O CANTO DA TRAÍÇÃO
Por Paulo Valença | 16/06/2009 | Contos1
D. Josefa para o marido, Seu Joaquim:
- Eu ando preocupada com o nosso filho, Joaquim.
Ele fita o rosto moreno, magro, com as rugas do tempo mais acentuadas e mantém-se calado.
Estão no terracinho da casa também pequena, de duas salas, dois quartos, a cozinha, o banheiro e a área atrás com o tanque de lavar a louça e também roupa. A tarde vai morrendo, para logo a noite se apossar de tudo, agasalhar as residências daqui do morro. O vento circula agradável, acariciando-lhes as fisionomias tensas ante o problema exposto pela mulher.
- O Maurício é ainda um adolescente e andando com essa turminha da rua embaixo...
Seu Joaquim então fala:
- Já cansei de aconselhar ele. Só mesmo partindo pra ignorância!
Ela discorda, pois conhece o companheiro, sabe o quanto ele se transforma quando zangado:
- Mas, Joaquim vamos ver se não chega a tanto!
A voz do homem se eleva, mudada, no prenúncio da contrariedade:
- Josefa o Maurício não aceita conselhos e antes que entre numa "fria", se envolva com o "negócio" de drogas, é melhor eu exemplar ele, pra ver se aprende, se desvia do caminho do mal!
Sim, Joaquim tem razão. O perigo do envolvimento do filho no mundo do tráfico é uma ameaça, um chamado...
- Se ele trabalhasse Joaquim, tivesse em que se ocupar, já que não liga pra o estudo...
- Maurício não quer nada com a vida! Na idade dele eu já trabalhava na fábrica, me acordava de madrugada. Eu nunca soube o que é moleza!
Silenciam. Entregues à ameaça que ronda o filho. Ao futuro que lhes trará dores, o desgosto de... Não, melhor desviar o pensamento. E a mulher retorna a falar:
- Hoje quando ele chegar, você tenha mais uma conversa séria com ele. Mostre-lhe os exemplos dos outros rapazinhos que caíram no "canto da sereia"...
Joaquim então sorrindo:
- Melhor dizer no "canto da traição", porque não existe futuro no caminho da droga.
As primeiras luzes acendem-se nas residências circunvizinhas. Um cão ladra. Uma moto em velocidade corta a rua embaixo. De outra casa um rádio toca o "brega" do momento. A noite nasce, enquanto o casal sem mais nada falar, novamente se entrega ao mundo íntimo, de reflexões angustiantes.
2
- Maurício é você entregar a mercadoria e o cara lhe pagar na hora.
- Mas...
O sujeito mulato sorri, entendendo-o:
- Esfria cara. É só você se prevenir, não dar "vacilo". Como é, aceita ou não aceita?.
Então o braço longo se estende e a mão magra, trêmula recebe o pacote da outra mão grande.
Agora, mais um faz parte da "Organização" que cresce, domina o morro de gente humilde, necessitando de vidas e esperanças melhores, bem melhores...
O corpo esguio, alto do rapazinho se afasta, com o pacote na mão.E o "passador" segue em direção oposta. Cumpriu sua missão. Agora é esperar o que o dia seguinte lhe trará como recompensa.
Acende o cigarro e devagar descendo a escadaria estreita de numerosos degraus, perde-se na noite que em seu seio agasalha os segredos e as angústias humanas.
Numa residência próxima, um cachorro late, pedindo a liberdade.
A liberdade.
Paulo Valença é contista, romancista, com prêmios nacionais, membro de várias instituições literárias, presente na internet, por meio de sites, e reside em Recife/PE.