O CASO DO ESCRIVÃO QUE SABIA A DIFERENÇA ENTRE PROCESSO E PROCEDIMENTO

Por Catarina Santos Bogea | 13/06/2017 | Direito

SINOPSE DO CASE:O CASO DO ESCRIVÃO QUE SABIA A DIFERENÇA ENTRE PROCESSO E PROCEDIMENTO¹                                               

 

Catarina Santos Bogéa²

Vail Altarugio Filho³

 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

 

No dia em que a Lei 13.105 de 2015 que institui o Código de Processo Civil entrou em vigor, já tramitava certo processo, e, o último ato praticado antes da vigência da nova Lei, foi à juntada do mandado de busca e apreensão, já cumprido pelo oficial de justiça.

Como a medida cautelar foi extinta pelo CPC, o escrivão fez os autos conclusos para que o juiz proferisse despacho. Este último, intrigado com a atitude do escrivão, questionou-o, e, o escrivão explanou a diferença entre processo e procedimento.

Após os devidos esclarecimentos, o juiz designou audiência de conciliação, contudo, as partes não chegaram a um acordo sobre as questões de direito material. Com isso, resta ao juiz, em audiência de instrução, ou mediante outros atos processuais, enfrentar a controvérsia a égide do novo CPC.

 

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

 

A todos é garantido o acesso à justiça, e o direito de obter uma resposta do poder judiciário aos requerimentos formulados. Assim, desde o momento em que é proposta a demanda, haverá a formação de um processo, que é o instrumento da jurisdição. É por meio dele que o Poder Judiciário poderá dar a resposta solicitada, é também o meio pelo qual o juiz poderá aplicar a lei ao caso concreto.

Importante salientar que o processo pode ser considerado sob dois aspectos: pelos atos que, ordenados sucessivamente de maneira lógica, devem ser realizados durante o seu transcurso; e pela relação que se estabelece entre determinados personagens. Ainda, o processo contém um aspecto objetivo e um subjetivo.

Objetivo a partir da constituição de um conjunto de atos organizados e previamente previstos em lei, que visam à prestação jurisdicional. Para que esta ultima seja alcançada, há um procedimento, que pressupõe um encadeamento de atos sucessivos no tempo, isto é, a apresentação da inicial, o recebimento, a citação do réu, a resposta, o saneamento ou julgamento antecipado, as provas e o julgamento.

Subjetivo porque o processo estabelece uma relação entre o juiz e as partes, que também se prolonga no tempo. Daí o entendimento de que todo processo é integrado pelas noções de procedimento, e de relação jurídica processual. (GONÇALVES, p. 179, 2016).

Assim, enquanto o processo engloba todo o conjunto de atos que se alonga no tempo, estabelecendo uma relação duradoura entre os personagens da relação processual, o procedimento consiste na forma pela qual a lei determina que tais atos sejam encadeados.

Feito as considerações supra a respeito de processo e procedimento, passemos a analisar o caso proposto. O processo a que se refere o caso teve o seu surgimento quando da vigência do CPC/73, motivo pelo qual o último ato praticado foi a juntada do mandado de busca e apreensão cumprido pelo oficial de justiça. Desta informação, algumas conclusões já podem ser enumeradas. Em primeiro lugar, como o mandado foi efetivamente cumprido, houve, necessariamente, o deferimento da liminar. Em seguida, depreende-se que o réu foi citado, uma vez que o procedimento de busca e apreensão nos moldes do CPC/73, salvo condições excepcionais, prevê que além do deferimento da liminar, o magistrado determinará que o requerido seja citado para apresentar defesa no prazo de 05 dias, contados da juntada do mandado de citação aos autos. (MONTENEGRO, p. 117, 2014).

No caso, após a juntada do mandado, o escrivão, declarou os autos conclusos ao juiz, e, frisou a importância da distinção entre processo e procedimento. Conforme mencionado acima, o CPC/73 contava com um procedimento bem delineado para ação de busca e apreensão, ocorre que, com a vigência do atual CPC, o processo cautelar como um todo, assim como as cautelares nominadas, foram extintos, e as regras antes aplicáveis sofreram drásticas modificações. Analisemos.

O Livro III do CPC/73 era dedicado ao processo cautelar, e ao juiz era permitido conceder uma tutela cautelar em processo autônomo, ou no bojo do processo principal. No caso da busca e apreensão, a medida não se tratava de mero incidente da ação principal, mas ação autônoma que deveria ser formulada através da distribuição de petição inicial, submetendo-se ao preenchimento dos requistos específicos desta espécie de cautelar.

Como o processo em apreço teve inicio quando da vigência do CPC/73, todas as regras da busca e apreensão então aplicáveis foram consideradas para o deslinde dos atos judiciais e executórios. Assim, ausente à audiência de justificação, entende-se que a liminar perseguida foi deferida sem a ouvida da parte contrária, o que quer dizer que o juiz, no momento, estava convicto do preenchimento dos requisitos que autorizam a concessão da medida, através de decisão interlocutória que pode ser combatida pelo requerido no prazo de 10 dias, com a possibilidade ainda de que fosse atribuído efeito suspensivo ao recurso, amparado no inciso III do art. 527 do CPC/73. Como estamos lidando com situação em que o mandado foi cumprido, o magistrado, além do deferimento da liminar, deveria ordenar a citação do réu, para que no prazo de 05 dias, oferecesse defesa.

Ainda no contexto do CPC/73, após o cumprimento do mandado, sendo a coisa ou a pessoa encaminhada ao destino predefinido pelo magistrado, o oficial de Justiça deve devolver o mandado, momento em que haverá a citação do réu, e em seguida a designação da audiência de instrução e julgamento e prolação de sentença, que não produz coisa julgada material como as demais sentenças que desfechavam as cautelares em geral.

Importante frisar, contudo, o porquê de o escrivão, no momento da transição de legislações, ter sentido a necessidade de concluir os autos sob o fundamento de que processo e procedimento são institutos distintos. A explicação é simples. Ora, uma vez exercitado o direito de ação, surge para o Estado o dever de que o seu representante profira uma sentença, não necessariamente de mérito. O Estado torna-se então devedor dessa obrigação. A prolação da sentença apenas é possível mediante a instauração de um processo, visto como instrumento utilizado para eliminar o conflito de interesses. Dentro do processo, diversos atos são praticados de formas diferentes no âmbito da relação jurídico-processual, e à forma como os atos são praticados, dar-se o nome de procedimento.

O procedimento é interligado por vários atos processuais, alguns praticados pelas partes, outros pelo juiz, e muitos outros pelos auxiliares da justiça, sobressaindo o oficial de justiça e o escrivão. Assim, um ato só é praticado porque outro o antecedeu. Logo, em uma linha lógica de raciocínio, observamos que o juiz apenas ordena a citação do réu por ter o autor praticado o seu ato principal, qual seja a apresentação da petição inicial; a defesa, por sua vez, só é oferecida pelo fato de o réu ter sido citado, e assim sucessivamente.

Com a vigência do CPC/15 o escrivão atentou para as mudanças dos procedimentos/atos do processo, e compreendeu que, o que antes era um processo, a luz do novo código, se tornara um procedimento. Por esta razão submeteu os autos ao juiz, para que este, em observância as novas regras, pudesse dar continuidade ao feito.

Neste novo momento da lide, qual seja a égide do CPC/15, algumas considerações merecem ser tecidas. Primeiramente, o processo cautelar, que até então regia o conflito, foi extinto, da mesma forma, as cautelares nominadas, como a busca e apreensão. O CPC/15, contudo, manteve os procedimentos especiais. Podemos admitir então que, tecnicamente, os procedimentos especiais e o finado processo cautelar, são o mesmo instituto? Ora, é claro que não. A razão pela qual a lei estabelece que determinados procedimentos sejam especiais e outros não é de natureza material, e não processual. O que se leva em conta é o direito material que se discutirá nos processos, plasmando-se o procedimento de forma tal a melhor atender às suas exigências. (GONÇALVES, p. 576, 2016).

Como cada procedimento especial tem a sua peculiaridade, a legislação processual tem de tratar de cada um deles, expressamente, indicando-lhes as especificidades. Assim, é possível distinguir procedimentos inteiramente especiais, que se processam de forma completamente distinta do procedimento comum, e há os que são apenas especiais no inicio, e depois prosseguem inteiramente nas vias ordinárias. (GONÇALVES, p. 577, 2016).

O processo cautelar, por sua vez, vislumbrado no CPC/73, não se destinava a um direito material especifico, mas de outro modo, tinha o condão de garantir qualquer bem ou direito, de modo que estes permanecessem íntegros até a disputa na ação principal. A maior utilidade do processo cautelar consistia na obtenção de uma medida de urgência capaz de tutelar a situação jurídica em conflito, desde que esta fosse de notável utilidade em relação ao processo principal.

Com a vigência do novo CPC, o processo cautelar deu lugar às tutelas acautelatórias, e estas não mais se resolvem em um processo autônomo, mas configuram como um procedimento, uma etapa, do processo unificado e principal.

Ante o exposto, e em atenção ao caso proposto, passemos analisar as possíveis condutas do juiz neste momento de transição do “velho” para o “novo”.

Em primeiro lugar, vigente o novo CPC, a legislação processual possui aplicação imediata no tempo, todavia, respeitam-se os atos praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada. Isto é o que diz o art. 14 do CPC/15:

 

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

 

No mesmo sentido, o texto constitucional, em seu art. 5º, XXXVI, estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Neste diapasão, o juiz deve considerar que a norma processual não poderá se sobrepor a norma constitucional, de modo que o ato jurídico perfeito deverá ser conservado.

Contudo, no caso em análise, ao tempo em que a nova lei entrou em vigor, o mandado de busca e apreensão já havia sido cumprido, juntado aos autos, e o réu citado para oferecer defesa no prazo de 05 dias. Vigente o atual o CPC, o juiz intimou as partes para integrarem a relação processual através da audiência de conciliação. Não logrando êxito (como não logrou), de acordo com o art. 335 do CPC/15, o réu teria 15 dias para oferecimento de contestação, cujo termo será o da audiência de conciliação. Deduz-se então, que não houve afronta ao principio constitucional, tendo em vista que ao adotar as regras do CPC/15, o juiz não prejudicou o ato jurídico já consagrado, e, ante o prazo prolongado para apresentação de defesa, não há que se falar em situação menos benéfica.

O juiz, de outro modo, poderia interpretar que a teoria da conservação dos atos praticados sugere que, citado o réu, este, necessariamente, deveria apresentar a defesa em 05 dias. E, como o CPC/73 admite a audiência de conciliação a qualquer tempo do processo, o juiz, intimou as partes para possível resolução do conflito. Sem sucesso, e mediante a extinção do processo cautelar, o magistrado poderá optar por uma decisão de saneamento. 

O saneamento do processo, compreendido enquanto a correção de eventuais defeitos, e organização do processo, ocorrerá ao longo da relação processual. Ressalte-se que ao juiz subsiste o dever permanente de zelar pela regularidade e eficiência do processo – e com ele devem colaborar as partes (art. 6º). Porém, o Código dedica especialmente dois momentos processuais para tais atividades: o primeiro, por ocasião das providências preliminares (art. 347 e seguintes); o segundo, no bojo do julgamento conforme o estado do processo (art. 357).

O julgamento conforme o estado do processo terá por conteúdo uma decisão de saneamento quando não for caso de extinção da fase cognitiva do processo, com ou sem julgamento do mérito (arts. 354 e 355). Vale dizer: descartada a ocorrência de qualquer das hipóteses de negativa da resolução do mérito e constatada também a impossibilidade de desde logo o resolver, por ser necessária a produção de provas, cabe ao juiz averiguar que não pendem defeitos que possam depois afetar o resultado do processo, determinando o conserto daqueles que eventualmente ainda existam e fixando as balizas da instrução probatória (art. 357).

Quando há decisão de parcial impossibilidade de julgamento do mérito ou decisão de julgamento imediato parcial do mérito (arts. 354, par. ún., e 356), cabendo produção de provas para a solução do restante do mérito, essa parcela remanescente será também objeto de decisão de saneamento.

Neste segundo caso, compreende-se que também não há afronta ao principio constitucional do art. 5º, XXXVI, isto porque o juiz conservou os atos praticados, e somente a partir de então “arrumou a casa” e passou a sanear o processo. Repise-se que em âmbito de decisão de saneamento e organização, são variadas as providencias que poderão ser tomadas, tudo para garantir a eficiência da atuação jurisdicional.

Contudo, as duas possíveis condutas do juiz narradas acima, pressupõem que, um processo de natureza cautelar passaria a ser regido de acordo com a generalidade do processo ordinário. Em sendo assim, o caráter de urgência do processo cautelar instaurado ainda a vigência do CPC/73, não mais subsistiria. A partir desta reflexão, devemos considerar que, se um processo era cautelar, e se utilizou de um procedimento especifico para garantir o resultado útil de uma pretensão jurídica, então, mesmo a luz do novo CPC, deverá ser preservado o caráter acautelatório que ensejou o processo.

A partir deste contexto, vislumbram-se outras duas condutas, estas mais pertinentes, a serem seguidas pelo magistrado. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, como se tratava de um processo cautelar que se utilizou da busca e apreensão para garantir algum resultado útil, então, as regras características do procedimento cautelar, deverão ser observadas. Ora, conforme exaustivamente afirmado, o processo cautelar e a nominada busca e apreensão, foram extintos, e, em sendo assim, a regra a ser aplicada pelo juiz será a do art. 1046, caput, CPC/15:

 

Art. 1.046.  Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

 

Isto porque, na ausência da tutela de busca e apreensão, o juiz passará a aplicar a tutela provisória de urgência com o objetivo de acautelar o bem, tudo em observância ao art. 301 do CPC/15:

 

Art. 301.  A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.

 

O artigo supra garante o dever-poder do juiz de acautelar, utilizando-se da medida mais eficiente ao caso concreto, medida esta que poderá ser, inclusive, a de busca e apreensão. Ora, se o juiz manteve a busca e apreensão baseado no poder de cautela que lhe foi atribuído pelo CPC/15, não há que se falar em afronta ao principio constitucional de preservação do ato jurídico perfeito. Em seguida, o juiz designou a audiência de conciliação para esclarecer às partes as mudanças ocorridas, isto é, o processo cautelar que antes tramitava, dera lugar ao procedimento de tutela provisória, e, em sendo assim, inexitosa a conciliação, ambas as partes gozariam de prazo para que o réu conteste a concessão da medida, e para que o autor emende a inicial interposta, sob pena de extinção.

A partir deste momento, e até a prolação da sentença, o procedimento a ser seguido será o da tutela provisória, tudo nos moldes do CPC/15.

Ainda, em respeito às características da tutela provisória, deve-se ser considerado a possibilidade de revogação (art. 296) da cautelar. Como o ato da revogabilidade se dará a vigência do CPC/15, impende salientar que o código exige fundamentação analítica, qualificada ou legítima (clara e precisa) da decisão que revogar a tutela provisória. Uma vez revogada, o servidor publico deverá devolver ao erário os valores recebidos em razão da decisão precária.

Por fim, é importante salientar as mudanças que o novo código trouxe em relação a fungibilidade. No CPC/73 não era possível a fungibilidade em cautelar nominada. Agora, com o CPC/15, a fungibilidade é perfeitamente possível, uma vez que não existem mais resquisitos próprios para os procedimentos cautelares específicos. Em sendo assim, não há, em verdade a existência de um procedimento cautelar especifico. Por este motivo, é possível vislumbrarmos a ideia de o juiz, in casu, Alexandra Câmara utiliza o termo “converter”, o processo cautelar em procedimento cautelar provisório, este ultimo já com as características de fungibilidade e unificação trazidas pelo CPC/15.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

 

CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil: volume 1. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

 

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado/Marcus Vinicius Rios Gonçalves; coordenador Pedro Lenza. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

 

MONTENEGRO FILHO,Misael. Curso de direito processual civil, volume 3: medidas de urgência, tutela antecipada e ação cautelar, procedimentos especiais. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

 

MARINONI, Luis Guilherme. O novo processo civil./Luis Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

 

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim...[et al]. Primeiros comentários ao código de processo civil: artigo por artigo. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.