O CORREDOR ESCURO

Por Luiz Francisco Ballalai Poli | 01/07/2010 | Contos

"Quando te sentires triste, lembre que no mundo há alguém que vive só porque você existe".

O transeunte passava pela rua desértica da meia-noite absorto em pensamentos maus, transtornado pelas desilusões do seu viver, tomado por um sentimento indescritível de desespero, desventura e medo. A vida apresentava-se a ele de modo extremamente seca, insossa, depressiva ? depressivamente cruel. As pessoas que divisava com seus olhos langues e sombrios nada mais eram do que bonecos inanimados que, ao toque de um despertar, estariam prontos a lhe devorar encarniçadamente, como se, por magia, houvessem se tornado animais perigosos em sedenta busca pelo seu sangue.
Trilhava seu caminho a passos indefinidos. Não sabia ao certo se deveria correr, encurtando a distância a ser percorrida até sua mansarda citadina ? ao pavor da misantropia - ou mesmo se deveria acalmar seus pés, alargando o tempo ? em razão do desconforto medonho que o gerava o aspecto miserável de sua casa e o sentimento de insipidez da rotina inexorável. Viver, para ele, transformava-se, a cada dia, num perigoso flerte com a morte.

Num dado momento, ao cruzar com um estreito e escuro corredor perpendicular à rua amargurada, ouviu uma estranha voz, uma voz serena porém suplicante, uma voz que lhe admoestou:
- Venha, eu sou o oráculo.

Impelido por uma energia magnética que absorveu todos os seus receios, o transeunte irrompeu corredor adentro, sem nada enxergar, sem nada pensar, apenas se deixou sentir (ou, quiçá, ser sentido).
De súbito, uma mão agarrou a sua. Era muito pequena ? notava - porém com uma força descomunal. A voz então lhe disse:
- Não tenhas medo. Segura a minha mão e fecha os olhos. Sente como ela é pequena. Assim foi o mundo, pequeno. Ela crescerá assim como o mundo se expandiu também; nela crescerão pêlos, bem como árvores vicejaram na terra; virão, com o tempo, as rugas para sulcá-la, da mesma forma como os rios sulcaram as planícies outrora secas. E tudo isso para quê? Para dar aos homens o alimento e a água. Essa mão fenecerá, assim como morrerão as plantas e evaporarão as águas. Mas novas mãos virão, do mesmo modo como sempre se renovam as espécies e a chuva sempre enche os mananciais. E tudo isso só é possível pelas mãos de um Criador. Um Criador que concebe e cuida, até que sua criação possa manter-se e renovar-se. Não ponhas termo a tua vida!
- O quê?! Quem és tu? Como sabes o que se passa pela minha mente?

O transeunte estava assaz espavorido. O negror que trancava sua visão aguçava ainda mais o seu já transtornado estado de espírito. Não sabia por que mas, muito embora sentisse uma inquietante vontade de desaparecer incontinenti daquele corredor e seguir seu caminho rumo à desventura eterna, algo parecia grudá-lo àquele momento, como somente a magia é capaz. A mão que o segurava não seria capaz de detê-lo ? pensava - todavia, era ao transeunte impossível desvencilhar-se dela, estava ungida pela inabalável força mística das coisas surreais. Era algo como em sonhos, quando somos incapazes de correr por parecer que nossos pés levitam a poucos centímetros do chão, tornando-nos incapazes da fuga por terra, mas também inaptos a alçar vôo. A voz continuou:
- Caso o Criador abandonasse sua criação antes que ela, por si só, pudesse se renovar, as árvores e os rios estariam mortos e, por conseqüência, estariam mortos também os homens. Saibas que não basta semear, é mister o cuidado e o apoio. Poderia pedir para que tocasse outros membros meus; o braço, por exemplo, para sentires como ainda é fraco, lânguido, mas é ele o sustentáculo da mão, assim como minhas pernas e pés. Meu peito, para sentires o quanto é singelo e frágil, ocorre que é o arcabouço protetor do meu coração ainda mínimo, mas que já guarda mistérios, desejos e ambições que só florescerão com o calor de outro corpo que o guarde e o complete; caso contrário, o frio poderá congelá-lo para as três essências da vida: o amor, a alegria e a fé. Poderia mesmo deixar que tocasse minha cabeça, ainda em formação, pequena, mas que já traz correntes elétricas bastantes que a seu tempo servirão como condutores entre a sapiência e a ignorância, conforme o estímulo; um estímulo que virá de fora, tudo a seu tempo, tudo...tem...o...seu...tempo. Por ora, só lhe empresto minha mão. Você só precisa de uma mão. E alguém no mundo precisa de você.

A tempestade se formava no escuro céu daquela noite de desvarios. Num repentino relampear, a visão se fez nítida diante dos olhos atônitos do transeunte. Foram segundos de reluzência ímpar que lhe mostraram uma criança nua, muito pequena e branca, deitada num singelo berço, fixando um olhar sereno, piedoso e sábio nos olhos desesperados e céticos do transeunte, com uma das mãos atadas às dele. O homem soltou um grito alucinante e pôs-se em disparada em direção à rua, seguindo rumo ao seu destino insólito e lúgubre.
A chuva começou a cair voraz. Ele corria sem olhar para trás. Estava estafado, lívido, apavorado, até que chegou em casa.
Uma mulher chorava copiosamente no leito de um quarto. D?um pequeno quarto de uma morada simples que mal chegava para guardar duas almas. O homem foi até ela, ainda respingando as gotas da incompreensão do incompreensível, e perguntou o que estava havendo.

"Vou ter um filho", ela disse.