O chamado das montanhas

Por Romano Dazzi | 20/09/2009 | Crônicas

 

 

O CHAMADO DAS MONTANHAS

 

Tinha apenas um ano mais do que nós.

Dezesseis anos, portanto.

Paolo era um filho carinhoso, numa família perfeita: o pai, a mãe, a irmã mais velha e ele.

Era um estudante tranqüilo, não brilhante, beirando a média, e ainda não apresentava nenhuma tendência particular.

Salvo uma: a paixão pelas montanhas. 

Não era uma peculiaridade só dele; todos nós  amávamos as “nossas” montanhas,  todos gostávamos de escalar, de subir, de conquistar os picos; e as dolomitas eram um campo de treinamento especial.

Nas frias madrugadas de primavera, antes que o dia comece, de repente o vértice do pico mais alto se acende com uma luz rosada, quase vermelha.

Nos vales, aqui em baixo, tudo é escuridão, paz, silêncio.

Um úmido cobertor de neblina agasalha-nos delicadamente. 

Mas lá em cima, a montanha já começa a arder de um fogo estranho, com todos os matizes possíveis de dourado e vermelho.

Os pássaros subitamente acordados pela luz,  voam para saudá-la e mostrar a sua felicidade por estarem vivos.

Deixam para trás os fantasmas da noite e empenham-se em vôos arriscados, acrobáticos, velozes

É uma maneira bonita de agradecer ao Senhor, por mais um dia  maravilhoso.

Só os homens não se lembram de fazer este agradecimento. E por isso a vida deles é  mais sombria.

Aos pouco, mudando de minuto em minuto, as longas sombras se encolhem se retiram, fogem apavoradas com a invasão da luz.

Ninguém resiste a essa cascata de cores – e de calor;  logo os animais, que passaram a noite encolhidos e friorentos, espicham-se preguiçosamente ao novo sol, ainda morno.

Nessa hora, já estávamos na metade do caminho,  com o fôlego alterado, os pulmões invadidos por um ar diferente do costume,  um oxigênio mais frio, úmido, com uma fragrância desconhecida,  agradável.

 

A escolha do caminho era a mais ampla possível:   

 

Havia subidas simples, fáceis, para principiantes, com uma progressão lenta, precisando apenas de um bom passo, equilíbrio, mãos capazes de se agarrar ao que viesse: fosse uma rocha exposta, fosse um tufo de grama selvagem.

A subida era ainda facilitada pelos platôs, freqüentes e largos, que permitiam acomodar-se e sentar na beirada, confortavelmente, para admirar o panorama lá em baixo  e deixar o pensamento livre para voar.

 

Havia fendas e canais, escavados pacientemente anos após ano pela neve, pelo gelo, pelas chuvas torrenciais; e curtido depois pelos meses de sol forte, tão forte que chegava mesmo a rachar as pedras soltas.

Caminhos menos fáceis de enfrentar, mas ainda assim desprezados pelos especialistas, pelos profissionais,que os consideravam um desafio inferior às suas capacidades.

 

Havia longas descidas de pedregulhos soltos, que, ao serem  pisados, desmontavam e desciam como avalanches, levantando uma poeira fina e traiçoeira. Eram a alegria dos sapateiros. Bastava jogar-se na descida por uma centena de metros, quase a pico, saltando como cabras montanhesas entre as pedrinhas pontudas, para arruinar os sapatos,  para desespero dos nossos pais.

Havia por fim os paredões: você encontraria lá todo o tipo de dificuldades.  Desde um modesto terceiro grau, - uma inclinação razoável  – até o quinto e o sexto graus, nos quais as paredes verticais, despidas de  qualquer possível apoio, terminavam lá em cima em uma moldura larga, que você só superaria ficando de cabeça para baixo, pregando os arpões de baixo para cima, pacientemente, com enorme esforço, em posições impossíveis.

 

Nunca consegui concluir este tipo de façanha; talvez por isso, eu esteja ainda por aqui, contando a história.

 

Nossas famílias conheciam a longa cadeia de montanhas pico por pico, subida por subida – cada um deles com nome dos aventureiros que haviam tentado e perdido a vida por lá.  Uma troca injusta: morrer, para ter o nome  lembrado.

 

Paolo ficou inquieto a semana toda.

Confiou a nós, os seus amigos mais próximos, que queria escalar o pico mais alto do monte Pasúbio.

Não era uma elevação exagerada: 2235 metros, apenas;

Mas havia poucos caminhos, e na maioria arriscados, difíceis.

A parede leste, em especial: uma muralha com quase 700 metros de altura.

Ninguém aceitou o desafio; chamou-nos de covardes e ficou sozinho, ruminando a decisão, escolhendo, entre os desenhos, o caminho melhor.

O pai proibiu-o de escalar sozinho; a mãe escondeu-lhe as botas de montanha.

Ele percorreu cada uma das nossas casas,  pedindo, implorando que alguém fosse com ele.

Conseguiu arrecadar, por empréstimo, um par de botas,  vinte pregos, desses especiais, com argola, dois mosquetões e cem metros de corda.

Não houve jeito de faze-lo desistir.

Mas com os nossos empréstimos tornamo-nos corresponsáveis pelo  seu destino.    

Finalmente, no sábado de manhã, ele passou por nós, numa velha bicicleta emprestada, pedalando com esforço, carregando toda a tralha que tinha conseguido juntar.

Olhou como se não nos visse e seguiu caminho sem falar nada.

Quatro quilômetros de subida, depois outros três a pé até o sopé, e por fim o paredão.

Todos já ouvimos falar de chamados irresistíveis que alguém sente sem entender, sem saber por quê.

O apelo do mar, de uma lagoa profunda, de uma caverna inexplorada; a pessoa vai, encantada, possuída, dominada, como se estivesse  seguindo uma música estranha. E encontra o fim.

Paolo, com certeza esteve escutando esse chamado a semana toda.

 

Duas horas depois, através de uma boa luneta que usávamos para escolher os percursos seguintes,  vimos quando ele iniciou calmamente a escalada.

Dava pare enxergar de maneira confusa, como numa imagem desfocada, mas suficiente para entender o que acontecia. 

Subindo, subindo; parando um pouco para respirar, recolhendo as cordas para enfrentar o trecho seguinte.

Marcando o local dos pregos, para a descida.

E de novo, recomeçando, lentamente, com o cansaço acumulando-se nos músculos.

Víamos vagamente seus braços esticados, procurando pontos em que pudesse se segurar.

A subida demorou três horas e pouco. 

Finalmente estava no último patamar, parado, descansando antes de chegar ao cume.

Mas os deuses são invejosos, covardes  e vingativos.

Só aceitam o nosso desafio quando estão certos de vencer. 

Não havia vento, nem nuvens, nem neblina; um dia esplêndido, brilhante.

Então mandaram um mensageiro: um pássaro aproximou-se num vôo veloz, quase assustador.

Paolo surpreendeu-se; perdeu o pé, balançou, virou, tentou desesperadamente agarrar-se ao paredão; este recusou-lhe a ajuda, o apoio indispensável.

O primeiro gancho se soltou, o corpo  agora jogado no espaço, balançando até bater violentamente na rocha cinzenta.

Estava perdido; o segundo gancho não resistiu; depois o terceiro, o quarto.....

Apenas um de nós viu o que ocorria. Fui eu. E esta lembrança  nunca mais me deixou . 

Expliquei desesperado aos amigos o que acabava de ver; imediatamente organizamo-nos para o resgate.

Mas já sabíamos que tínhamos perdido o amigo.

O batalhão  de guardas alpinos recuperou o que restava  dele. 

No pano que o envolvia, sobressaia o ditado do batalhão:

 “Per áspera ad astra”.

Por caminhos difíceis, chega-se às estrelas.