O canto da sereia
Por Julia Nascimento | 07/10/2016 | EducaçãoEm um capítulo da Odisseia, Homero narra o encontro de Ulisses com as sereias, seres míticos que entoariam cantos capazes de enfeitiçar os marinheiros que, então, perderiam o controle dos navios jogando-os nas rochas. O esperto Ulisses determinou a seus marujos que tapassem os ouvidos com cera de abelhas mas nem ele, o “herói de mil estratagemas”, que derrotou Troia com um cavalo de madeira, resistiu à curiosidade: não tapou os ouvidos e amarrou-se ao mastro do navio para ouvir a melodia mortal sem sucumbir. Ouviu, sobreviveu e chegou anos depois à sua Ítaca.
O canto mágico de nossa era está inteiro dentro da Internet, suas redes sociais e seus recursos maravilhosos que facilitam a vida, as atividades profissionais e de estudo, relacionamentos, amizades, curiosidades, obtenção e troca de informações, músicas, imagens. O mundo parece caber dentro da rede, porém é preciso lembrar que a rede não é o mundo, apenas reflete parte dele. Rede em informática é um sistema interligado de computadores e periféricos destinado a comunicação e compartilhamento de dados; um dos outros significados é tecido de malha larga usado para capturar peixes, animais, aves. A despeito da utilidade dos vários tipos de rede, temos que estar atentos à hipótese de que também possam constituir-se em armadilhas.
Assim como os marujos perdiam a noção de tempo e espaço, muitos dos usuários, principalmente os mais jovens, estão sujeitos ao contato com pessoas mal intencionadas, escondidas atrás de identidades falsas. São comuns os casos de pedófilos que se apresentam como crianças ou pré-adolescentes para se aproximar de suas vítimas. Ocorrem golpes financeiros, venda de mercadorias inexistentes, estelionatos vários.
Uma das mais trágicas ocorrências é o recrutamento de militantes; os movimentos fundamentalistas islâmicos buscam nas redes sociais jovens que se mostram simpatizantes da “causa”, fazem promessas, divulgam palavras de ordem e em muitos casos conseguem aumentar seu contingente sem maior esforço. O fascínio que esses grupos radicais exercem é um tipo de hipnose semelhante à das sereias, pessoas insatisfeitas com suas vidas e com seu mundo, geralmente sem maiores perspectivas, deixam-se encantar pela possibilidade de se tornarem protagonistas de alguma coisa que normalmente não avaliam bem o que seja, apenas que parece exótico, contra o “sistema” e violento, não percebendo que, no limite, a violência se voltará contra elas mesmas.
Nenhum país está livre deste tipo de aliciamento, no mundo virtual não há fronteiras definidas, e tudo parece mágico, bonito e fácil, embora a realidade possa trazer grandes desgostos, com resultado conhecido: mortes, destruição, vidas acabadas. A rede é fascinante, e muito perigosa, embora traga também conhecimento para aqueles que sabem utilizá-la.
Recentemente foi lançado um jogo eletrônico que atingiu sucesso mundial fulminante; usando o GPS e a câmera de smartphones e outros dispositivos, o objetivo é “capturar” monstrinhos virtuais, os Pokémons, e a seguir treiná-los, travar batalhas com outros jogadores e outras possibilidades. Estima-se que o aplicativo tenha sido baixado mais de 500 milhões de vezes. À parte a enorme diferença tecnológica, o princípio é o mesmo das coleções de figurinhas, e com muito de seu aspecto lúdico e de sociabilização, porém é perturbador o aspecto da concentração total dos jogadores em seus equipamentos, já houve alguns casos de pessoas mergulhando em lagos, topando com postes e paredes, sendo atropeladas, tendo seus aparelhos roubados; aparentemente mais uma substituição do mundo real pelo virtual.
Para os jovens este sonho é fascinante, mas aprendizagem exige estar desperto para a vida.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino superior do Brasil – UniBrasil.