo na vida da aldeia estudada, investigando temas através da própria convivência com os nativos e usando a língua nativa.

 

A fotografia foi usada não só como instrumento de registro, mas também a fim de expressar a noção do “eu estive aqui”, ou seja, de mostrar que o teórico pesquisador tornava-se parte integrante do grupo pesquisado.

 

O cinema, a partir daí, passa a apropriar-se cada vez mais dos campos pertencentes à antropologia, viajando pelo mundo a fim de obter imagens originais e belas de civilizações isoladas e/ou longínquas. Porém, a antropologia em si, depois de um início promissor, desprende-se mais do cinema, devido ao alto custo e á dificuldade de transporte de equipamentos pelos acadêmicos.

 

No Brasil, o registro etnográfico de comunidades indígenas começou a se destacar da Comissão Rondon (Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas). São exemplos de boas contribuições fílmicas: todo o material produzido por Luiz Thomas Reis até 1938, como Os Sertões de Mato Grosso e Rituais e Festas Bororo; os de Silvino Santos, como No País das Amazonas e No Rastro do Eldorado; os de Claude e Dina Lévi-Strauss, como Cerimônias Funerárias entre os Bororo, Aldeia Nalike, Festa do Divino Espírito Santo; e a produção do alemão Harald Schultz, advinda de sua pesquisa no Brasil.

 

O Serviço de Proteção aos Índios também proporcionou obras nacionais de grande valor etnográfico, como os filmes que resultaram da colaboração entre Heinz Forthman com o antropólogo Darcy Ribeiro: Um dia na Vida de uma Tribo da Floresta Tropical, de 1950 e Funeral Bororo, de 1953.

 

Segundo Paul Henley, a década de 1950 no Brasil tem sua produção fílmica marcada pela participação de cinegrafistas, ligados de alguma forma à vida acadêmica, preocupados com a documentação etnográfica e ao mesmo tempo também com a narrativa do documentário cinematográfico.

 

Na década de 1920 o gênero de documentário se populariza e ganha destaque na Escola Inglesa, especialmente com Grierson. No Brasil, o cinema documental é regulamentado apenas no Estado Novo, Getúlio Vargas vincula o cinema a fins culturais e estabelece condições de apoio ao filme cultural. Cria-se também o Instituto Nacional de Cinema Educativo.

 

Aos ingleses e americanos é concedido o patrocínio de órgãos educativos e televisivos, o que gerou uma nova posição aos filmes etnográficos e deu origem a diversos filmes “reconstituídos”.

 

Paul Henley formula uma ideia baseada na contraposição do documentário ao filme etnográfico clássico, reconhecendo no trabalho de Jean Rouch a articulação dos dois conceitos.

 

Rouch busca um cinema documental livre de empecilhos entre o observador e o observado criando uma nova linguagem em que não somente o etnógrafo participa da cultura local como também o nativo participa mais ativamente da produção antropológica e fílmica.

 

Rouch propõe além da “antropologia compartilhada” e das “etnoficções” uma proposta de “cinéma-vérité”, que parodia o Cinema Verdade, de Vertov.

 

Com isso, dá-se uma nova fase no cinema etnográfico que influencia fundamentalmente os cineastas brasileiros do Cinema Novo, devido a sua maneira de fazer filmes sem artifícios e maquiagem, com a câmera na mão e baixo custo.

 

O Cinema Direto, americano, e Cinema do Vivido, canadense, são contemporâneos ao Cinema Vérité francês de Jean Rouch sendo que os filmes não representavam mais o “real”; agora eles mesmos são diálogos livres da realidade.

 

O documentário desenvolve-se aperfeiçoando sua linguagem própria e aproximando-se cada vez mais do universo do cineasta, mas mantendo a pesquisa na tradição antropológica. Questões políticas, urbanas, étnicas e até mesmo sentimentais são colocadas em foco.

 

No Brasil, a forte preocupação política, a partir da década de 1960, encoraja a produção documental, muitas vezes contando com a participação de cientistas sociais. Um exemplo: Brasil Verdade, de 1968, que reúne quatro médias-metragens de diretores diferentes. A produção etnográfica nacional, apesar de motivada pela visão política, continua sobretudo vinculada a estudos de sociedades indígenas.

 

Durantes as duas décadas seguintes, vários estudos são feitos em relação ao documentário etnográfico e à maneira como este tipo de filme é produzido, analisando seus conceitos, linguagem, argumentos, inovações tecnológicas na produção e outros.

 

De grande importância também foi a experiência do antropólogo Terence Turner introduzindo equipamentos de vídeo em comunidades indígenas, em 1980. Dando continuidade, o Centro de Trabalho Indigenista cria o projeto “Vídeo nas Aldeias” em que indígenas eram capacitados para realizarem produtos audiovisuais que expressassem suas culturas. Alguns exemplos de vídeos produzidos neste projeto são: O Espírito da TV, A Arca dos Zo’e, Segredos da Mata e outros.

 

Eduardo Coutinho retoma seu projeto Cabra Marcado Para Morrer, da década de 1960, inciando sua produção documental e definindo um estilo de documentário que consiste na interação entre o diretor e o sujeito. Grandes títulos de Coutinho são Santa Marta: Duas Semanas no Morro e Boca do Lixo.

 

No final da década de 1980 novas ideias se inserem nos estudos e tendências da etnografia. O conceito de “narrativas ficcionais” no texto etnográfico possibilita novas linguagens de pesquisa e imagem.

 

 

 

 

A Produção Atual

 

 

 

No final do século XX o documentário etnográfico é mais uma vez reformulado; agora com melhores condições técnicas cinematográficas, entrevistas, narrações em off, trilhas sonoras e com a presença objetiva e subjetiva dos realizadores.

 

Os filmes etnográficos, que no passado eram totalmente inacessíveis às sociedades estudadas agora são compartilhados, fazendo com que os retratados assistam ao produto final e reflitam sobre suas próprias culturas e costumes.

 

São preservados os antigos documentos e materiais antropológicos: fotografias, textos, relatos, objetos originais e registros fílmicos clássicos continuam sendo muito valorizados e utilizados juntamente a documentários recentes.

 

A produção documental etnográfica recente engloba tanto títulos de produção independente, como também os comerciais, que ainda possuem o “olhar antropológico”. A mídia indígena também colabora com sua própria produção. Documentários produzidos para a televisão adaptam a linguagem documental à televisiva proporcionando à grande audiência novos olhares sob o mundo.

 

A parceria entre antropólogos e cineastas resulta na formação de pesquisadores especializados nas técnicas de imagem e de documentaristas na pesquisa etnográfica. Isso reflete, inclusive, nos diversos festivais de filmes etnográficos em que o júri é composto por especialistas das duas áreas: cinema e antropologia.

 

O documentário antropológico funde-se aos produtos audiovisuais contemporâneos e vice-versa. A aproximação da realidade fica cada vez mais evidente, originando na televisão o fenômeno dos reality shows, como o nacional No Limite. No cinema, est mesma noção de aproximação do real interfere nos filmes de ficção, especialmente nos do gênero de terror. Em A Bruxa de Blair há uma simulação de filme documental com a intenção de potencializar a tensão no espectador.

 

O documental também aparece valorizado na narrativa ficcional de filmes como Central do Brasil, De Walter Salles, e O Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.

 

 

Os antropólogos descobrem que podem contar histórias, mesmo que reais, por meio de imagens. Assim, novas poéticas juntam-se ao filme etnográfico ampliando suas fronteiras ideológicas e estéticas. A produção híbrida de formatos e a colaboração diversificada, contando com pesquisadores, antropólogos, cientistas e cineastas, além dos envolvidos no objeto de estudo, enriquece a experiência fílmica com distintas visões, que formam o verdadeiro sentido do documentário etnográfico contemporâneo.

 

 

 

i Este artigo foi produzido com base no texto “Tendências do Documentário Etnográfico”, de Patrícia Monte-Mór, parte integrante do livro “Documentário no Brasil: Tradição e Transformação”, Summus Editorial, 2004.