O CONCEITO DE LIBERDADE SEGUNDO A TEORIA EXISTENCIALISTA DE SARTRE

Por Andressa S. Silva | 20/02/2011 | Filosofia

"Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta;
não há ninguém que explique e ninguém que não entenda."
(Cecília Meirelles)

Entender o conceito de Liberdade em Sartre não é tarefa fácil. Para a realização de tal empresa, considerando a dificuldade de acesso Às obras todas, optou-se por ler obras intercaladas do início, meio e final de sua carreira. Constam nestas: A Náusea, A Idade da Razão, Pena Suspensa, Com a Morte na Alma, O Ser e o Nada, O Existencialismo é um Humanismo, As palavras, Contos do Castor, Entre Quatro Paredes, Os Dados estão Lançados e Esboço para uma Teoria das Emoções.
A liberdade pode ser caracterizada como a escolha que o homem faz de seu próprio ser e do mundo (Abbagnano, 2003, p. 619). Mas por se tratar de uma escolha, ao passo em que é feita, geralmente indica outras muitas escolhas quanto possíveis. A possibilidade dessas outras escolhas não é explicitada ou proposta, mas é vivenciada e expressa no absurdo da existência. Este absurdo consiste no fato de Sartre perceber que, apesar de toda a liberdade que se pode ter, de todas as decisões que se podem ser tomadas, não pode-se escolher não escolher, não optar, não tomar decisões. Somos responsáveis, os únicos responsáveis, por cada uma de nossas ações. Construímos nossa existência. Assim, para Sartre, a Liberdade "devora" a própria Liberdade, pois afirma que "ninguém entravou minha liberdade, foi a minha vida quem a bebeu" (Sartre, 1986, pág. 264).
Os existencialistas de maneira geral concordam em afirmar que a pergunta acerca da liberdade não é uma pergunta objetiva. Não se questiona se alguém é ou não livre. Sartre analisa a liberdade como condição da ação e afirma que só é possível haver liberdade ante uma decisão. Mora (1978, p. 168) afirma que "A liberdade é um fazer que realiza um ser".

1 LIBERDADE COMO SOLIDÃO
Para Sartre, o sentimento de liberdade não é característico dos grupos acolhedores, nem da alegria em compartilhar esse sentimento com amigos. Ao contrário, é um sentimento natural do estado de solidão. A liberdade, segundo Sartre, nos aproxima da solidão, assim como dos sentimentos negativos atrelados ao sentimento da solidão. Podemos perceber essa associação em sua obra "A idade da razão", onde Sartre cita que: "Estava só, no meio de um silêncio monstruoso, só e livre, sem auxílio nem desculpa, condenado a decidir-se sem apelo possível, condenado à liberdade para sempre." (Sartre, 1986, p. 214).
Neste trecho da obra pode-se perceber a associação entre a liberdade e a solidão, e suas implicações negativas do sentimento de condenação. Corroborando com esse trecho e essa sensação de condenação, encontra-se n?O Existencialismo é um Humanismo a frase que nos informa dessa mesma condenação, em que Sartre afirma que estamos condenados a ser livres. Assim, a liberdade não é uma escolha nossa, somos obrigados a agir em conformidade com nossa condição de seres livres. Dentre todas as escolhas que podemos fazer, não há como escolher não ser livre.

2 LIBERDADE COMO RESPONSABILIDADE
É possível perceber em algumas obras de Sartre a associação da liberdade com a responsabilidade. Para Sartre, se somos livres, então somos também os únicos responsáveis por todas as nossas atitudes, benéficas ou não. A responsabilidade de nossos atos não incide sobre instituições sociais como a religião, as leis ou ainda o determinismo. Ao contrário, somos os responsáveis pelos atos cometidos e devemos responder por eles.
Corroborando com essa opinião, no livro O Existencialismo é um Humanismo, tem-se a seguinte citação:

"Que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro (...) Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de por todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é o responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens."
(Sartre, 1987, p. 04).

Assim, Somos livres e responsáveis não só por nós mesmos, mas pelos outros também. Nossa liberdade interfere na vida de outras pessoas, nem sempre que tenham relação conosco.
No livro ?A idade da razão?, temos algumas passagens nesse aspecto de liberdade, a saber: "A liberdade consiste em olhar de frente as situações em que a pessoa se meteu voluntariamente e aceitar as responsabilidades." (Sartre, 1996, p. 91)
Também nessa obra encontramos outra alusão a essa associação:

"Ensinando-lhe o que era a liberdade (...): é um dever fazer o que se quer, pensar o que bem se entende, ser responsável apenas perante si próprio, analisar permanentemente o que pensa dos outros." (p. 120).

A responsabilidade pelos nossos atos é somente de nós próprios, como citado acima. Então, qualquer que seja a conseqüência de nossos atos, é somente a nós mesmos creditada: "O que quer que aconteça, é através de mim que há de acontecer." (Sartre, 1986, p. 214). Corrobora com essa opinião no trecho da obra Pena Suspensa: "O futuro de todos os homens: construíram-no com suas próprias mãos, lentamente, durante anos." (Sartre, 1960, p. 35).
Essa responsabilidade pelos próprios atos, tão comentada por Sartre em diversas obras, é ainda associada com o sentido da vida, a explicação para as dúvidas a respeito da convivência:

"São livres: ganharam a guerra no seu tempo e têm boa consciência. Dessa derrota, que não é deles, aceita, apesar de tudo, a responsabilidade. (...) Reencontra, de repente, o que perdera: o sentido da vida." (Sartre, 1968, p. 417).

A responsabilidade, apesar de elucidar o sentido da vida, não é acolhedora. Ao contrário, transmite a sensação de opressão: "Sentia-me oprimido pelo peso da responsabilidade." (Sartre, 1968, p. 39). Mas também demonstra que a responsabilidade está atrelada a nossas vidas, inclusive como sociedade, e não pode ser abandonada:

"Cem milhões de consciências livres, cada uma delas vendo paredes, pontas de cigarros, rostos familiares e construindo seu próprio destino por conta da própria responsabilidade." (Sartre, 1960, p. 234).

Dessa maneira, muitas consciências desejando a mesma coisa implica no acontecimento dessa coisa, como uma guerra, por exemplo: "Assim, todos nós a fazemos" (Sartre, 1960, p. 233), referindo-se à responsabilidade de qualquer guerra. Assim, O homem quer a liberdade, mas a quer de uma forma concreta. E, por causa do compromisso e da descoberta do outro, o homem é obrigado a querer, não só a sua liberdade, mas também a dos outros.

3 LIBERDADE COMO ANGÚSTIA
O existencialismo em si remete sempre à angústia da vida, ao absurdo da vida. A angústia de sentir-se só, órfão, sem nenhuma força que o indique um caminho a ser seguido, ou uma solução a ser tomada. Angústia de sentir-se o único responsável tanto por suas atitudes, seus acertos, bem como de seus erros também. Supõe-se que Sartre, em alguns momentos de suas obras, tenha associado o conceito de liberdade a esse sentimento de angústia.
Na sua obra "A Idade da Razão", Sartre comenta que "A tua vida está cheia de oportunidades perdidas" (Sartre, 1959, p. 7). Aqui pode-se verificar o quanto ele considera a vida um amontoado de oportunidades que, se não aproveitadas no momento certo, se findam perdidas, e assim estando, não mais podem se reestruturar. Desta forma, sugere-se a angústia de não saber ao certo quando tomar a decisão, que é unicamente da responsabilidade do ser vivente, e do arrependimento por errar e não haver percebido esses momentos oportunos para agir.
Ainda nesse sentido, mais adiante nesta mesma obra, temos a citação: "Não me ajuda a viver, a liberdade." (Sartre, 1959, p. 57), que corrobora com a angústia de que se trata neste trabalho. Mostra como, ao ver de Sartre, a liberdade em si não facilita a vida de ninguém, não nos ensina a tomar as decisões corretas, nem a seguir a vida sem problemas.
Segundo Sartre (1959, p 264), "Ninguém entravou a minha liberdade, foi a minha vida que a bebeu." Neste sentido, o autor nos informa que a liberdade que temos é de nossa responsabilidade, e ninguém pode tomá-la de nós, ou restringi-la, sem nossa autorização. Cada um, no decorrer de sua própria vida, consome sua liberdade da forma como julgar mais adequada. Ainda percebe-se que, em caso de perda de parte da liberdade, ou dela toda, o único responsável é o indivíduo que tomou atitudes que levaram a essa perda.
Caso essa restrição da liberdade não ocorra, mesmo que mantenha-se a liberdade absoluta do indivíduo, existe a dúvida sobre como agir com toda essa liberdade. Na obra "Com a Morte na Alma" (1968, p. 45), Sartre nos indica que ante toda essa liberdade de que dispomos, pode ocorrer de não sabermos exatamente o que fazer com ela, devido À angústia de não termos nada nem ninguém que nos oriente nesse sentido: "Não sabiam o que fazer da sua liberdade."
Assim, a liberdade, nos escritos de Sartre, está associada à angústia de viver e sentir-se órfão, sem auxílio na lida com a própria liberdade. Este tema também é mencionado na obra O Existencialismo é um Humanismo, em que Sartre fala da angústia e do desespero. Este livro será desenvolvido no terceiro capítulo deste trabalho.

4 LIBERDADE POR MEIO DO CONHECIMENTO
Foram poucas as passagens encontradas em que Sartre associou a liberdade ao conhecimento. Apenas na obra "A Idade da Razão" pode-se encontrar tais passagens, sendo apenas duas.
Na primeira delas, Sartre comenta o risco em se buscar analisar intensamente a liberdade, e acrescenta o custo dessa tentativa de análise, a perca da própria liberdade: "Quanto à liberdade, não é recomendável analisá-la demasiado, por que se deixava então de ser livre" (Sartre, 1959, p. 190). Ao que parece, essa passagem apresenta-se incoerente em relação ao trabalho até aqui elaborado, pois, se a liberdade pode ser comparada à angústia, solidão, orfandade, então não pode-se perceber qual o motivo em não se recomendar a análise aprofundada da liberdade, incorrendo no risco de se perdê-la. Para Sartre, ficar tempo demasiado buscando compreender o significado da liberdade incorre na possibilidade de perdê-la, pois assim deixa-se de tomar decisões, de realizar escolhas, buscando apenas a compreensão de um termo tão complexo.
Em outra passagem, Sartre fala da necessidade de conhecer-se a si mesmo, a saber: "Se conhecer não é um fim, é um meio. É para te libertar de ti mesmo." (Sartre, 1959, p. 9). Nesta passagem, corroborando com a anterior, atenta-nos o fato de que o autoconhecimento nos traz a liberdade de nós mesmos, onde, se conhecermos a nós mesmos, não somos obrigados a ser prisioneiros de nossos próprios atos, pensamentos, de nós mesmos.

5 LIBERDADE COMO ESCOLHA
O conceito de Liberdade para Sartre pode, também, ser associada à escolha. Na obra O Existencialismo é um Humanismo essa associação é também mencionada.
Como o homem não pode livrar-se do fardo da liberdade de escolha, e conhece todas as suas responsabilidades decorrentes disto, a única coisa que o homem sabe é que deve se construir como ser. "Querer ser o que sou, eis a liberdade que me resta. A minha única liberdade." (Sartre, 1959, p. 190).
Na obra A Idade da Razão, Sartre comenta sobre as escolhas que o homem faz em sua vida:

"Será isso a liberdade? Ele agiu, agora já não pode voltar atrás. Deve parecer-lhe estranho sentir atrás de si um ato desconhecido, que já quase não compreende e que lhe vai transformar a vida." (Sartre, 1959, p. 263).

Corrobora ainda, na mesma obra, com a informação de que o homem escolhe o próprio futuro, bem como o futuro de outros homens, por isso, a necessidade de cuidar das próprias escolhas. "O futuro de todos os homens: construiram-no com suas próprias mãos, lentamente, durante anos." (Sartre, 1960, p. 20)

O problema da busca da convicção, para o existencialismo é que nada nem ninguém fornece ao homem uma convicção exterior. O homem é um ser solitário, responsável pelas próprias atitudes, nada pode dar uma convicção em que acreditar, seguir, buscar.
Por essa falta de convicção, dessa incerteza, esse desespero pelas responsabilidades todas, nesta obra Sartre associa a liberdade absoluta à morte, apenas à morte: "A morte, esta liberdade." (Sartre, 1968, p. 147).
A vida, segundo Sartre, de maneira geral, não tem mensagens otimistas, de acalanto. Isso se pode perceber na citação que se segue:

"É isso a liberdade? Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver; todas as que experimentei cederam, e já não posso imaginar outras(...). Estou sozinho nesta rua branca, bordada por jardins. Só e livre. Mas esta liberdade parece-se um pouco com a morte." (Sartre, 1986, p. 97)

Onde, segundo o autor, a liberdade acrescida da solidão parece-se com a morte. Pode-se aqui lembrar que, para Sartre, só nos percebemos vivos pelo olhar do outro, e que, por isso, estando só, não seria possível este tipo de reconhecimento, o da própria vida. Então, a liberdade, somada à solidão, não deixaria de parecer-se com a morte.
A excessão dessa mensagem pessimista ocorre na obra O Existencialismo é um Humanismo, onde Sartre deixa uma opinião otimista, que foi trabalhada em outro texto (A LIBERDADE NOS TEXTOS "A NAUSEA, O SER E O NADA E O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO").

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MORA, JF. Dicionário de Filosofia. Trad. Antônio José Massano e Manuel Palmerin. Publicações Dom Quixote, Lisboa: 1978.
SARTRE, JP. O existencialismo é um humanismo. 3.ed. Trad: Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).
_____ . A Idade da Razão: Caminhos da Liberdade. São Paulo: DIFEL, 1959.
_____ . Pena Suspensa (Sursis): Caminhos da Liberdade. São Paulo: DIFEL, 1960.
_____ . Com a Morte na Alma: Caminhos da Liberdade. São Paulo: DIFEL, 1968.
_____ . A Náusea. 6. ed. Tradução: Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
SILVA, AS. O conceito de Liberdade segundo a teoria existencialista de Sartre. Monografia. Brasília: Universidade Católica de Brasília/UCBV, 2010. 42 p.