O Céu

Por Marcia Nolasco da Cunha | 09/06/2011 | Contos

O Céu

A luz forte o despertou. Viu um pedaço de céu azul cercado de prédios com uma nuvem branca redonda em forma de lua. Aquela visão era surpreendente, pensou ele, como se o céu quisesse abrir à força um espaço para passar entre os prédios que se espremiam procurando impedi-lo de iluminar o chão.
Ele escutava vozes e, como num caleidoscópio, rostos desconhecidos de variadas expressões se sucediam no seu raio de visão. Não entendia o que eles diziam, mas por alguma razão não se importava, como se eles fossem de outro mundo diferente do seu. Só o que incomodava era a diminuição do seu raio de visão do céu a cada vez que um ou mais rostos apareciam.
Aquele céu era muito bonito e, de repente, se lembrou que nos últimos tempos olhava pouco para ele. Andava muito ligado nas coisas do chão e esquecera-se de olhar para o alto. Para quem sonhava em terminar seus dias nas montanhas isso era no mínimo irônico. Por que teria se afastado tanto de seus prazeres mais importantes, como estar no alto de uma montanha sem vontade de voltar? O que teria acontecido para fazer com que ele se ligasse tanto em elevadores, metrôs e táxis e não tivesse mais tempo para caminhar por aquela trilha arborizada, com cheiro de mato molhado margeando o riacho, em direção ao topo de sua montanha favorita?
Talvez fossem os gêmeos que o prendiam num mar de obrigações de escola, creche, festinhas de aniversário e tantas outras pequenas coisinhas. Talvez fosse o grande amor de sua vida, hoje sua mulher, que com o tempo tinha se tornado somente uma sócia do seu "empreendimento vida" como costumavam brincar.
Não tinham tempo para os pequenos prazeres, afundados que estavam na "profissão" de pais. Não que ser pai fosse uma coisa ruim, muito pelo contrário, adorava seus filhos, só que sem sentir tinha se tornado pai em tempo integral e o tempo ficando cada dia mais escasso para olhar o céu sem pressa, com os mesmos olhos que olhavam agora entre aqueles prédios.
No meio desses pensamentos sentiu que o seu corpo estava úmido, de uma forma agradável, como se tivesse descansando numa praia equatorial de areias quentes à beira mar. Sentiu-se relaxado e por instantes fechou os olhos aproveitando aquela sensação morna. Lembrou-se da última vez que se sentiu assim. Quando foi mesmo? Há lembrou! Tinha sido em Santarém, naquelas férias, aproveitadas durante um projeto em Belém.
Sua mulher, ainda grávida, tinha tirado uns dias para passar um feriado prolongado com ele. Os dois ficavam a beira do rio, deitados de barriga para cima na areia quente no final da tarde, fazendo apostas para ver quem acertava a hora mais próxima da chuva. Foram dias maravilhosos de preguiça, fazendo amor a qualquer hora e em qualquer lugar. Sorriu sozinho lembrando a cara de espanto da velha camareira que tinha surpreendido os dois sentados no chão do banheiro em pleno ato sexual, ela com aquela barrigona toda, tinham dado boas gargalhadas com essa história.
Ainda sorrindo reabriu os olhos e reparou que o céu tinha mudado um pouco de cor e agora estava com um tom avermelhado como se o anoitecer estivesse chegando, as luzes do dia sendo substituídas pelo vermelho da tarde. Ficou olhando aquela visão mágica, com a nuvem se dissipando em mil fiapos vermelhos brilhantes.
Ouviu alguém dizer que estavam demorando a retirá-lo dali. Sair para onde? Uma voz mais grossa pediu que as pessoas abrissem caminho. Que caminho? Agora sentia frio e as vozes na sua cabeça o deixavam confuso.
Quando abriu de novo os olhos, viu um rosto fora de foco, bem na sua frente, a roupa parecia meio laranja. Era um homem e falou:- Não se mexa. Vamos tirá-lo daqui. - Mas, e o céu e aqueles prédios? Não iria mais vê-los? Estava adorando aquela visão. Tentou olhar mais além da pessoa que insistia em falar com ele, porque ele estava atrapalhando o céu. Será que ele não percebia isso? E por que tinha que sair da onde estava? E isso fez ele se lembrar de que conhecia este lugar, os prédios, as janelas envidraçadas. Passava todos os dias por aquela rua quando ia para o trabalho no centro do Rio. Sim, era isso! Mas, por que havia parado? Por que estava só olhando para o alto e vendo o topo dos prédios e o céu escurecendo desta forma?
De repente, sentiu uma sensação de movimento, balançava até um pouco. Mas, para onde estava indo? Para o céu? E, então, sentiu uma espécie de deslizamento entrando em um túnel esquisito. O céu e os prédios sumiram. Estava mais claro e meio cinza, e o céu virou uma imagem metálica, horrível. O que poderia ser?
Escutou barulho de portas sendo fechadas e uma sirene começou a tocar. A única coisa que pensou quando sentiu mais um solavanco, era que tinham lhe tirado o céu, a nuvem, tudo aquilo que conhecia e gostava. Restavam apenas as lembranças daquelas imagens em sua mente. Estava em um lugar cinza e só o que tinha no momento eram os olhos, que mesmo sem entender tudo viam.