O CAVALO TINHA UMA CRUZ
Por Edevaldoleal | 20/02/2013 | CrônicasCrônica
O CAVALO TINHA UMA CRUZ
Edevaldo Leal
Não sei bem se foi num sábado. Sexta-feira ou sábado, o dia pouco importa. O que a memória não erra é em me fazer lembrar esse sentimento de compaixão pelo animal, um cavalo.
Que era um cavalo, disso eu não tenho dúvida. Um cavalo trabalhador. Puxador de carroça. Ele estava ali, a minha frente, quase ao alcance da mão. E como doía vê-lo. Muita gente ainda não substituiu a carroça e se utiliza desse obsoleto transporte de carga na Estrada do 40 Horas , estrada que virou bairro, Bairro do 40 Horas, com a urbanização de Ananindeua.
– Ei, ei, ei – esbravejava o carroceiro , que, “ zapt , zapt,zapt ”,açoitava o animal, sem piedade. Mal alimentado, era possível contar-lhe as costelas. Parecia fraco. Tinha dificuldade para andar. E o carroceiro, “zapt, zapt, zapt” , queria que o cavalo corresse . Cheia de areia até não mais poder, a carroça era fardo que o animal não suportava. Não, a carroça não só pesava: arrastava o animal para trás, tal a lentidão dos passos. Ele mais parava do que andava.
No próximo quarteirão, outra parada. Novas e raivosas chicotadas. O carroceiro gritava impropérios para o animal:
– Anda, desgraçado – zapt, zapt, zapt – descarregava a raiva no cavalo.
– Ei, ei, ei , pra frente, imbecil – vociferava , indiferente ao sofrimento de quem o ajudava a ganhar o pão de cada dia.
Sob açoites, o cavalo andou o segundo quarteirão e fez a quarta parada. E prosseguiu sua marcha lenta, como se contasse os passos. Muitas coisas lhe vieram à lembrança. Os animais se comunicam por um modo particular de percepção dos códigos. Sentem dor e são conscientes do perigo. Alguém já viu cavalo saltar para o abismo ? Diante do perigo, param, empancam e procuram seguir direção oposta.
Aquele cavalo do 40 Horas não tinha opção diante de abismos de indiferença. Dos abismos da alma de seu dono não havia como escapar.
Sobrecarregado, ferido de dor, o velho cavalo fez uma volta no tempo:
– Ainda jovem, pertenci a um rico fazendeiro do Marajó. Foi difícil vencer- me a selvagem rebeldia. E só deixei me domarem quando senti confiança no domador.Não ia deixar qualquer um me botar cabresto. Quantas vezes corri livre nos campos marajoaras , tangendo manadas de búfalos ? Capim farto, comi quanto podia, à saciedade. Elegante, viril e sedutor, deixei uma descendência de filhos ,netos e tetranetos por lá. Já velho, me venderam e agora estou aqui, escravo da vontade de um dono, cuja estupidez está me matando aos poucos.
Meio faminto, meio sem poder andar, a carroça pesava-lhe toneladas sobre os lombos.
“Zapt, zapt, zapt”, ouvia-se o som forte do chicote. Mas os latidos de um vira- lata me chamaram a atenção. Um cão latindo na direção do carroceiro. Seria um protesto canino ? Outro vira- lata juntou-se ao que já latia .Um cavalo solto ,talvez perdido ou abandonado por ali, parou bem na frente da carroça. Pode até ter sido uma coincidência. Não para mim, que continuo acreditando que foi solidariedade animal. Vários homens, algumas crianças e mulheres, que a tudo assistiam, tomaram o chicote das mãos do carroceiro, o colocaram para correr e libertaram o cavalo. Muitos dias depois, reencontrei o animal a quilômetros de distância, em outro bairro. E eu só o reconheci por causa do sinal que ele tinha na testa : uma mancha branca em forma de cruz.
Ananindeua Pará,19 de fevereiro de 2013.