O CRIME DE DESACATO NO BRASIL: O CONFLITO DE DIREITOS ENTRE POLÍCIA E CIDADÃO

Por Pedro Henrique Holanda da Silva Fonseca | 25/04/2017 | Direito

RESUMO

Diante de demasiadas ocorrências de desacato, sejam elas justificadas ou não, este tipo penal passa a ser bastante discutido no âmbito jurídico. Primeiramente, se faz necessário observar a função da polícia, seus deveres e direitos. O ponto principal que se destaca é a confrontação entre o sujeito que detém o poder e o que é sujeito a esse poder, quem deve dar ordens, quem deve obedecê-las, quais os limites para cada, onde o desacato se inicia, além do abuso de poder por parte de funcionários públicos nas abordagens policiais, e o direito a liberdade de expressão por parte do cidadão abordado.

INTRODUÇÃO:

 Diariamente, são registradas inúmeras ocorrências policiais por acontecimentos delituosos, diante disso acontecem as abordagens policiais de revista e outros procedimentos padrões, no qual há um diálogo direto entre a autoridade policial e o cidadão que está sendo abordado.

Sem ter conhecimento de seus deveres e direitos, ambas as partes (polícia e cidadão) entram em conflito por agirem, no caso, ou com força desproporcional ou tão somente por impulso diante da situação. Acontece que para a configuração do crime de desacato, se faz necessário que o insulto, a ofensa, se dê no exercício da função ou em razão dela. Por isso, muitas vezes o crime de desacato é confundido com o crime de desobediência ou até mesmo a injúria. 

Uma das coisas que mais tem acontecido ultimamente são postagens de vídeos em redes sociais em que se presenciam abordagens policiais frente aos cidadãos, por muitas vezes, até mesmo pessoas de um alto grau em se tratando de cargo ou ocupação, como juiz ou procurador, etc. O que é bem comum no Brasil é a pessoa ser tratada de acordo com a função que desempenha, seu status, dentre outros fatores.

O trabalho a ser apresentado visa não somente colocar em faces opostas o cidadão e a polícia como se inimigos fossem, mas busca esclarecer várias situações em que haja conflitos de direitos, bem como, relativizar a interação entre os polos discutidos. Enfim, entender como o crime de desacato se configura, sua importância (ou não) para a administração da justiça, analisar propostas que visam a exclusão deste crime do ordenamento jurídico, dentre diversas outras situações. 

  1.  O crime de desacato no Brasil: conceitos e desdobramentos. 

No direito antigo originou-se a punição ao crime de desacato. “No direito romano se reprimiam as injúrias perpetradas contra a magistratura no exercício de suas funções como injúrias agravadas” (PRADO, 2006, 480).

Já na Idade Média começou-se a discutir a questão de a tutela penal recair sobre magistrado que não estivesse no exercício da função, bem como, se as ofensas tem ou não relação com o exercício funcional.

Este instituto teve evolução no Código francês de 1820, onde foi posto como crime autônomo, acompanhado pelo direito italiano.

            No Brasil, o crime era de lesa-majestade, assim definido pelas Ordenações Filipinas que reprimiam as injúrias perpetradas contra os magistrados ou seus oficiais em razão da função (PRADO, 2006, 480). O nomen juris de desacato só foi inserido no Código de 1890, no Brasil.

            Posteriormente, em 1940, o tipo foi ampliado para que abarcasse condutas de ofensas praticadas contra funcionário público ainda que não estivesse exercendo sua função, mas em razão dela.

            Na letra do Código Penal, o crime de desacato está definido no art. 331. Desacatar funcionário público no exercício de função ou em razão dela: Pena- detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.

            O desacato é um crime que pode ser cometido por qualquer pessoa em face do Estado e também do funcionário público. O bem jurídico protegido é o normal funcionamento da administração pública e prestigiando também o funcionário público perante a comunidade. Sua consumação se dá no momento em que o agente pratica o ultraje (PRADO, Luiz Regis, 2006, p. 486).

            O núcleo do tipo é desacatar que significa humilhar, querer ofender. Trata-se de crime de ação livre podendo ser cometido com gestos, até mesmo agressões com o fim de humilhar o funcionário público, mas geralmente é cometido via oral.

            Há uma divergência no que se refere ao fato de a ofensa estar relacionada com a função desempenhada pelo funcionário público. Bitencourt diz que a ofensa tem que está diretamente ligada com o cargo, caso não esteja, seria o crime de injúria qualificada contra funcionário público. 

Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo lhe a dignidade ou o decoro:

Pena- detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Art. 141. As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido:

II- contra funcionário público, em razão de suas funções. 

Portanto, nota-se que ambos os crimes são bastante parecidos, e por isso se confundem facilmente.

            Outro posicionamento (maioria da doutrina) diz que mesmo se a ofensa for cometida, por exemplo, pra ofender o funcionário pessoalmente, estando fora da função, seria também o crime de desacato, já que o funcionário público é representante do Estado, como se fosse o Estado representado por esta pessoa.

            Quando o funcionário público não está desempenhando nenhum ato de ofício, não pode sofrer desacato, mas sim injúria. Caso seja em razão da função, aí sim podemos falar no crime de desacato.

            O tipo penal não admite a forma culposa, apenas o dolo, sendo que há uma corrente que diz que não há fim especial de agir, já outra diz que há o fim de menosprezar, humilhar o funcionário público. Esta última é a posição majoritária e do STF.

            O crime de desacato é formal, pois se consuma no momento em que o sujeito pratica as condutas.

            Há divergência quanto ao crime no que trata de funcionário público cometer ou não o crime de desacato. Uma primeira corrente defende que o funcionário público não comete o crime de desacato devido ao princípio da reserva legal, pois está alocado onde trata de crime cometido por particular contra a administração pública, podendo ser então injúria qualificada. A segunda corrente versa que pode haver o desacato de funcionário por outro, mas apenas no caso de o subordinado desacatar seu superior, no contrário não ocorre. Alguns criticam esta segunda corrente por ferir o princípio da isonomia. A terceira corrente é a mais utilizada pela jurisprudência e pelos tribunais superiores, onde o funcionário público serviria de exemplo para toda sociedade, logo, responderia pelo crime de desacato.        

            O sujeito passivo do crime é a administração pública e em segundo plano o funcionário desacatado. Assim como, o bem jurídico protegido é a administração pública[4].

            A ação penal do crime é pública incondicionada. Admitindo a suspensão condicional do processo e tem nos Juizados Especiais Criminais a competência para processo e julgamento.

            Luiz Regis Prado (2006, p.485-486) nos trás exemplos de como o desacato se consuma.  Por exemplo, chamar o policial, no exercício da função de “vagabundo” e “bagaceira”, pois humilha e desprestigia o funcionário público, assim como, dizer: “essa polícia não serve pra nada, uns merdas”.

            Feitas as necessárias considerações do tipo penal em análise, a seguir, objetiva-se tratar de forma mais específica da questão que envolve os diálogos do cidadão em face da polícia. 

  1.  Polícia e cidadão como sujeitos de direito.  

            O Brasil é um Estado democrático de direito, deste modo, todos os cidadãos possuem direitos fundamentais, como direito a liberdade de expressão, direito de ir e vir, direito ao trabalho, dentre outros. Por isso, em determinadas situações ocorre o que se chama de colisão aparente de direitos fundamentais, quando dois ou mais direito fundamentais se chocam no que tange aos seus princípios, meios e fins.

            Nos últimos anos vem ocorrendo um aumento da cidadania no que refere a tomada de conhecimento dos direitos pela população, seja pela mídia ou até mesmo por ações que tem a finalidade da participação social.

            Em decorrência do avanço social, a polícia não tem conseguido acompanhar tais mudanças e continua a aplicar velhos procedimentos em abordagens ou mesmo no modo de lidar com a população. Ou seja, por muitas vezes a polícia é vista não como uma instituição de proteção para a população, mas sim, um “inimigo” que não pode se prestar confiança ou auxílio. Exemplo claro, são as favelas brasileiras, onde geralmente quem faz o controle (os traficantes) é quem em tese protege a população dessas favelas contra a polícia, que geralmente utiliza de força em seus procedimentos contra a população menos favorecida.

            A polícia brasileira é uma instituição autoritária e que por muitas vezes abusa de sua força, isso aliado ao sistema judiciário que é extremamente moroso, as cadeias são desumanas e há uma distância considerável na relação entre polícia e o cidadão, o que contribui bastante para que o sistema inteiro seja falho e jogue a sociedade contra a polícia. Este é o modelo atual de polícia no Brasil.

            O que se busca para a polícia é justamente essa aproximação com a sociedade, como se fosse uma aliança em favor do cidadão. Isso seria um importante ponto no avanço do modelo de polícia. Uma mudança cultural que envolva a formação policial desde o início, por meio de cursos, do diálogo direto com a população no que se refere à assistência por meio de conselhos, enfim, interação direta.

            A força só deveria ser usada em segundo plano, primeiro deveria haver um diálogo, uma tentativa de conciliação e mediação com o fim de garantir os direitos básicos e fundamentais do cidadão, aliás, o policial também é cidadão de direitos. Aquela velha história, “primeiro atira, depois pergunta”, é o que ocorre no modelo atual de polícia brasileira, não abrindo espaço para o diálogo e a resolução mais rápida e efetiva dos conflitos. Ao certo, a polícia brasileira é mais repressiva que preventiva, o que necessariamente nos faz presumir que o uso da força é prioritário em relação ao uso da logística e da parte de inteligência.

            A polícia, diariamente, enfrenta diversas situações nas quais não está preparada para resolver o conflito. Como mostra o texto “a transição de uma polícia de controle” (BENGOCHEA; MARTIN; GOMES, 2004, p. 120). 

“não é possível se fazer hoje um procedimento padrão para o policial no seu trabalho cotidiano. Ele precisa ter a capacidade de ampliar seu espaço de decisão nas escolhas das ações e intervenções para cada fato que enfrenta. Então, neste momento, a postura mediadora passa a ter uma função importantíssima na ação da polícia”. 

            O uso da força pela polícia já é algo incorporado pela instituição. Quando o cidadão questiona a ação policial, por muitas vezes é “desrespeitoso”, o que faz com que o conflito só aumente. 

Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, só trabalha com um instrumento que é a reação pela força; qualquer conflito e dificuldade são resolvidos pela força. Há muita dificuldade de trabalhar com situações cuja responsabilidade e culpabilidade não estão bem definidas. Geralmente, em todo conflito que a polícia intervém, a tendência é criminalizar a conduta, nem que seja por desacato ou por desrespeito, efetivando a solução pelo uso da força e pela prisão (BENGOCHEA; MARTIN; GOMES, 2004, p. 121).           

            A Constituição Federal define vários direitos fundamentais, dentre eles, alguns são inerentes ao andamento da pesquisa. O direito de liberdade de expressão vem no artigo 5° da Constituição Federal, IV- é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Este é o direito que qualquer pessoa tem de expor suas ideias, ou seja, manifestar seu pensamento, suas opiniões. É o que tem ocorrido em diversas manifestações pelo país, seja por exemplo, na “marcha da maconha”, ou em protestos que envolvam aumentos de passagens de ônibus, etc. Diante disso, há atuação policial para tentar controlar o protesto por muitas vezes se dá de forma bastante forte, devido a falta de preparação e formação dos policiais. A administração pública protege o funcionário público, a polícia neste caso, do crime de desacato, porém, o que se notou, foram a efetuação de várias prisões de maneira autoritária, de modo que por vezes os policiais nem mesmo queriam mostrar suas identificações.

            Por esta razão, se tem buscado o fim do crime de desacato no ordenamento brasileiro. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA) solicitando que o Brasil deixe de aplicar a norma que tipifica desacato como crime. O pedido foi encaminhado este mês à comissão em caráter cautelar, ou seja, emergencial.[5] Segundo a Defensoria, o crime de desacato viola o direito a liberdade de expressão e também o direito a informação. E ainda, é um instrumento que impede as manifestações populares, um meio de legitimar prisões de manifestantes. A respeito do tema, Bruno Shimizu: 

“O crime de desacato dispensa proteção diferenciada a um agente do Estado, em relação a um cidadão comum. Se eu xingar um cidadão comum, o máximo a que eu posso responder é pelo crime de injúria. Mas se eu xingar uma pessoa que exerce uma função pública, esse crime se torna mais grave. Não faz sentido que o Estado possa criminalizar, de forma diferente, pela categoria da pessoa”.                       

            O artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, estabeleceu em seu item 11, que “as leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato‘, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”[6] 

  1.  Controle social da polícia em face do cidadão.             

            Com a atuação ostensiva da força policial, o cidadão por muitas vezes é abordado com brutalidade nas ações. Por exemplo, o uso de algemas só deveria acontecer se houvesse resistência. Isso, geralmente as pessoas não sabem, e os que sabem, quando questionam ao policial, este já entende que esteja ocorrendo aí um desacato.

            Durante as manifestações realizadas contra o governo nos anos de 2013 e 2014, época de Copa das Confederações e Copa do Mundo, várias foram as prisões efetuadas por desacato de manifestantes contra policiais. Importante lembrar que em uma manifestação, onde os ânimos de ambas as partes estão acirrados, o crime de desacato é bem mais propício a ocorrer, e por isso mesmo, algumas pessoas e entidades pedem o fim deste crime, como já mostrado acima.

            Dentro da própria polícia, assim como em outras instituições, há o respeito adquirido dentro da função. O bom policial é visto pelo colega como aquele que vai para o campo de batalha sem medo do bandido, que cumpre sua missão. Já é algo cultural, o que faz refletir sobre o modelo de instituição que desempenha o controle da sociedade brasileira.

               O modelo atual, que se trata de um modelo tradicional de polícia, deveria dar lugar a um novo modelo de polícia, um modelo onde a polícia e o cidadão interajam pacificamente, uma polícia mais próxima das comunidades. Este é o modelo proposto pela polícia cidadã.

[...]

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