O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)
Por mauro rosso | 02/03/2014 | LiteraturaAbrem-se as cortinas e projeta-se na tela mais uma premiação do Oscar cinematográfico. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura.
Independentemente de festas, festivais e premiações , o cinema sempre é objeto do foco, das luzes , sempre presente no imaginário e no real cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo. .
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Eventos como a ‘festa’ do Oscar -- e de resto, festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques etc -- são excelentes por permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaborações -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior; e também o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos narrativos literários, e a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa eem poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena era da imagem digital em que vivemos : o cinema continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura, tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto -- relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick -- para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...
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Mauro Rosso
pesquisador de literatura brasileira, ensaísta,escritor; amante do cinema.
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