O Cão e a Coca

Por Fábio Marques | 28/04/2010 | Literatura

O Cão e a Coca

Fábio Marqs

Técnicas milenares ajudam a combater a insônia; A cada dia aumenta o número de pessoas que sofrem de insônia; Técnicas ajudam a combater esse mal que assola a humanidade. Essa é a parte boa da internet: se sentirmos uma simples dor de cabeça, saberemos que a cura estará lá, postada em algum blog, criado por alguma adolescente, que não sabe nem se conseguirá notas suficiente para passar de ano na escola.

No começo até que achava legal a idéia de dormir pouco. Trabalharia mais. Criaria estratégias, durante a noite, para subir um degrau na empresa. Teria mais chances de conquistar um cargo melhor e, assim, usufruir da glória que o capitalismo me promete, há muito tempo. Estava refletindo nisso desde as onze da noite, aliás, essa era uma das técnicas que aprendi na internet: refletir em alguma coisa prazerosa, a fim de relaxar a mente, e ter um sono tranqüilo. Acho que tinha alguma coisa errada nessas técnicas, porque já eram duas da madrugada, e ainda estava virando de um lado para o outro naquela cama amarela. Tudo estava do contrário. Estava esperto como um jovem à noite, e durante o dia ficava vagando como um zumbi fiscalizando aquela linha de montagem. Eu já estava na mira dos meus superiores. O que me salvava era o idioma brasileiro–japonês, quase imperceptível, deles: brasileiro burro, brasileiro porra, brasileiro burro. Estava perdendo o emprego por causa dessa desgraça.

Há muito tempo não tinha uma noite de sonodecente. Às vezes, a melhor solução era desistir de tentar dormir, ficando de olho pregado nas teias de aranha no teto, esperando os raios vermelhos do sol, adentrarem meu quarto pela janela. Pensando em janela, tive a idéia de abri-la, para arejar um pouco meu quarto abafado. Um vento quente, que só existe em Manaus, tomou conta de todo o espaço. Peguei um tamborete e fui até a janela. Fiquei olhando a cidade dormir.

Olhava como a Av. Brasil fica deserta a noite. De vez em quando passava um carro, uma moto, um galeroso. Comecei a calcular o tempo de intervalo entre cada carro que passava: entre o primeiro e o segundo houve uma demora de cinco minutos; o terceiro, três minutos; o quarto, vinte e cinco minutos; o quinto, vinte e quatro minutos. Aquilo já estava cansando-me. Não era para ter começado. Agora não conseguia mais parar.

Outra brisa adentrou bem mais fria. Ela entrou esfregando-se no meu rosto. Foi maravilhoso. Até porque não é toda hora, que um vento frio é soprado em Manaus. O cálculo daqueles intervalos e a brisa suave fizeram-me voltar para a cama — agora branca.

Ela estava mais macia; o travesseiro encaixava perfeitamente na minha nuca; A fronha estava com cheiro de Vinólia. O vento não parava de soprar. Vinha cada vez mais forte e mais frio. Era maravilhoso, uma maravilha, uma maravi... De repente, um latido ensurdecedor entrou pela janela. Droga! Aquele cachorro assustou-me na pior hora — eu falo a "pior hora" porque estava naquela fase, em que não estava dormindo, e não estava mais acordado. Com o susto, meu coração acelerou de uma maneira absurda.

Apesar de tudo, meu corpo ainda estava sonolento. Meu coração começava a relaxar. Olhei para a janela e fitei o céu negro sem nenhuma estrela...

Um, dois, três latidos. Parecia que aquele cão estava dentro do meu quarto. Cada latido era um susto. Corri até a janela e, sem pensar, fiz com que minha voz ecoasse pelo espaço negro da noite manaura: "cala a boca, cachorro leproso!".

Sentei no tamborete, pensando se ficar gritando no meio da noite, iria resolver a situação. Também não interessava, a minha esperança em ter algumas horas de sono, já não existia mais. Abri a geladeira, e ela estava lá. Ah! Uma Coquinha em uma garrafa de vidro. Não tem sabor melhor que esse. Parece que o alumínio da latinha e o plástico da outra garrafa tiram o sabor original. O vidro não. Com o vidro ela fica especial.

Os latidos continuavam.

O pior dos latidos são os intervalos entre um e outro. Nunca seguem uma linha uniforme. O tempo varia de poucos segundos para muitos minutos. O pior são os de muitos minutos, porque pensamos que ele não irá mais latir, e quando estamos pegando no sono, ele solta mais um latido maligno. Desgraçado!

Eu tinha que fazer alguma coisa para matar as horas. Nessa hora, lembrei de um grande pensador que filosofou sobre matar o tempo: "Matamos o tempo; o tempo nos enterra." Grande, Brás Cubas, esse sim era moral. Foi meu ídolo no ensino médio.

A Coca estava acabando. Eu tinha que pensar em alguma coisa. Aquilo estava ficando angustiante.

O cachorro começou a latir novamente, quando lembrei que o Cláudio se reunia toda sexta-feira durante a madrugada. Ele sempre me convidava para participar do grupo de amigos da Igreja. Eu sempre negava, ou então aceitava só para polemizar e quebrar o clima do grupo.

Era perfeito. Cláudio nunca me proibiria de participar, mesmo fazendo tantas vergonhas para ele em reuniões passadas. Nós já não éramos grandes amigos como antes. Depois de sua conversão ao evangelho, ele se afastou de mim, alegando que as trevas não se misturavam com a luz. Não entendi muito.

Entendi, mas preferiria acreditar que não havia entendido.

Peguei minha camisa preta, fui até o espelho e percebi que meu visual estava combinando: minhas olheiras estavam da cor da minha camisa. Peguei a Coca e desci as escadas. O apartamento, no qual se reuniam, ficava num condomínio do outro lado da Av. Brasil. Só era atravessar.

No final da avenida, a Coca havia acabado. Eu não podia jogar aquela garrafa de vidro em qualquer lugar. Continuei caminhando com ela na mão, quando um farol alto deixou-me desnorteado.

— A casa caiu, meu peixe — gritaram os guardinhas daquela viatura cansada — mão na parede, rapaz. Tu ta achando que eu estou de brincadeira, né?

"Brincadeira?" O susto que eles deram-me foi tão grande, que fiquei imóvel por alguns segundos.

—Por que ta assustado? Ta com o flagrante aí, né? — disse o guarda, metendo a mão em tudo que era bolso da minha calça.

Ele já estava ficando frustrado, percebendo que eu estava limpo.

­— Isso é hora de gente boa está andando pela rua? ­— sussurrou, finalizando a revista, amassando meus testículos com toda vagarosidade. Gemi de dor.

— E essa garrafa aí na tua mão? Tu ta a fim de dar uma gogozada em alguém, né? Olha! Vou aliviar dessa vez, mas da próxima não passa. Vaza da minha frente.

Quando saí correndo, tentei ler seu nome no uniforme, e antes de virar a cabeça, peguei um pescoção que minha vista embaçou. Eles entraram no carro sem conter os risos.

Continuei andando sem entender muito. Qualquer carro assustava- me agora. Tinha que me livrar daquela garrafa, para não levantar suspeita, e ser abordado novamente. Deixei-a num lugar escondido, já dentro do condomínio.

Conseguia ouvir o barulho das risadas do grupo. Estava perto.

A primeira pessoa que me avistou foi o Cláudio. Seu rosto ficou sem cor. A boca alternava os movimentos, sem saber se ria ou ficava sério.

— Gabriel, o que está fazendo aqui? — Sussurrou Cláudio, pegando-me pelo braço e levando-me para o canto.

— Como assim "o que estou fazendo aqui?" Eu fui tocado, e resolvi participar deste grupo gospel maravilhoso — disse eu, tentando conter o sorriso irônico.

— Gabriel, te conheço há muito tempo, e sei que você não está aqui por que foi "tocado" — disse Cláudio, balançando a cabeça negativamente — agora vai embora, porque estou com novos convertidos, e não quero que você estrague a nossa festa. Vai, vai, vai.

Nunca tinha sentido aquela sensação. Eu estava triste porque não tinha permissão para participar daquele grupo escroto. Há um tempo, Cláudio implorava para eu participar, agora estava quase me humilhando para ele deixar-me ficar algumas horas. Baixei a cabeça, não falei nada e me dirigi até a porta, pensando o que iria fazer até amanhecer.

— Cláudio, o jogo vai começar. Vem logo. Ah! Aproveita e chama teu amigo para jogar. Falta um para completar o time — disse um dos novos integrantes, que, com certeza, não me conhecia.

— Não, ele não pode. Está de saída, porque tem que dormir e trabalhar amanhã — disse Cláudio, criando uma mentira gospel.

— Cláudio tu nem sabe: amanhã é sábado, e não irei trabalhar.

As risadas tímidas espalharam-se pelo apartamento.

­— Gostei de ti. Você e sua ironia são perfeitos para o jogo — disse um deles — você vem para o meu time.

— Agora­! — Disse eu, empurrando o Cláudio com o ombro, e entrando com toda moral no apartamento.

Com todo mundo contra, Cláudio resolveu arriscar, deixando o jogo prosseguir. O jogo era o seguinte: duas equipes, nas quais havia quatro pessoas, tinham como finalidade contar a piada mais engraçada para, assim, pontuarem. Quanto mais divertida a estória, mais pontos acumulavam. Uma pessoa era escolhida pelos companheiros, para representar a equipe e ser o orador das piadas. Os outros podiam opinar sobre algum tema e, claro, rir desesperadamente, mesmo se a piada não fosse boa. Antes de começar, sem ninguém perceber, Cláudio dá-me um papel rabiscado: "Você pode participar, mas não seja o orador, não me decepcione." Olhei para ele, balançando a cabeça positivamente.

Eles começaram muito bem, contando duas piadas muito melhores que as da nossa equipe. No começo não estava importando-me em perder, porque só queria matar o tempo. A vantagem deles só aumentava. Nessa hora o orador da minha equipe, com uma cara muito triste, olhou para mim. No olhar dele, percebi que aquilo não era um simples jogo. Ele queria vencer.

Resolvi ajudar:

— Conta piada de Gay. Crente se amarra em piada de Gay — sussurrei em seu ouvido.

Ele olhou meio assustado e desacreditado para mim, mas resolveu contar. A idéia deu certo. As risadas demoraram quase um minuto para terminarem. Ele olhou para mim, como uma criança que agradece ao pai por ter lhe dado um brinquedo, e ao mesmo tempo já esperando outro. Por isso, comecei dizer mais e mais temas a ele. Nós estávamos quase empatando no placar. Cláudio olhava desconfiado para mim, não porque estávamos igualando o jogo, mas, percebendo que eu estava aprontando alguma. Enganado estava, só queria me divertir e, claro, matar o tempo.

As idéias já estavam acabando.

— Cara, ironiza a doutrina de outra Igreja, crente se amarra em falarmalde congregações diferentes — disse eu, já quase sem idéias.

O orador nem me questionava com o olhar, saia falando direto. E novamente, as risadas se espalharam pela sala, agora estávamos empatados. A grande questão era: como desempatar, já que minhas idéias haviam acabado, e as deles já não existiam há muito tempo. Certo silêncio tomou conta do ambiente. Ao meu lado havia um membro do meu grupo que não tinha somado em nada. Ficava calado tomando uma Coca de plástico. Olhei novamente para o Cláudio que fingia estar concentrado no jogo.

— Ontem li na internet, que existem mensagens subliminares do Cão no slogan da Coca — falou pela primeira vez o rapaz que estava ao meu lado — mas, quer saber? Não acreditei muito.

Cláudio parecia mais compenetrado no jogo. Finalmente ele esqueceu um pouco que eu estava ali. Fiquei feliz porque estava conquistando sua confiança paulatinamente. Eu estava muito concentrado, não ia estragar tudo.

— Carambola! Pior que é verdade — disse novamente o rapaz que estava ao meu lado, com o rosto quase sem sangue, virando o plástico do slogan ao contrário no qual formava, com os dois "C" do símbolo, um chifre em alguém sentado numa espécie de trono — O inimigo está em todos os lugares. Em todos!

— Tem como você me dar um gole, estou com um pouco de sede — disse eu, percebendo que só restava um pouco do, segundo ele, refrigerante do Cão.

— Até que eu poderia, mas essa situação me deixou nervoso e com a boca seca — respondeu, tomando o resto em apenas um gole.

— Bem, acho que o jogo acabou empatado — disse Cláudio, já levantando do sofá.

Eu estava satisfeito. O jogo terminava empatado, não tinha aprontado nenhuma e Cláudio voltaria a confiar em mim. Foi quando fiz uma coisa que não deveria ter feito: olhei para o nosso orador de piadas pela ultima vez. Seus olhos brilhavam de tristeza; sua testa engelhava querendo dizer-me algo. Ele não queria empatar, era como a derrota. Olhei para baixo tentando deixar as coisas como estavam. Não poderia estragar tudo. Estava perfeito. Cláudio voltaria a confiar em mim. Nosso amigo teria que aceitar o empate.

— Então, já que ninguém se manifesta, eu declaro o jogo empa... — Antes do Cláudio finalizar, eu disse algo que me arrependo até hoje: "espera!"

Eu não agüentei ver a cara do orador naquele estado, e resolvi contar uma ultima piada, que lembrei com esse conversa de Coca e Cão.

— Eu ainda tenho uma piada.

Os membros da minha equipe vibraram, porém Cláudio não acreditava que eu estava fazendo aquilo. "Eu posso contar ou não?" Perguntei sabendo qual era a resposta.

— Claro que pode! — disseram todos, formando uma voz.

Antes de começar senti alguém pegando no meu braço, olhei e espantei-me ao avistar o Cláudio: "Vai lá irmão, eu sei que você não veio aqui mal intencionado. Sei que você quer apenas se divertir. Desculpa por ter julgado você mal no início. Você foi tocado realmente. Eu confio em você", disse ele, com uma fisionomia serena.

Aquilo me deu mais força, e sabendo que à hora era aquela, comecei:

Certa vez, um bom homem morreu e foi para o Céu. Chegando lá, seu primeiro sentimento foi de alegria, já que agora iria viver num lugar tranqüilo por toda eternidade. Com o tempo, aquele marasmo de apenas ficar sentado nos bancos de ouro, observando as ruas de ouro no céu, estava lhe dando certa agonia. Ele resolve abrir um negócio próprio, para tornar suas eternas horas no Céu mais interessantes. Sabendo que o ponto inicial de um grande negócio, é pensar naquilo que ainda não foi pensado, ele teve uma grande idéia na qual iria trabalhar: vender cervejas. Isso era maravilhoso, já que ninguém, com certeza, havia pensado nisso.

Ele começou com pé direito, vendendo dez caixinhas de cerveja no primeiro dia. No segundo foi melhor ainda, conseguindo despachar nove grades. O terceiro superou os outros dias com a grande façanha de serem vendidas vinte grades de cerveja.

Aquilo o deixou alegre e ao mesmo tempo confuso, com o seguinte questionamento: espera aí! Se no Céu, que é frio, consigo vender tudo isso, imagina no Inferno. Imediatamente, ele se dirigiu a São Pedro, pedindo para abrir as portas do Céu, pois agora ele iria para o inferno, vender cerveja e ficar milionário. São Pedro então o fez, deixando bem claro: uma vez fora do Céu, sempre fora do Céu. Ele não hesitou em ir, já que o grande negócio está sempre acompanhado de grandes riscos.

O calor do Inferno era bem mais intenso do que haviam lhe falado. Um sentimento de arrependimento quis nascer no seu peito, mas ele foi mais forte, dando prosseguimento em seu plano. No primeiro dia ele vendeu cinco caixinhas, um número bem menor de sua primeira venda no Céu. Aquilo não o assustou: talvez fosse a falta de divulgação, pensou ele. No segundo dia, ele vendeu apenas três caixinhas; no quarto, uma caixinha; no quinto apenas uma garrafa.

Ele não estava entendendo nada: como pode? No Céu que é frio, era vendido muito, porque no Inferno ele não conseguia. Aquilo já estava o deixando agoniado, quando resolveu tirar satisfações: "Satanás, como pode? No Céu, eu conseguia vender dezenas de grades de cerveja, porque aqui no Inferno não consigo vender dez caixinhas".

Sorrindo, Satanás disse: "ah! Meu filho aqui ninguém bebe não, aqui todo mundo é crente".

Minhas risadas ecoaram pelo apartamento. Fui muito feliz em contar aquela piada naquele momento. Não conseguia parar de rir. Olhei para o orador da minha equipe, querendo comemorar nossa vitória, e percebi que ele não estava feliz, mas assustado. Parei de rir, tentando ouvir a risada dos outros. Não ouvi nada.

Cláudio não sabia se balançava a cabeça negativamente ou fazia uma fisionomia de não acreditar no que eu tinha acabado de fazer. Na verdade, após olhar bem, percebi que ele estava fazendo as duas coisas ao mesmo tempo. Ao meu lado, o rapaz do Cão e da Coca tentava dizer-me algo, mas sua decepção era tamanha, que estava sem palavras. Não me esqueço do seu olhar, conversando com seu silêncio, tentando dizer que minha piada tinha sido horrível. Foi assustador.

— Que desagradável — disse uma loura que fazia parte do grupo do Cláudio — sua piada foi horrível. Você se superou.

Essa loura é uma daquelas mulheres que passou a adolescência brincando com uma Barbie, sonhando em ter o corpo semelhante ao da boneca, sendo que na fase adulta, a única coisa que conseguiu foi uma barriga cheia de raios, os quais deslizam num monte de banhas, que dão uma luz especial em sua barriga branca, a qual combina, perfeitamente, com o cabelo todo quebrado de tanta química. Resumindo: Fracassada.

Eu sabia que ela estava esperando uma falha minha desde o início. Só porque sua vida não foi como planejou, ela ataca todo mundo? Seu marido sentindo que o clima estava esquentando, levantou e pediu para ela se acalmar. Quando olhei para o marido, desistir de revidar. Percebi que a vida dela não estava sendo fácil: uma mulher nova como ela, com um corpo parecendo um Maracujá, e com um marido que estava mais para um sapo. Realmente, as coisas não saíram como ela planejou. Torno a repetir: Fracassada.

— Você passou dos limites Gabriel — gritou Cláudio, mandando-me ir embora — e nunca mais me apareça por aqui, ta compreendido?

Desci as escadas do prédio meio triste, mas feliz por ter conseguido matar muito tempo. O céu não estava tão escuro. Raios vermelhos começavam a nascer no horizonte. A rua ainda estava tranqüila. Antes de atravessar a Av. Brasil, avistei a garrafa de Coca, que havia deixado antes de ir à casa do Cláudio. Ela estava lá, intacta. Peguei-a para jogar em um lugar mais seguro. Na verdade, não sabia onde jogá-la. Ela era de vidro e, muitas vezes, o vidro é bem perigoso.

Cheguei ao prédio no qual moro, e antes de entrar, ainda ouvi dois latidos. Não liguei, estava muito cansado, aliás, tão cansado que minha vista embaçou na hora.

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Balancei a cabeça para melhorar a vista, e quando percebi já havia subido as escadas, e estava na frente da porta número sete meia meia, meu apartamento. Deitei na cama e tentei refletir no que havia acontecido, mas não conseguia. Lembrava de apenas fragmentos: a casa caiu meu peixe, cala a boca cachorro leproso, brasileiro porra, vaza da minha frente, Gabriel, o que você está fazendo aqui? A gente mata o tempo, mas o tempo nos enterra. Enterra-nos. Enterra...

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"Senhor Gabriel!" Ouvi gritos do lado de fora, alguém estava chamando-me. Levantei da cama, e senti meu corpo bem diferente. Minhas pernas me obedeciam de maneira surpreendente. Meus músculos estavam relaxados. Até minha visão estava melhor. "Senhor Gabriel Lúcio!" Estava tentando entender porque estava sentindo-me tão bem.

O sol já havia nascido por completo. Os raios vermelhos, antes agradáveis, tinham se transformado em raios violetas ultra desagradáveis, os quais entravam em meu apartamento queimando tudo. Era dia em Manaus.

"Senhor Gabriel Lúcio!" Eu já havia me esquecido que tinha alguém do lado de fora. Resolvi atender, mas antes peguei o celular, e verifiquei se havia alguma chamada não atendida, já sabendo que não tinha. Há muito tempo ninguém me ligava. Olhei a hora no celular e me assustei: já eram oito e meia, e isso significa que eu havia dormido. Finalmente tinha conseguido dormir.

A felicidade começava a explodir no meu peito.

Abri a porta, e vi o carteiro com a mão na cintura, quase, sem paciência. Na hora perguntei-me: "porque ele não havia deixado as correspondências em baixo da porta?" Percebendo meu questionamento, mesmo sem eu dizer uma palavra, ele tira uma caneta do bolso da camisa e diz: "é necessária sua assinatura". Sua feição começava a mudar, ficando um pouco mais triste. Estendeu a mão dando-me o envelope e dizendo: "é da EMTU". Na hora quase ri, não da situação, mas de sua fisionomia triste. Será que ele havia recebido treinamento para ficar triste e, assim, deixar-nos mais conformados? Creio que não, porque sua atuação estava péssima.

Eu era um homem que, mesmo sem ter condições de comprar um carro, recebia multas. Tudo isso foi resultado de ações precipitadas: tinha uma namorada, e estava tremendamente apaixonado. Soube que ela estava com uma boa entrada para comprar um carro, mas não tinha renda fixa. Cedi meu nome para ela comprar o tão almejado carro, pensando que nosso amor fosse sobreviver por muito tempo, e me enganei; nosso amor morreu junto com meu nome, o qual acompanhava os milhares, agora, sepultados no SPC e SERASA — Resultado de parcelas não pagas do carro.

Assinei e fiquei observando o carteiro distanciando-se, agora, com sua feição normal. Olhei para cima, e vi o céu extremamente azul. Estava convidando-me para um passeio. Entrei rindo: "me convidando para dar um passeio?" "que diabo estava acontecendo comigo?".

Vesti uma roupa esporte e fui caminhar. Realmente, o dia estava maravilhoso, e eu muito diferente, uma vez que estava vindo em minha mente palavras que nunca mais tinha pensado como "maravilhoso." Creio que foram às três horas de sono bem dormidas.

— Bom dia ­­— disse eu à Dona Lúcida, minha vizinha que, de vez em quando, conversava comigo.

Ela não respondeu. Estava muito assustada. Atravessou para o outro lado da rua. Achei muito estranho.

Ignorei a situação, estava me sentindo muito bem, nada poderia atrapalhar. Continuei caminhando pelo condomínio. Respirava fundo, aproveitando a sensação de sentir a máquina corporal um pouco descansada, um pouco relaxada.

Dobrei a esquina e vi alguns garotos olhando algo que estava no chão, coberto com papelão e moscas. Os garotos correrão ao me ver. Quando recomecei minha caminhada, tropecei no papelão. Certa curiosidade tomou conta na hora, mas preferi deixar as coisas como estavam. Não podia perder tempo, olhando o que estava debaixo. Tinha que curtir o sábado ensolarado. Continuei andando até o velho campo de barro vermelho, no qual jogava na adolescência.

— Gabriel, bicho — disse, interrompendo minha caminhada, um antigo amigo, cujo nome não lembrava mais ­—onde foi que tu se meteu, meu irmão. Cara, tu sumiu. Olha, hoje tem pelada pra gente, chega aí mais tarde.

Balancei a cabeça, confirmando. E quando estava seguindo meu caminho, ele disse:

— Ah! Cuidado, mano. Não anda por aí sozinho não, porque ta rolando um boato, que tem um psicopata sociomatando geral, brother.

— Socioma... O quê? ­— respondi, não entendo quase nada do que ele havia dito.

— Foi isso aí mesmo que tu entendeu.

Ele foi embora, abrindo seu olho com o dedo indicador, alertando-me do, suposto, perigo. Depois disso, não tive mais ânimo para continuar caminhando. Resolvi voltar. Caminhava olhando o azul diferente do asfalto. Ouvi gritos. Os garotos novamente correram ao me ver. Olhei para o papelão que cobria algo e, com essa história de sociomatança, não resisti à curiosidade. Tirei o papelão, e vi algo grotesco.

Realmente, alguém perigoso estava pelas redondezas. Os pensamentos cortavam como flechas minha cabeça: que animal poderia ter feito isso? Que monstro! Só um doente poderia matar com tamanha frieza e tranqüilidade. Fiquei ali, olhando por horas. O cheiro começava a incomodar.

Continuei, por algum tempo, olhando as moscas e o sangue no asfalto. Meus pensamentos acalmaram-se. O calor do sol estava insuportável. Tinha que ir para casa, mas antes de seguir meu caminho, olhei pela ultima vez aquele cenário assustador, o qual ficou enraizado em meu cérebro por anos — várias moscas se deliciando no sangue e no corpo daquele cão, que estava com uma garrafa de Coca quebrada e cravada em seu focinho.

Fabio_mk2@hotmail.com.br