O CASO DA TOALHA

Por Renato Ladeia | 08/10/2012 | Contos

Estava num velório de um senhor conhecido no bairro, quando ouvi uma estranha história de amor, cujo protagonista era o próprio velado.  A história lembra o “Caso do vestido”, um poema do Drummond de Andrade. O vestido do poema ficou pendurado num prego, símbolo de uma paixão que não vingou. Quanto à toalha, vamos ouvir o que o velhinho tinha a contar.   

               O homem começou então a narrar a história do seu Francisco. Ele era jovem, muito jovem e teve uma paixão fulminante por uma moça um pouco mais velha, daquelas paixões que não deixa a pessoa dormir sossegada. Até aí nada de novo, mas a infelicidade era o grau de parentesco, um problema complicado, um incesto. A moça era sua tia, irmã do seu pai. Tão logo a família descobriu que havia alguma coisa no ar, trataram de despachar a moça para bem longe, pois ela estava morando na casa do irmão, pai do rapaz.

Bolívia era o seu nome. Depois de um fracassado romance com um aventureiro, a moça foi abandonada e ficou com a sua honra manchada na cidade onde morava. A saída encontrada pelos pais foi despachá-la para passar uns tempos na casa do filho mais velho, que morava bem distante em uma fazenda no norte de Minas.  A moça não era de uma beleza extravagante, mas era charmosa, simpática e tinha um olhar vivo e inteligente, coisas que deixaram o jovem encantado.

As desconfianças do irmão e da cunhada sobre o seu relacionamento com o sobrinho complicaram a vida da moça que foi orientada a voltar para a casa dos seus pais. O irmão a chamou para um conversa séria e, sem mencionar qualquer relação com o filho, justificou que não poderia ficar com ela em casa, tendo filhos solteiros com pouca diferença de idade. Essa situação, na opinião dos tios da moça, poderia gerar falatórios indesejáveis na vizinhança. Na realidade o vizinho mais próximo ficava a mais de trinta quilômetros de distância, mas o irmão precisava de uma boa desculpa para não deixar a irmã magoada.

Bolívia tinha plena consciência do que estava acontecendo e enclausurou-se em seu quarto após a conversa com o irmão e de lá mal saía para fazer as refeições. Os dias seguintes aos preparativos para a viagem foram longos e tristes, pois sabia das causas da decisão do tio. O receio de que ele pudesse contar para seus pais a preocupava ainda mais. Passava os dias a expiar pela janela para ver o seu amor à distância e cuidava em bordar uma toalha de linho para deixar de lembrança.

Terminado o bordado um dia antes da viagem, procurou, disfarçadamente, o sobrinho e lhe entregou como presente fazendo-o jurar que nunca se separaria da toalha, independentemente do que acontecesse. E foi com os olhos molhados de lágrimas que se despediu do sobrinho que enxugou suas lágrimas na toalha.

No trem de ferro a pobre moça não conseguia segurar as lágrimas pela segunda desilusão amorosa em sua curta existência. Durante a viagem foi lembrando os bons momentos passados na casa do irmão. O primeiro contato com o sobrinho num baile de São João, quando dançaram algumas músicas. Ele era um pé de valsa e a fazia deslizar como se estivesse flutuando no ar. Suas mãos fortes e o contato com o seu corpo deixaram-na bastante excitada.  O primeiro encontro foi num milharal próximo da casa ao cair da tarde. Depois disso combinavam com o olhar os encontros furtivos atrás da casa depois que todos se recolhiam para dormir. Foram momentos felizes que a fizeram esquecer as desilusões com o seu primeiro relacionamento.

Bolívia voltou para a casa dos pais, mas caiu numa tristeza que fazia pena. Não saiu mais de casa e mal se alimentava. Foi definhando aos poucos. Seu sorriso alegre e cheio de vida foi substituído por um olhar triste e melancólico. Em poucos meses ficou praticamente pele e osso. Morreu sentada ao lado de uma janela que dava para avistar a porteira da fazenda, sempre esperando pelo seu amado que nunca apareceu.

Quando soube da morte da tia, Francisco desgostou-se e resolveu partir. Fez a mala de couro forrado, colocando a toalha de linho ao fundo e rumou para o sul em busca de trabalho, já que na fazenda do pai não via futuro, pois eram muitos filhos e os negócios não iam muito bem. Despediu-se da mãe na porta da casa e seu pai o acompanhou na carroça até a estação de trem. Na despedida apenas um aperto de mão. O pai não era dado a afetos e apenas lhe desejou boa sorte e juízo. Ele contava que desejava abraçar o pai, mas ele sempre se manteve distante. Durante a viagem não tirava a mala do seu lado com receio de que alguém pudesse pegá-la. Quando tinha oportunidade abria a mala e acariciava a toalha sentindo ainda o perfume da tia. Nunca usou a toalha para se enxugar, mas sempre a acariciava antes de dormir num gesto ritual como se fosse uma oração, coisa que não era do feitio dele, que nunca rezou ou gostava de igrejas. Foram muitas namoradas, conquistadas nos bailes em que animava tocando sua sanfona de oito baixos. Era sempre o centro das atenções das moças solteiras e também das mal casadas.

Francisco casou-se com uma moça de boa família, sobrinha de um fazendeiro no interior de São Paulo. Pensou que ela tinha posses e que assim poderia se arranjar na vida, mas ao descobrir que era apenas uma agregada, sem eira nem beira, tratou de fugir. Entretanto, como havia desonrado a jovem, ainda menor de idade, foi preso na estação de trem e obrigado a se casar. Dias após o casamento a jovem esposa viu a toalha e pediu-lhe satisfações. Colérico, ele ameaçou estrangulá-la caso tocasse novamente naquela toalha e deixou claro que ela o acompanharia até o final de sua vida.

A toalha ficou no fundo de um velho baú da família, mesmo depois da mudança para a capital. Um dia a filha mais velha, arrumando o móvel, viu a toalha e perguntou à mãe o que era aquilo. “Foi um velho amor do seu pai que ele não esqueceu e que ficou entre nós durante toda a nossa vida”. A jovem quis ouvir do próprio pai uma resposta sobre a toalha e arriscou a fazer a mesma pergunta que fez a mãe. O pai então respondeu:

- Ah! foi um presente de uma irmã do meu pai que faleceu há muito tempo.

- Mas pai por que não usamos a toalha?

- Não é para ser usada, mas guardada como lembrança e quero que me prometa que vai colocá-la sob minha cabeça quando eu morrer e não dirá nada a ninguém.

A jovem ficou assustada com o pedido do pai, contou-me o amigo do morto, mas resolveu guardar o segredo de um grande amor vivido por ele ainda solteiro e cumprir a promessa. Francisco viveu longos anos, criou todos os filhos e teve seus netos. Ainda no hospital, pouco antes de partir despediu-se da filha dizendo: “Amei quem não tive e mal aprendi a amar quem a mim amou. O primeiro deixou-me uma toalha que não usei e o segundo os filhos que sempre amei”.

Nisso o narrador interrompeu o causo e mostrou uma senhora que surgiu na porta do velório com uma sacola.  “Olhem é a filha que está chegando. Ela vai colocar a toalha sob a cabeça do pai conforme ele pediu". Eu e os demais ouvintes ficamos surpresos por presenciarmos ao vivo o final de uma história que estava sendo narrada. “Você não está brincando com a gente?” perguntou um dos ouvintes. “Pois observem e verão como não estou mentindo”, afirmou o velho narrador com toda a convicção.

A mulher aproximou-se do esquife, beijou o rosto do pai e levantou cuidadosamente sua cabeça para colocar a toalha. Arrumou cuidadosamente as flores e continuou ao seu lado chorando e orando. A história e a cena me impressionaram e pensei com meus botões se os velhos versos do Camões não seriam apropriados aquele momento: “Bom seria se não fosse, para tão grande amor, tão curta a vida”.