O CASO SUZANE VON RICHTHOFEN: UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO DISCURSO DA DEFESA

Por Serivaldo C. Araujo | 11/08/2010 | Direito

Serivaldo C. Araujo

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de relacionar o conteúdo estudado na disciplina de Antropologia Jurídica com um caso jurídico de relevante expressão nacional, o caso de Suzane Von Richthofen, condenada juntamente com Daniel Cravinhos de Paula e Silva e Cristian Cravinhos de Paula e Silva pelo homicídio do casal Manfred Albert Richthofen e Marisia Von Richthofen, pais de Suzane, ocorrido em 2002.

A análise foi feita tomando como fonte de pesquisa uma peça judicial do caso Richthofen, as "Alegações em favor de Suzane Louise Von Richthofen, da advogada Claudia M. S. Bernasconi", trecho do processo nº 052.02.004354-8 da 1ª Vara do Júri de São Paulo.

Não é objetivo do texto verificar o caso em si, mas destacar os aspectos culturais e sociais presentes no discurso da advogada na defesa de Suzane Von Richthofen.

A utilização de processo judicial como referência para pesquisa antropológica

Uma grande fonte de dados para pesquisa de assuntos que abordam a antropologia e o direito são os processos judiciais, nos quais constam informações escritas capazes de mostrar como atuam as pessoas em seus discursos. De acordo com Oliveira e Silva (2005, p. 244), "diferentes processos judiciais podem servir a diferentes tipos de pesquisa, sendo possível extrair deles análises variadas sobre grupos sociais diversos".

Analisar o conteúdo de um processo do ponto de vista de um antropólogo ou de um advogado, é bastante diferente, pois os objetos de estudo acabam sendo diferenciados, pois este observa a lei, aquele o homem e os aspectos culturais. Segundo Miraglia (2005) "se, para o advogado, a lei interessa na medida em que separa o certo do errado, o lícito do ilícito, para o antropólogo a lei ou a legislação representam apenas o aspecto formal do controle social, mais uma manifestação desse conjunto de valores que poderíamos chamar de cultura".

O processo analisado nos permite identificar os discursos da advogada, com relação ao comportamento de sua cliente, a princípios jurídicos, à doutrina e à jurisprudência citadas e ao pensamento da sociedade em geral. Para Oliveira e Silva (2005):

Pela análise das narrativas dos processos judiciais, pode-se buscar aquilo que é transmitido com a ocorrência de determinados comportamentos e com o discurso sobre esses comportamentos, ou seja, pode-se apreender a lógica que informa tais comportamentos e discursos empreendidos pelos grupos sociais estudados. (OLIVEIRA e SILVA, 2005, p. 258)

As alegações: discursos preconceituosos

A advogada de Suzane, em suas alegações de defesa busca afastar as qualificadoras de "motivo torpe" e "meio cruel", com o objetivo de que a pena imposta a sua cliente não seja aumentada. São nessas alegações que podemos perceber os aspectos culturais e sociais que envolvem o caso em análise.

A advogada em sua exposição busca mostrar as qualidades de Suzane e de Daniel, considerando-a "a filha bem educada do casal de classe média que frequentava uma das melhores faculdades de direito do país, com sua vida confortável na boa casa de um bairro considerado nobre, mas cujo namoro com o rapaz sem estudos e futuro preocupava os pais zelosos". E ainda sobre Daniel, "rapaz de vida leve, que largou os estudos e se dedicava apenas ao namoro e ao hobby aeromodelismo".

Observamos nessas descrições um relacionamento que envolve duas pessoas de classes sociais diferentes, que lamentavelmente, sempre causou na sociedade, um preconceito, como se isso fosse uma situação inadmissível. Podemos observar uma descrição discriminatória em relação ao rapaz, Daniel, devido ao fato de ter largado os estudos, não ter uma ocupação, ser rapaz de "vida leve" e sem futuro, conforme declara a promotoria. Descrição adversa à de Suzane, filha bem educada, estudante de Direito, moradora de uma casa confortável em bairro nobre.

Essas descrições levam a pensarmos que os crimes estariam relacionados somente às pessoas de classe inferior, sem estudos e desocupadas, e que pessoas como Suzane estariam imunes à marginalização e fossem incapazes de cometer um crime. Esta é uma situação que não se pode generalizar, a pretexto de se criar um preconceito.

Amor proibido

Outro fator cultural e antropológico presente no processo, passível de análise, é o relacionamento amoroso de jovens que é proibido pelos pais. Relacionamento que acaba acontecendo de fato com o casal Suzane e Daniel, sem o consentimento da família de Suzane.

Um relacionamento proibido por uma família se torna um fator de risco, pois envolvem interesses conflituosos, causam insatisfações, decepções, hostilidades, agressões, mentiras, desconfianças e até mesmo crime, como no caso em questão.

Pessoas, especialmente jovens, buscam a liberdade de amar, de escolher seus parceiros e seus relacionamentos e vêem nos pais que os proíbem, um inimigo que atrapalha, que incomoda e os desrespeita.

De acordo com a promotoria, a desaprovação do namoro pelos pais de Suzane teria sido a razão determinante para o crime. Vemos nesse crime um paradoxo, elimina-se pessoas (os pais) para obter uma vida com liberdade, no entanto, a condenação por isso é a falta dela, atrás das grades de uma prisão.

Violência familiar

Outro fator cultural é a violência familiar, suscitada no caso, pois segundo Suzane, o pai já havia a agredido. Este fato também é analisado com preconceito. A advogada alega que a violência familiar existente na casa de Suzane era algo destoante para os padrões éticos daquela família. Seria inadmissível agressões físicas num seio familiar onde a jovem fora criada com carinho e respeito, no bairro nobre de mansões de alto padrão. Defende que, em contrapartida, a utilização da violência numa família residente em favela da periferia, área violenta, marcada pela pobreza, seria algo aceitável.

Essas afirmações revelam o lado preconceituoso em que se generaliza a violência doméstica, como fator desenvolvido somente em favelas, lugares pobres, em famílias em que as necessidades materiais e afetivas propiciam um quadro de insatisfação e violência, como se não fosse admitido haver violência no seio de uma família abastada. Engano ao se pensar de forma preconceituosa como esta, tendo em vista que a violência doméstica pode atingir qualquer família, independente da classe social. Conforme afirma Schritzmeyer (2007) "parece correto afirmar que as sessões de júri permitem a seus participantes ler e reler quanto e quando é legítimo qualquer ser humano matar outro, e não apenas os casos em que seres humanos econômica, política e socialmente fragilizados se envolvem em homicídios".

Assim desenvolve-se uma cultura de que as mazelas sociais são as principais responsáveis pela violência, pelos crimes e assassinatos.

As consequências de um relacionamento humano

Neste caso podemos perceber o que um relacionamento humano pode causar, às quais consequências pode levar e a situação de submissão à vontade alheia que pode levar uma pessoa a cometer um crime.

Suzane e Daniel viveram um relacionamento em que a liberdade de amar esteve sempre em jogo, os dois eram proibidos de se encontrar, de manterem um relacionamento amoroso, principalmente pelo fato de serem de classes sociais diferentes. Isso os levou a criar uma vontade de eliminar aqueles que os proibiam, os pais de Suzane.

Conforme depoimento de Suzane, Daniel foi a convencendo de que matar os pais dela era a única forma de conseguirem a liberdade e conviverem juntos. Segundo ela "ele foi plantando semente em mim, me seduzindo de uma forma e mostrando e falando, cada dia, devagarzinho, que eu tinha duas opções, como se a vida tivesse uma bifurcação: ou eu escolhia ficar com meus pais e sem ele ou com ele e sem meus pais, não dava alternativa; me prometeu um mundo encantado, ele era meu príncipe encantado; mostrava como era feliz a vida como nos dias com liberdade total".

Observar esse depoimento nos leva a crer que Daniel foi subjugando Suzane a cometer o crime. Em consequência, a paixão e o medo de perder o namorado tenha lhe dado coragem de aceitar a ideia macabra e impensada de cometê-lo.

É interessante a capacidade que um amor proibido pode fazer numa pessoa, afinal, a jovem era bem instruída, cursava uma faculdade de Direito, e assim, melhor do que ninguém, saberia as consequências que seus atos poderiam lhe causar.

Conclusão

O processo judicial de Suzane Von Richthofen, foi um caso que teve muita repercussão nacional, chocou a opinião pública e suscita várias análises, sejam antropológicas, sociais e culturais. O discurso empreendido na peça analisada desperta estudos variados, pois pudemos observar depoimentos, alegações, argumentações, jurisprudências e doutrinas.

A análise antropológica se voltou para o discurso defendido pela advogada de Suzane, no qual verificamos as qualidades atribuídas aos participantes do crime, como se comportava o casal condenado pelo homicídio e os argumentos que a advogada trouxe à tona na defesa de sua cliente.

Ao longo da explanação pudemos analisar o quanto é carregado de preconceitos sociais e culturais, os discursos proferidos no processo, no qual estão em jogo relações humanas, sentimentos de amor e ódio, comportamentos, aspectos culturais, classes sociais, educação, assuntos que, sem dúvida, fazem parte da convivência humana, e são objetos de estudo da Antropologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNASCONI, Claudia M. S. Alegações em favor de Suzane Louise Von Richthofen. São Paulo, 05 mar. 2003. Processo nº 052.02.004354-8 da 1ª Vara do Júri de São Paulo.

MIRAGLIA, Paula. Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude. Novos estudos. - CEBRAP [online]. 2005, n.72, pp. 79-98. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/nec/n72/a05n72.pdf>. Acesso em 24 jun. 2010.

OLIVEIRA, Fabiana Luci de e SILVA, Virgínia Ferreira da. Processos judiciais como fonte de dados: poder e interpretação. In Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan/jun 2005, p. 244-259.

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Etnografia dissonante dos tribunais do júri. In Tempo social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 2, novembro 2007.