O Demiurgo

Por Romano Dazzi | 11/06/2009 | Crônicas

O DEMIURGO

 

Escurecia.  O professor Gorliky atravessou a rua  Vergueiro, percorrendo com o seu passo calmo e pausado a faixa de pedestres.

O tempo exato da travessia, e o semáforo mudou; a maré represada de meia centena de carros acelerou ruidosamente, com toda a potência, rumo ao semáforo seguinte.

O professor Samuel Gorliky devia ter uns setenta anos de idade, era alto e sisudo.

Seus cabelos brancos e os grossos óculos de aro preto e lentes esverdeadas distinguiam-se facilmente, nos corredores da faculdade, apinhados de alunos.

Ele era um paradigma: tinha o aspecto e as características  da profissão,  exercida a vida toda: professor de literatura universal, de hábitos modestos, respeitado pelos seus profundos conhecimentos.

Mesmo agora, às vésperas da aposentadoria, continuava pontual, assíduo e eficiente.

Agnóstico ferrenho, solteirão inveterado, quase um misantropo, era todavia um homem totalmente aberto ao aprendizado e à cultura.

Nas suas palestras revelava respeito pela humanidade e enaltecia que a dignidade, a disciplina e a compaixão são eixos seguros – uma regra de vida.  

Morador do Butantã, próximo à Universidade, nunca tinha-se aventurado a andar pela Vila Mariana; mas naquela tarde de quarta feira, seguia pela rua Eça de Queiroz, com suas passadas regulares. Ninguém notaria uma perturbação estranha que o aborrecia. Estava procurando um endereço, que só tinha visto de relance, em sonho.

O mesmo sonho, repetido todas as noites, exatamente igual, durante a semana inteira.

Via o nome da rua, o número do prédio; entrava; estranhamente, o porteiro não lhe pedia sua identificação, nem qual  conjunto procurava.

Entrava diretamente no elevador e apertava o botão do décimo andar.

A porta branca abria-se e um homem careca, com um pouco de barriga, de camisa branca e suspensórios, recebia-o sorrindo à porta, convidando-o a entrar.....

O sonho acabava naquele mesmo ponto, todas as noites.

Era um convite irrecusável, principalmente para um pesquisador curioso como ele..

Assim, agora o professor  Gorliky encontrava-se no local exato, conhecido no sonho.

Parou na frente do prédio, pensou um pouco – não por estar com dúvidas, mas para resumir toda a situação. Respirou fundo.

Como no sonho, atravessou o saguão sem parar, entrou no elevador, subiu ao décimo e a porta branca se abriu, mostrando aquele sorridente senhor de sempre...

De sempre? Mas como, se nunca tinha estado lá?!!

O professor entrou na sala e iniciou uma parte nova de sua aventura.

O que via agora, via-o pela primeira vez, sem dúvida; uma sala comum, com duas mesas e um velho  computador; uma moça trabalhava nele e não levantou os olhos.

O careca indicou-lhe uma poltrona e ele sentou-se, enquanto mil pensamentos lhe atravessavam a mente.  Criou-se um estranho silêncio.

Finalmente, o careca tomando a iniciativa, apresentou-se, estendendo seu cartão

-“Boa tarde, professor Gorliky – disse com uma voz profunda – Meu nome é Dr. Demiourgos - sou de origem grega, como pode ver .”  E esperou a reação do visitante.

-“Como sabe o meu nome? – perguntou o professor.

-“Há muitas coisas que sabemos, professor. Nossos computadores têm bancos de dados amplos e conhecemos a vida de muitas pessoas. Mas não se preocupe; pertencemos a uma sociedade séria e respeitamos a privacidade acima de tudo.”

E continuou: -“Sabíamos que viria, mas não sabíamos quando; teve dificuldade em encontrar nosso endereço?”

E o professor , relutante: -“Não, não; as suas instruções telepáticas foram suficientes”.

-“Perdão “ – respondeu o dr. Demiourgos “mas foi o senhor, que nos procurou, com insistência. Queria conhecer-nos, talvez sem o saber; nós facilitamos a sua chegada.

Aliás, sua parte consciente resistiu, durante uma semana às nossas mensagens . Parabéns: uma força de vontade significativa.

O professor estava confuso, perplexo: sua mente, acostumada a uma  lógica rigorosa, recusava-se a aceitar aquela situação inusitada, estranha aos parâmetros normais.

Primeiro imaginou estar sonhando. Depois, pensou que alguém o dopara. Por fim, deduziu que  estava sofrendo de alucinações; mas suas tentativas de retornar a uma improvável realidade falharam rapidamente.. 

Ficou sem reação, aguardando  o que mais estaria por vir.

O dr. Demiourgos continuou:

-“Não é raro que pessoas especiais, como o senhor, procurem entrar em contato conosco. - Em geral permitimos que nos conheçam e fiquem sabendo algo mais sobre a humanidade e o universo, ampliando o seu conhecimento. - Para nós é um privilégio poder explicar tudo, dentro das limitações às quais está sujeita a mente humana “

O raciocínio do professor estava caminhando rapidamente;

-“Estou sendo enganado descaradamente por um charlatão – pensava;  mas logo revia na realidade o que tinha visto no sonho e isto  renovava suas  dúvidas .

-“Professor, - continuava o outro – o senhor conhece a cultura grega; portanto sabe o que é um Demiurgo: É alguém que desempenha um cargo, que exerce uma profissão refinada.  É um fazedor, um realizador; e é  também aquele que executa uma tarefa espinhosa  por conta de alguém, que não deseja levá-la a cabo.

O demiurgo não planeja. Apenas realiza. Cumpre. Faz acontecer.

Pois eu sou um Demiurgo. Este é meu nome, como lhe disse . E esta é minha função.

Muitos anos atrás  Thánatos, a velha senhora que vocês chamam “Morte”, cansou de seus afazeres; não é fácil, para uma pessoa da idade dela, carregar  onze mil almas por hora  – e  isto em condições normais, quando não aparece um tsunami, um terremoto, uma bomba atômica, uma guerra mundial. 

Concordo que o peso da alma é insignificante. Seria pior, se ela tivesse que carregar as consciências;.existe cada consciência  pesada!.... Mas as consciências  voam por conta própria e esperam seus proprietários lá em cima, para o ajuste de contas.

Thánatos, como lhe dizia, chamou os Demiurgos para substituí-la nas desagradáveis tarefas que lhe cabiam.

Ela só define quem vai e quando. Prepara-nos uma lista semanal, com as datas e o número de série dos  escolhidos.  Nós saímos à procura deles. Não é tarefa simples:

Se todo o mundo fosse colhido pelo momento fatal em sua casa, no seu endereço, bastaria ter um daqueles livros dos Correios; pelo CEP, tudo seria simplificado.

 

Mas mandam as leis do universo que tudo seja ditado pela fatalidade, pela casualidade. Que se dê uma idéia de leveza, de incerteza, em tudo aquilo  que obrigatoriamente deverá acontecer. Que o imprevisto domine tudo, revirando e confundindo qualquer roteiro, qualquer manuscrito pré-fixado.

Imagine se as pessoas tivessem certeza que a morte viria busca-las na cama;  algumas, em pânico, a venderiam e nunca mais se deitariam, em lugar algum; outras, decepcionadas com os amores, a miséria, a doença, as injustiças, não sairiam mais da cama, esperando ser levadas rapidamente.

Não. Não é permitido saber o lugar nem o momento que nos foram determinados.

Mas é dificílimo descobrir onde estão os mortais da lista diária.

Encontramos facilmente os doentes, os desenganados, os que estão notoriamente no fim de sua precária existência: estão em clínicas, hospitais, casas de saúde (que nome esquisito para uma casa de doenças) enfermarias, lazaretos, pronto socorros.

Quando chego, confiro sempre os números de registro geral; porque já me aconteceu de levar um homônimo e enfrentar depois um trabalhão para desfazer o equívoco.

Mas o pior é quando o escolhido tem, por exemplo, um mal súbito; ou é atropelado; ou quando cai do trem, da moto, do avião; nunca sei onde o pobre diabo está – perco um tempo enorme procurando o numero de série nas listas e ele fica lá esperando que alguém o carregue. .

Aliás, eu juro: se pudesse, eliminaria a lei da gravidade; assim, todos teriam mais oportunidades. Não cairiam mais. Ficariam suspensos, ou desceriam suavemente, sem se machucar...com a ajuda das pessoas próximas.

Uma outra incógnita é a “causa mortis”; nossas listas não indicam de que, o candidato morrerá. Isto complica-nos ainda mais.

Por exemplo: vigiamos a manhã toda um limpador de vidraças, certos que ele vai despencar; mas nada acontece; o infeliz morre meia hora depois, de indigestão.

É o máximo da imponderabilidade!.

 

A partir daí, o professor notou que a natural simpatia do Demiurgo mudava, aos poucos, enquanto ele verificava umas listas recebidas da secretária.

Adquiriu um ar de seriedade, contrafeito, aborrecido, e por fim, cortou toda a familiaridade que usara até então.

“Lamento, professor” – disse então secamente – “nossa conversação acabou; tenho.  

muito o que fazer e creio que lhe dei explicações demais. Até logo!” – e estendeu-lhe a mão friamente, sem a menor vontade de apertar a dele.

- “Queria se ver livre de mim”–pensou o professor–“soube alguma coisa que o abalou”.

Segurou com força a mão do Demiurgo, até que ele, sem jeito, lhe revelou o segredo: -“O senhor tem uma semana, professor; uma única semana! Depois, virei busca-lo!”

Sem saber como, um segundo depois, o professor encontrou-se na rua.

Andou alguns metros e sentou-se pesadamente num banco da pracinha.

-“Puxa! Uma única semana de vida! Até a quarta feira, 24 de junho, às 17:30.

Loucura!”

Convenceu-se aos poucos que isso lhe tinha acontecido de fato; não era alucinação, droga, sonho, pesadelo, imaginação...Era verdade. Era real.

Mas ainda não podia acreditar.

Uma senhora aproximou-se solícita, perguntando se estava indisposto, se precisava de alguma coisa. Ele agradeceu e confirmou que tudo estava em ordem.

- ”Puxa!” - comentou ela  - “o senhor está com a cara de quem viu um fantasma!”

- “Chegou perto, senhora...” respondeu ele – e pensou: - “Nem sabe quanto!...”

 

Agora pergunto: o que faria você, ao saber que tem só uma semana para viver?

 

confessar-se-ia, rezaria, prepararia a sua alma?

beberia e comeria até não poder mais?

procuraria uma grande árvore, para ler calmamente um livro à sua sombra?

deitaria para dormir desde já, cancelando o futuro?

daria um passeio, iria pescar, ficaria ouvindo os ruídos da floresta?

iria dançar, pular, farrear, até cair de cansaço?

ficaria deitado no chão, olhando as estrelas?

jogaria cartas ou damas, com desconhecidos, na pracinha perto de casa?

sairia para procurar o vento e empinar uma pipa?

ficaria ouvindo música e poemas, iria ao cinema ou ao teatro?

faria uma viagem de balão, um salto de para quedas, um vôo de planador?

despedir-se-ia de seus livros,das roupas, da bicicleta, do seu confortável roupão?

daria tudo o que tem – tudo, até as coisas mais queridas, pois nada se pode levar?

tentaria dizer um adeus carinhoso aos amigos, aos parentes e àqueles com os quais tem alguma continha em suspenso?

dedicar-se-ia a pôr ordem em todas as suas coisas, ou as deixaria em total bagunça?

 

O professor fez-se estas perguntas e percebeu  que se esquivara a vida toda de fazer tantas coisas que lhe teriam dado um imenso prazer; e tantas outras que teriam sido extremamente úteis aos outros.

Fechara-se na sua concha e vivera como uma ostra.

E agora, sem nenhuma opção, sairia da vida, antes de perceber que tinha vivido.

Mas arrependimento não paga dívidas.

Descobriu que poderia fazer muito, muito de verdade, neste último prazo, que se transformava, de repente, em um rico presente.

Não seria “só uma semana”; seria “uma longa semana inteira”

Era um professor, afinal;  não “apenas um professor” como costumava dizer;

Mas “um digno e competente professor de literatura universal”

Era capaz de enfrentar uma classe de cinqüenta desordeiros -  e dominá-los.

Era capaz de ser ouvido e compreendido por eles, enquanto os alimentava com as idéias e as obras mais bonitas e importantes de pensadores, escritores e poetas.

Os homens mais sábios do mundo as haviam escrito, para que ele pudesse renová-las e retransmiti-las, com a sua própria emoção, aos ouvidos selvagens de seus alunos.

Uma semana era pouco – mas era bastante.

Na quinta feira de manhã, a barulhenta turma da primeira aula encontrou-o a explicar e interpretar Shapeskeare, Bacon, Corneille, Racine, Petrarca, Leopardi, Hugo. E todos calaram e o escutaram com respeito e carinho; e talvez pela primeira vez na vida, entenderam o sentido que aquelas palavras possuíam.

E assim foi, até o meio dia da quarta feira seguinte

A faculdade parecia estar revivendo. Ares de cultura e de humanismo permeavam as salas e os corredores.

Na tarde de quarta feira o professor Samuel Gorliky voltou à Vila Mariana.

Sentia-se corajoso e realizado. Era um outro homem, irradiando segurança, otimismo.

Entrou no mesmo prédio, foi diretamente ao elevador, subiu ao décimo andar.

A porta branca estava fechada. Hesitou um pouco, antes de bater.

Encontrou coragem. Bateu. Não houve resposta. Novamente, com mais força. Nada.

A porta estava trancada, não havia sinal de que alguém estivesse lá dentro.

Decepcionado, desceu. O porteiro, solícito, perguntou:

-Então, gostou dos conjuntos, doutor? São confortáveis, no melhor ponto do bairro, são arejados, bem iluminados, em perfeita ordem. O aluguel é baratinho. Limpo-os eu mesmo toda a semana, apesar de estarem fechados há mais de dois anos....Se quiser, posso lhe dar o telefone do dono....

Ms o professor não o escutava mais. Na rua, tomou um táxi, e foi direto para casa. No caminho, procurou no bolso o cartão do Dr. Demiurgos: estava em branco.

Chegando, nem precisou por a chave na fechadura. Sabia que estaria aberta, sabia que ele estaria lá. O careca sorriu, um sorriso franco, aberto, cordial.  Apertou-lhe a mão, abraçou-o e disse, constrangido: “Vim busca-lo, professor. Como prometido...”

O professor não pestanejou; sentou-se calmamente diante da xícara de chá, que fumegava na mesa. –“Achei que lhe agradaria...” sussurrou o dr. Demiurgos.

“Duas colherinhas rasas, por favor...” respondeu o professor.

Após a pequena cerimônia do chá, recostou-se e esperou.

O Demiurgo suspirou profundamente e anotou data e hora na sua ficha:

“Quarta feira, 24 de junho, 17:30 – Tarefa executada”.

Passava das oito, quando o encontraram.

“Um enfarte fulminante do miocárdio”- disseram. “A morte mais bonita. Não sentiu nada, não sofreu nada...que descanse em paz...”

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É verdade, eu juro: a cada minuto, 190 pessoas nos deixam, e suas almas entram

em um mundo melhor, mais justo, mais luminoso, mais puro;

No imenso universo que nos cerca, há um lugar certo, reservado para cada um.