O coletivo escolar e responsabilidade da educação: da escola, da família ou ambos?
Por Geovane dos Santos Damaceno | 11/02/2012 | EducaçãoRESUMO
Geovane dos Santos Damaceno[1]
O presente artigo de revisão de literatura teve como objetivo explorar a importância do coletivo escolar, entendendo-se aí como a equipe de gestores, professores, pais e alunos, mas principalmente a importância da participação familiar na escola mediante o planejamento escolar elaborado pela instituição.
Palavras-chaves: Escola, Família, Coletivo.
INTRODUÇÃO
Compreender o processo de construção da pessoa com ser humano implica em necessariamente conhecê-lo em todas as suas dimensões. Entendendo que este ser biopsicossocial é tecido na trama da evolução humana caminhamos para abrir um leque de possibilidades e caminhos a serem trilhados por iniciativa e querer deste ser que atua ativamente dentro deste processo. Paulo Freire (1996) em suas caminhadas pela educação e pelo que é humano ressalta a importância de estimular a “leitura do mundo”, papel fundamental da educação e do educador: “O pensar crítico implica o diálogo que é, também, o único capaz de gerá-lo. Sem ele, não há comunicação e, sem esta, não há educação. A educação é diálogo”. (FREIRE 1996, p.20).
Para Paulo Freire (1996) o sujeito não se forma e reforma alienado de seu ambiente social, da mesma forma que ele é influenciado por seu tempo histórico, social e cultural, ele (indivíduo) marca a sociedade em que vive na medida em que a questiona e a ressignifica segundo suas novas aprendizagens. Neste contexto, o educador adquire a qualidade de ajudante deste aprendiz em sua descoberta tornando o caminho da aprendizagem a indução de um novo saber, como quem se assegurando do ponto de partida caminha lado-a-lado com quem desbrava a caminhada, entendendo que este caminhar não se dá por si só, mas que necessita ser mediado pela escola e pela família como parceiras nesta construção.
Desta forma, a partir do pensamento de Paulo Freire, examinaremos neste artigo as seguintes questões, objetivos da pesquisa: A quem caberia a responsabilidade sobre a educação dos indivíduos?; Comandar, gerir implica em responsabilidade, se esta não é acompanhada de algum privilégio qual seria sua vantagem?; Na escola atual, quais estratégias envolvem e preparam os alunos para as dificuldades do cotidiano?; Quais são as implicações da falta de sustentação e direção na prática pedagógica?; Se os professores não conseguem trabalhar coletivamente com seus pares, seria possível transmitir e cultivar em seus alunos essa forma de trabalho?; Qual importância é atribuída pelos professores, na escola, ao trabalho coletivo?; Como poderiam transmitir para os alunos as habilidades e atitudes necessárias se não as vivenciam?; Em que momento o professor reflete sobre quais modelos está seguindo em sua prática?; Como o professor avalia e dimensiona sua auto-organização, em relação ao grupo de professores com quem trabalha?; Será que um dos fatores que levaria a artificialidade na transposição didática não seria a desconsideração do grupo como condição primordial de vivência humana?.
Para que todas as questões sejam respondidas, adotou-se a metodologia de revisão de literatura calcada em autores consagrados.
1 ESCOLA X FAMÍLIA: RESPONSABILIDADE TRANSFERIDA?
Com a chegada do século XX, muitas mudanças foram observadas. O interesse e o impacto causados pelo aumento da industrialização a partir da década de 50 e especialmente nos períodos seguintes, entre outras coisas, trouxeram, como consequência, profundas mudanças no âmbito familiar provocando a ruptura dos padrões tradicionais, tal como estávamos acostumados a ver. (ARIÈS, 1981).
Citando Ariès e Duby[2], Sacristán (1999) afirmou:
[...] que se, na atualidade, os pais são mais permissivos, "deve-se em parte a que já não têm muito que impor a seus filhos, já que a aprendizagem da vida foi delegada à escola, aos pareceres de diferentes redes de comunicação”. (SACRISTÁN, 1999, p. 217).
Essa conjuntura merece ser analisada com pelo menos dois enfoques. O primeiro é alentador na medida em que a ampliação das fontes de informação - televisão, rádio, livros, jornais, revistas, Internet, etc. - pode, dependendo da maneira como for feita, ampliar as formas de ver e pensar o mundo. Consequentemente haveria possibilidade de enriquecimento da análise e um melhor posicionamento dos indivíduos sobre qualquer questão. Essa representaria - e tem representado em muitos casos - uma evolução quando comparada ao domínio incondicional da família. O segundo enfoque, objetivo da presente pesquisa, diz respeito à responsabilidade sobre a educação dos indivíduos. A quem caberia de fato?
A urbanização violenta e acelerada, a redução do espaço de brincar das crianças, fruto da especulação imobiliária nas médias e grandes cidades, o êxodo rural, o crescimento do número de mulheres no mercado de trabalho (o trabalho feminino fora do lar), a grande e crescente influência dos meios de comunicação de massa, a grande mobilidade geográfica e social, foram alguns dos fatores responsáveis por muitas das mudanças pelas quais passou a família. (ARIÈS, 1981; TOSCANO, 1986).
Nesse contexto, temos ainda a progressiva diminuição da autoridade paterna, na medida em que cresce a figura do Estado como força disciplinadora das relações sociais básicas e nasce a contestação da autoridade tradicional em nome dos princípios da sociedade democrática. Os casais passam a controlar o nascimento de filhos, em detrimento do que ensinavam as doutrinas religiosas vigentes, apelando para métodos que lhes permitiam decidir quando e quantos filhos desejam e podem ter. (TOSCANO, 1986).
A mulher começa a se emancipar devagar, tendo reconhecida sua participação e atuação no campo econômico e político, na medida em que se torna mais evidente a imposição do trabalho extra doméstico. A mudança acaba por atingir tanto o homem quanto a mulher, assim como os filhos, transformando o "lar", a casa, em lugar de encontros ocasionais, quando não em simples dormitório. (TOSCANO, 1986).
Podemos citar ainda como decorrência da chegada do século XX a diminuição progressiva da influência religiosa e a quebra da unanimidade de crença dentro da própria família (hoje é comum duas ou mais religiões coexistirem numa mesma família). A família, aos poucos, vai transferindo progressivamente a responsabilidade de suas atribuições para outras instituições, como a escola.
Especialmente no caso da família brasileira, seria fantasia pensá-la com os moldes do passado, pois ela se transformou radicalmente. Sobre isso é importante ressaltar o que disse Toscano (1986, p.16)
[...] é preciso lembrar que, além dos fatores estruturais a que acabamos de nos referir e que afetam de um modo geral, todas as sociedades modernas de tipo capitalista, ainda temos que levar em consideração inúmeros outros aspectos ligados à nossa conjuntura de país subdesenvolvido (ou em via de desenvolvimento) em fase de crise econômico-social. Neste caso, todos aqueles fatores a que acabamos de nos referir adquirem uma gravidade infinitamente maior, porque acrescidos de outros, típicos de sociedades que só agora iniciam seu processo de modernização. Temos que acrescentar as dificuldades decorrentes da inflação, da alta taxa de crescimento demográfico, do analfabetismo, do desemprego (ostensivo ou disfarçado), do trabalho infanto-juvenil, da fome crônica, das doenças sociais ou de massa, etc.
Sob estas modificações atravessamos todo o século XX e entramos no século XXI. A época é outra e nossa sociedade continua em constante transformação.
Todavia, ainda não conseguimos nos livrar dos problemas que, por sua vez, nos fazem entender melhor como as instituições ligadas à família tem que ser necessariamente atingidas e porque hoje se fala tanto em "crise na família moderna".
Vimos anteriormente como as famílias mudaram sua forma de se estruturar. Entretanto, percebemos que as instituições educacionais reprovam e desprezam essas diferentes formas de família vigentes nos dias atuais. Refletem ainda o pensamento velado de nossa sociedade que, apesar de todos os "avanços", considera esses "desajustes", ou "anormalidades" perigosas ao bom desenvolvimento psíquico e moral das crianças. Furter (1970, p.81) afirma que "temos que aceitar nossa historicidade, dando assim a impressão de sermos modernos, mas, de fato, se continua buscando os velhos valores tradicionais".
Sobre isso Oliveira (2002, p.175) nos diz que "a aproximação da instituição educativa com a família incita-nos a repensar a especificidade de ambas no desenvolvimento infantil". Ele complementa essa afirmação dizendo que:
São muitos ainda os discursos sobre o tema que tratam a família de modo contraditório, considerando-a ora como um refúgio da criança, ora como uma ameaça ao seu pleno desenvolvimento. Em geral, tais discursos pouco levam em conta os fatores econômicos e sociais que presidem a organização familiar, a divisão de tarefas no lar, o tempo que cada membro da família pode dedicar á criança.
Essa atitude revela uma sociedade que ainda reluta em aceitar as mudanças ocorridas na instituição família. Não se pode afirmar que este ou aquele modelo de família é pior, ou melhor. Pode-se tentar entender e aprender a conviver com ele.
Hoje a mãe passa horas fora de casa, às vezes tanto quanto o pai. O problema da mulher, em especial, passou a ser conciliar trabalho assalariado com tarefas domésticas, principalmente o cuidado com os filhos.
Pouco é o tempo que os pais podem dedicar a eles. Em comparação às famílias do passado, esta é uma enorme diferença que traz consequências para as relações familiares e para o desenvolvimento das crianças. Com isso, as famílias são obrigadas a constituir diferentes ambientes para seus membros, os quais também estão em permanente mudança.
Como não podia deixar de ser, a educação sofre as consequências destes fatos. Neste sentido, Carneiro (2005, p.12) afirma que "os pais estão terceirizando a educação de seus filhos. Eles estão entregando as crianças, e estão deixando de exercer o papel pedagógico, o papel de educadores que lhes cabe".
É interessante observar que isto se dá tanto nas camadas de alto poder aquisitivo, quanto nas mais carentes. As famílias de classe média e média-alta, que são as que podem, pagam o que for preciso para especialistas e passam toda a responsabilidade de seus filhos para estes. As famílias mais pobres também passam muitas horas fora de casa e entregam seus filhos para creches comunitárias, escolas públicas, ou pessoas conhecidas, parentes ou não. Esse é um problema comum a todas as classes em geral.
Em seu estudo sobre creches e pré-escolas, Oliveira (1999, p.17-23) discorreu sobre o assunto dizendo que,
[...], além disso, outro problema que contribuiu para as mudanças às quais me refiro, foi o que ocorreu, principalmente, entre a população que passou a morar nos grandes centros urbanos. Afastando-se de sua família e da rede de vizinhança característica da zona rural e das pequenas localidades, a mãe não tinha mais quem lhe ajudasse a cuidar de seus filhos. Daí, a necessidade de contar com creches e pré-escolas para deixar as crianças.
Para as famílias de classe média e média-alta, a educação formal, que é administrada pela escola, passou a ser mais um bem de consumo. Por conta do tempo que ficam ausentes, fora de casa, os pais esperam que a escola desempenhe o papel que lhes cabe, delegando a ela as funções que seriam deles. Já que pagam por isso acham que a escola tem que se responsabilizar por esse trabalho. Os pais entregam as crianças e querem que a escola fale, para eles, sobre seus filhos. Carneiro (2005, p.12) diz que: "isso quer dizer que os filhos não estão sendo vistos pelos pais, que os pais não observam seus filhos, não sabem a respeito deles".
Costa (2003, p. 2) ressalta que: “Se você não tem capacidade de integrar aquele filho como parte de sua vida, então não tenha filho. Ter filho hoje não significa só alegria. Significa assinar uma promissória que você só resgata quando morre”.
Parece que, apesar de todas as transformações, a família do aluno, independente de sua classe social, não pode se eximir de seu papel e de sua responsabilidade e a escola deve ajudá-la nisso. Sacristán (1999) afirmou que a discussão sobre o papel da família na formação dos sujeitos é essencial para se compreender as novas configurações de poder na educação. Modelos de interação entre as famílias e o sistema escolar estão sendo feitos, e incluem a revisão da maneira como a escola tem funcionado e dos pressupostos que respaldam a intervenção nela.
Consideramos que a revisão da gestão e dos pressupostos, proposta por Sacristán, faz parte da revisão da cultura organizacional: valores, crenças, premissas, dos estabelecimentos de ensino. Admitir a não participação, ou isenção, da família sobre os rumos da formação do aluno, ou afastá-la, quando manifesta interesse em compartilhar é uma das atitudes que poderiam ser mudadas.
2 O TRABALHO COLETIVO E A INTERAÇÃO COM A FAMÍLIA
É bastante difícil, se não impossível, tratar de educação sem tocar, de alguma forma, em questões relacionadas à estrutura familiar. Independente da visão que se tenha da família: controvertida, idolatrada, confusa, negada, ela é determinante, apesar de não ser exclusiva, na construção da estrutura emocional, psíquica e intelectual dos indivíduos. Por outro lado, a organização e o funcionamento da família são influenciados pela conjuntura sócio-político-econômica.
Sem menosprezar e sem privilegiar as influências da família sobre as condições do aluno, Sacristán (1999) considerou que a educação escolar não pode suprir os déficits familiares. Em função disso, defendeu a importância da articulação entre a família e a escola em favor do aluno uma vez que: "A descontinuidade entre família e escola é fonte de conflitos para o filho-estudante, ao obrigá-lo a passar por constantes processos de transição entre meios ecológicos com normas diferenciadas". (SACRISTÁN, 1999, p. 219).
Algumas escolas e professores acreditam que possam dividir suas responsabilidades com os pais. Há também muitos pais que se predispõem a fazê-lo e creem que a ajuda mútua seja importante. Esses pais somam aos afazeres domésticos e aos empregos a tarefa de participar da construção de uma escola que atenda às reais necessidades de seus filhos.
Nesses casos, de acordo com Cunha (2002, p. 17), "os mestres, por sua vez, abrem as portas da escola, trocam informações com os responsáveis, aproximando a comunidade escolar do cotidiano de cada estudante". Apesar do resultado dessa parceria ainda não ser objeto de estudo oficial, sabe-se que a união vem colaborando para a construção de uma nova escola, onde a família e os professores são coautores das decisões administrativas e pedagógicas, o que acaba favorecendo e facilitando a educação dos estudantes.
Trabalhar em equipe[3], de maneira cooperativa é o que permite a um grupo de pessoas integrar os conhecimentos e as habilidades de cada um e concomitantemente, superar suas próprias deficiências, para atingir um objetivo. Transportar uma pedra gigantesca, desenvolver um novo aparelho de barbear ou reintegrar à sociedade menores infratores são desafios grandiosos e diferentes. Mas é provável que enfrentá-los individualmente seja menos agradável e eficaz do que partilhar a busca da solução com outras pessoas. Entretanto, trabalhar em equipe não é fácil, para algumas pessoas, é literalmente, impossível. Isto porque compartilhar uma tarefa implica em confrontar as representações individuais sobre o que, como, quando, onde fazer e, em geral, esse confronto provoca conflitos.
Antes de poder usufruir o que o "outro" pode contribuir para o grupo - e assim instituir uma troca construtiva — é necessário aceitá-lo e respeitá-lo, em suas qualidades e dificuldades. Apresenta-se aí um dos problemas: aceitar e respeitar o outro põe em cheque, e por vezes abala as convicções dos indivíduos que compõem o grupo e os limites de suas relações. A tensão resultante, dependendo da forma como for tratada, pode fragilizar o grupo e até desagregá-lo.
Quem já teve que trabalhar em grupo sabe o quanto esta pode ser, se não a pior, uma das piores experiências. Felizmente, o contrário também é possível. Quando uma equipe funciona, se entende a satisfação resultante de compartilhar com outras pessoas o enfrentamento de um desafio, superando-o ou não, é muito gratificante. Já não se está tão sozinho, para planejar, implementar e, posteriormente, comemorar ou, na pior das hipóteses, para assumir a derrota.
Makarenko (1985), em sua obra sobre a experiência pedagógica desenvolvida na Colônia Gorki, ressaltou a importância do trabalho coletivo. Mais do que uma estratégia, ele era um princípio e assim o eixo organizador das atividades educativas. No capítulo "Pedagogia de Comandante",[4] relatou como foi criado o sistema de destacamentos e comandantes, chamando atenção para o desprezo e a ironia, que provocou nos burocratas do Estado. O sistema era determinante na forma de trabalhar o "coletivo" na colônia. O ponto de partida era a ideia de que não tinham com quem contar a não ser eles mesmos, uma vez que a colônia ficava distante de qualquer centro urbano. Esse isolamento era acompanhado de um forte senso lúdico, que lhes permitia, em meio às adversidades, buscar o prazer. Algumas características do sistema de destacamentos merecem destaque, entre elas: a) o comandante era tratado como os comandados: sem privilégios; b) havia um estímulo para se desempenhar várias funções; e c) o tamanho do grupo variava segundo a tarefa ou o desafio a ser executado.
As duas últimas características não costumam gerar polêmica, a primeira nem tanto. A ausência de privilégios para o comandante, afinada com os valores do sistema sócio-político-econômico implantado com a Revolução Bolchevique[5], pode ser apontada como uma das causas da falência do próprio sistema. A lógica em questão seria: comandar, gerir implica em responsabilidade, se esta não é acompanhada de algum privilégio qual seria sua vantagem?
É possível pensar que, enquanto estratégia, o sistema de destacamentos conseguia envolver os alunos porque efetivamente preparava-os para algumas dificuldades da vida. A prática pedagógica era estruturada a partir de seus problemas cotidianos. Desde os mais simples, relacionados com a alimentação, o vestuário, etc., até os mais complexos como lidar com as diferenças entre as pessoas, com a transgressão das normas, etc. A experiência de Makarenko (1985) nos remete a questão: na escola atual, quais estratégias envolvem e preparam os alunos para as dificuldades do cotidiano?
Avaliando a importância do coletivo[6] na experiência da colônia Gorki, Makarenko (1985) fez um relato sobre uma marcha dos alunos em uma comemoração na cidade. Descreve a motivação e o entusiasmo que transpareciam dos alunos durante todo o evento. Segundo o autor, esses sentimentos eram resultados da forte identificação de grupo desenvolvida a partir do senso de coletivo, que propiciou uma convivência permeada de dificuldades, de conflitos, de frustrações, mas também de diálogo e de crescimento.
Dito de outra maneira, o trabalho em equipe é, portanto, uma estratégia utilizada para resolver problemas e desafios, com reconhecida eficácia. Por outro lado, a maneira como interfere nas relações afetivas entre as pessoas, lhe confere uma delicadeza e faz dele, em geral, um grande ausente, sobretudo, no ambiente escolar.
2.1 Trabalharem equipe: hábito ou habitus?
Aqui, cabe perguntar: quais são as implicações da falta de sustentação e direção na prática pedagógica? Se os professores não conseguem trabalhar coletivamente com seus pares, seria possível transmitir e cultivar em seus alunos essa forma de trabalho? Qual importância é atribuída pelos professores, na escola, ao trabalho coletivo?
Perrenoud (2000), em trabalho sobre o que considera as competências necessárias para se ensinar na atual conjuntura, advertiu sobre o risco de a escola desqualificar-se perante seus alunos ao desprezar os avanços tecnológicos. Ao contrário, a escola deve situar criticamente o impacto, a utilidade e o valor desses avanços, e isto só é possível conhecendo-os. Endeusá-los como solução para todos os problemas, como fazem muitos ou, com a crítica, negar sua universalização no mundo moderno, não cabe a escola. A esta caberia o papel de colocar o aluno em contato com todo o conhecimento que as novas tecnologias envolvem suas potencialidades e os limites de sua utilização. É fato que não se pode mais desconhecer, ou desconsiderar as novas tecnologias. Sendo assim, não seria a resistência a elas parte do movimento inercial que inibe a inovação e as mudanças na escola?
A definição sobre os papéis da escola e do professor é sempre uma questão delicada e pertinente. Há os que consideram que esses papéis são imutáveis independentes do contexto, e os que costumam defender a revisão dos papéis em função das condições em que aconteça o processo educativo.
Um outro aspecto foi que a implantação da nova LDB trouxe conflitos culturais em relação à mudança no conceito de competência. Segundo as Referências Curriculares do ensino profissionalizante, competência foi concebida como atribuição de responsabilidades de cada função, e estas são definidas pelas demandas do mercado de trabalho. [7] Mesmo sendo questionável, a adoção dessa concepção de competência deveria implicar em uma mudança em relação à avaliação dos alunos. Ao invés de se ter como parâmetro o conteúdo mínimo, que envolve somente habilidades cognitivas, deveria ser considerado um padrão de desempenho mínimo — que compreende a aquisição de habilidades e atitudes, além do conhecimento. Como consequência houve uma ampliação do que devia ser trabalhado e considerado, demandando que cada escola definisse uma proposta pedagógica, as habilidades que iria desenvolver sua concepção de ética (e as atitudes coerentes com ela), etc. Os professores deveriam fazer parte dessa definição, procurando evitar o isolamento e desarticulação do trabalho. Entretanto, mesmo com uma demanda e condições para que a discussão coletiva acontecesse, houve por muitas escolas, uma grande resistência para realizá-la.
Entendemos que o professor tem dificuldade de vivenciar a organização do trabalho em equipe em seu cotidiano, com seus pares. Sendo assim, como poderiam transmitir para os alunos as habilidades e atitudes necessárias se não as vivenciam? Em que momento o professor reflete sobre quais modelos está seguindo em sua prática? Como o professor avalia e dimensiona sua auto-organização, em relação ao grupo de professores com quem trabalha?
Thurler (2001) observou que o ofício de docente constitui uma das profissões onde continua sendo legítimo trabalhar isoladamente, protegendo-se de qualquer ingerência. Citando Ranjard[8], identificou nesse individualismo que chega a ser tratado por alguns como virtude, uma escolha cultural, mais do que uma norma ou "direito". Tendo esse forte componente cultural, o individualismo situa-se no cerne da identidade profissional do professor e faz os estabelecimentos escolares funcionarem como "caixas de ovos". Protegidos e isolados em suas salas de aulas, os professores não entram em conflito, mas também não trocam dúvidas, experiências, soluções, perdendo a oportunidade de criar energia através da interação.
Neste, consenso os problemas são assumidos e resolvidos isoladamente, sem identificação de quem teve o problema e como o resolveu; e, consequentemente, inovações e as mudanças podem acontecer pontualmente, fruto do trabalho e empenho específico, mas não são socializadas.
Perrenoud (1993) nos permite uma outra abordagem sobre o trabalho coletivo. Ele considerou que o professor está em constante formação. A partir disso, elabora uma hipótese sobre a forma que o professor decide o que e como ensinar na sala de aula. A maneira como essas decisões são tomadas determina, em parte, a qualidade da prática pedagógica no cotidiano escolar.
Em sua hipótese, chama atenção para a necessidade e a tentativa de se conferir consciência e racionalidade à prática pedagógica (mais até do que realmente possui, segundo o autor). Sem estas últimas, o trabalho docente perderia sua legitimidade, junto aos pais e a opinião pública, desencadeando uma série de problemas71 que poderiam inviabilizar a própria existência da escola. Perrenoud (1993, p. 21) ressalta que: “Uma boa parte dos atos de ensino não estão, deixaram de estar ou nunca estiveram sob o controle da razão e da escolha deliberada” [...] e, ressalta que o que agiria no lugar da racionalidade seria o habitus: "...sistema de esquemas de percepção e de ação que não está total e constantemente sob o controle da consciência".
Assim, durante a rotina de trabalho do professor, observa-se uma repetição de situações que tendem a gerar um automatismo nas respostas. Já nas situações que escapam à rotina, a improvisação faz-se necessária, e para orientá-la entra em ação o habitus. É ele que orienta também a ação planificada, a criação de estratégias e até as decisões.
Em seguida, assinalou que para ocorrer a transposição didática - conjunto de transformações que possibilitam que os saberes sejam ensináveis, é imprescindível a gestão da sala de aula. Nela, os saberes são transformados em atividades, envolvendo problemas, interrogações, projetos, etc. E, na maioria das vezes, observa-se uma artificialidade nessa transposição — as interrogações, problemas e projetos propostos pelos professores não são voltados para a realidade do aluno.
Será que um dos fatores que levaria a artificialidade na transposição didática (também observada pelo autor) não seria a desconsideração do grupo como condição primordial de vivência humana? É a partir do grupo que os indivíduos aprendem as linguagens e os comportamentos, e incorporam os valores que determinam suas atitudes. Mas é também no grupo que dificuldades, conflitos e dissabores aparecem e/ou ganham densidade. O grupo, portanto, é fundamental na formação do indivíduo, mas também fonte de conflitos. Sobre este último cumpre ressaltar que faz parte do senso comum uma tendência a se atribuir ao conflito um caráter negativo devendo, por isso, ser evitado. Devries (1998, p. 80), em seu trabalho sobre formação sócio moral da criança na escola, segundo a perspectiva construtivista, reitera essa afirmação: “Em muitas escolas, o conflito é visto como indesejável e como algo que deve ser evitado a qualquer custo”. A autora afirma apoiada nos estudos de Piaget, a importância do desenvolvimento da capacidade de resolver conflitos para a vida prática e para:
[...] motivar a reorganização do conhecimento em formas mais adequadas. E: "aquisição de novas formas de conhecimento. Os conflitos podem, portanto, ser vistos como uma fonte de progresso no desenvolvimento". (DEVRIES, 1998, p. 91).
O conflito, em geral, é tomado como um sinal de que algo não vai bem, ao invés de um sinal de que há chance de melhorar. Em função da dificuldade de aceita-lo como natural na convivência humana, pouco se faz para desenvolver habilidades para se lidar com ele, tais como: compreensão (de sua origem), análise (dos interesses e emoções envolvidos), escolha (do melhor encaminhamento), etc. Sem essas habilidades, relacionadas ao senso crítico, que poderiam fazer do conflito uma experiência positiva, ele pode se transformar em briga, rompimento — deixando de ser possibilidade de encontro e crescimento.
Outra maneira de se lidar com o conflito é associá-lo à irracionalidade. Assim, para se opor a essa associação instituindo uma imagem de racionalidade — e não a racionalidade de fato, entendida aqui como reflexão constante — os indivíduos adotam um comportamento atomizado, na família, no trabalho e também no ambiente escolar. Assim se constrói e se mantém uma cultura do individualismo. No estabelecimento escolar, ao se trabalhar isoladamente, confundindo autonomia com independência, o habitus acaba por se instaurar, pois sem o coletivo, não há confronto e a racionalidade deixa de ser necessária. O trabalho isolado, "autônomo", tem sustentado, portanto, a expectativa de se evitar conflitos, e sem estes se considera possível otimizar e controlar os processos educacionais.
A tendência preponderante de se evitar o conflito com o isolamento deve ser questionada. Para tanto, Perrenoud ressaltou o valor da heterogeneidade como característica inerente a qualquer agrupamento humano, e com ela a diversidade de maneiras de ser, de aprender, de se relacionar com outros, etc. Partindo dessa premissa, é possível reiterar a importância do trabalho em equipe uma vez que ele possibilita o confronto e a integração entre diferentes.
CONSIDERASÇÕES FINAIS
O tipo de gestão praticado no estabelecimento escolar é determinante para a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Os responsáveis pela gestão escolar deveriam fazer o planejamento prevendo a ampla participação nas tomadas de decisão, a adequação de horários dos profissionais, a otimização dos recursos materiais e financeiros, sem deixar de cuidar do clima organizacional, da revitalização dos valores e papel da instituição. Esse estilo, provavelmente, provocaria um impacto positivo na sala de aula, pois o apoio e a base para que se desenvolvam as atividades educativas estariam presentes. A gestão pode não se apoiar na prática do planejamento, ser arbitrada com preponderância para a lógica burocrática, e em decorrência disso o clima organizacional, os valores e o papel da instituição se dispersarem. Nessas condições, ainda que o professor tenha excelente formação, seu trabalho tende a ser comprometido, pela ausência de troca de experiências e de suporte às suas propostas.
O impacto das mudanças culturais sobre a família, alterando suas características (FREITAS, 1999), implicaram na delegação, para escola, da formação social básica e moral dos futuros cidadãos. A escola, como resposta, pressionada por essa nova demanda, acabou sobrecarregando o professor com atribuições, a princípio, não pertinente ao seu papel e para os quais ele não foi preparado. Dentre os papéis que o professor acaba tendo que desempenhar, em função das dificuldades que os alunos apresentam, estão: mãe ou pai, psicóloga(o), enfermeira(o), nutricionista. Desta forma, sua função original, que é ensinar, tende a diluir-se nesses vários papéis. Por outro lado, a remuneração financeira do professor, que poderia amenizar o estresse causado pelo excesso de atribuições, não corresponde à responsabilidade que lhe é atribuída. Assim, o salário, para grande maioria, é baixo - como baixo tem sido o reconhecimento social de seu trabalho.
As variáveis que determinam a qualidade do trabalho educativo (método, formação do professor, tipo de gestão da escola) são importantes, entretanto, dadas as condições adversas, a atuação do professor adquire uma relevância singular. É ele que está na "linha de frente" com o aluno. Dele são cobrados os conhecimentos específicos e o fraquejo didático, indispensáveis para a transmissão e construção de conhecimento e, consequentemente, formação intelectual do aluno. E, ainda, coerência, liderança, e segurança para colocar limites, ordenando a convivência e o processo de ensino-aprendizagem, na sala de aula. A cobrança é enorme, o retorno nem tanto.
Concluímos que a escola costuma atribuir a responsabilidade pelas dificuldades que enfrenta, ao desempenhar seu papel, à desestruturação da família, à política do governo de contenção de investimentos e à conjuntura social, caracterizada pela crise moral e ética e injustiça social. Entretanto, ao procurar causas externas para o problema, há uma tendência para isentar-se da responsabilidade, dificultando a busca de soluções. A partir desse fato, a escola tende a assumir uma posição passiva a quem somente cabe esperar uma mudança de setores externos. Além disso, a importância dada à inovação e à gestão para promover mudanças deveria ser constante e maior que na empresa, onde é possível padronizar a matéria-prima, os produtos e os procedimentos. Na escola, os alunos, por princípio, são diferentes entre si. Assim, o que funcionou para alguns, como método de aprendizagem, não funciona para os outros, não existindo, portanto, o método universal na escola, que serve para todos com a mesma eficiência.
Ressaltamos, também, que o papel da escola é fundamental para a sociedade. Talvez seja natural a escola ser mais conservadora e cuidadosa para não correr o risco de prejudicar os alunos com mudanças inadequadas.
Finalizando, sugerimos a incorporação de estudos sobre cultura organizacional, sua relação com a gestão e seu impacto no desempenho do estabelecimento de ensino, no currículo de formação de professores. No âmbito dos estabelecimentos escolares, seria necessário analisar a relação entre a cultura organizacional e a gestão praticada e, caso ela se revele inibidora de mudanças, fomentar uma política de desenvolvimento (THURLER, 2000) baseada em valores e hábitos diferentes dos atualmente praticados. Essa política deve possibilitar a preponderância da lógica profissional, ao invés da burocrática; a organização coletiva do trabalho; a parceria com os pais no enfrentamento do desafio de educar; a visão de avaliação como parte de um processo e não como seu fim; e a perspectiva de um ensino inovador e dinâmico. Acreditamos que, através das mudanças na educação discutidas aqui, seria possível "construir a ponte" entre a realidade tão adversa, que vivemos e a sociedade mais justa e humana, que desejamos.
REFERÊNCIAS
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FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
FREITAS, M. E. Cultura organizacional: identidade, sedução e carisma?. Rio deJaneiro: Editora FGV, 1999.
FURTER, Pierre. Educação e Vida. 3. ed. Petrópolis - Rio de Janeiro: Editora Vozes Limitada, 1970.
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OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos de. Educação Infantil: Fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 1999
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PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas e profissão docente: 3 facetas. In Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. ... processo de formação de professores. São Paulo: Olho D'água, 1993.
PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para ensinar. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: ArtMed, 2000.
SACRISTAN, J. Gimeno. Poderes Instáveis Em Educação. Tradução: Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Ed. Artmed, 1999.
THURLER, Monica Gather. inovar no interior da escola. Tradução: Jeni Wolff. Porto Alegre: ArtMed, 2001.
TOSCANO, Moema. Introdução à Sociologia Educacional. 5. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes Limitada, 1986.
[1] Aluno da faculdade San Carlos. Curso Ciências da Educação.
[2] ARIES, Ph. e DUBY, G. História de la vida privada. De la Primeira Guerra Mundial a nuestros dias Madrid: Taurus, 1989.
[3] Entendendo-se aqui Equipe como: gestores, professores, alunos e pais.
[4] Idem, pág. 233.
[5] A Revolução Russa de 1917 foi um dos acontecimentos mais importantes da história do século XX, que culminou com uma guerra civil: os contras-revolucionários eram apoiados pela França, Inglaterra e Estados Unidos, que temiam que a revolução se espalhasse pelo mundo. Mas os russos brancos, politicamente desunidos, foram liquidados pelo Exército Vermelho em 1921.
[6] A valorização do trabalho em equipe e o funcionamento dos destacamentos, na Colônia Gorki, guarda semelhanças com os "grupos de trabalho" ou “equipes auto gerenciáveis”, temas modernos na área de Administração e Gestão.
[7] Esse aspecto é questionável por privilegiar a concepção de indivíduo como um elemento do mercado de trabalho, desconsiderando sua dimensão humana.
[8] RANJARD, P. L'individualisme, um suicide culturel. Lês enjeux de l'educatíon, Paris, Harmattan, 1998.