O BRASIL E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Por suely fassio | 06/05/2011 | Sociedade

O BRASIL E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Temos acompanhado várias discussões a respeito da retirada de símbolos religiosos de alguns prédios públicos, sob o pretexto de que o Brasil declarou-se um estado laico, via do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.
O estado secular, diversamente do estado teocrático (onde existe uma religião oficial) é uma nação, ou país, que se declara oficialmente neutro relativamente às religiões e suas questões.
Diversamente do estado que se declara ateu, não reconhecendo qualquer prática de natureza religiosa, e até mesmo impedindo, o estado laico deve tratar igualmente seus cidadãos, independentemente de suas escolhas de ordem religiosa, não podendo estabelecer preferências entre os praticantes das diversas religiões nele existentes, evitando, dessa forma, que alguma delas exerça controle ou possa interferir em questões políticas.
A nossa Carta Magna estabelece, em seu artigo 1º, que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo por fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e, entre seus objetivos fundamentais, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Só isso bastaria para que todos vivessem em paz, neste País livre e, até então, completamente alheio às contendas de cunho religioso.
Infelizmente, quando se declarou leigo, começaram as discussões, porque, socialmente, a religião católica, até então com maior número de adeptos, cedeu espaço aos evangélicos, e alguns ramos destes cristãos não se contentaram com o lugar que a sociedade lhes deu. Mais que a liberdade de culto, querem interferir na vida política do País, pela imposição de suas idéias e, para tanto, elegendo representantes junto ao poder legislativo.
Se a questão toda se resumisse na retirada de crucifixos das repartições públicas, estaríamos bem.
No entanto, o que se tem visto é a disseminação do preconceito, que o Brasil não pode e nem deve admitir.
O Supremo Tribunal Federal foi chamado a decidir sobre a questão da união estável para os homossexuais, para valer como família, para os efeitos legais, tendo em vista que o projeto de lei a ela relativo vem sendo sistematicamente criticado pelos cristãos, sob o pretexto de que a bíblia condena esse tipo de união.
Mas, sendo o Brasil um estado laico, a bíblia não deve ter qualquer importância para a nossa sociedade. Podemos e devemos respeitar aqueles que nela fundamentam sua fé, mas não temos o direito de transigir quando essas crenças afrontam a nossa Lei Maior.
Os direitos fundamentais foram inseridos no diploma constitucional exatamente porque visam proteger o homem, como indivíduo, o que nos permite concluir definitivamente que o bem protegido é anterior e superior à norma legal.
Neste sentido a lição do sempre autorizado Prof. VICENTE GRECCO FILHO:
"Esse valor supremo é o valor da pessoa humana, em função do qual todo o direito gravita e que constitui sua própria razão de ser. Mesmo os chamados direitos sociais existem para a proteção do homem como indivíduo, e, ainda que aparentemente, em dado momento histórico, se abdiquem de prerrogativas individuais imediatas, o direito somente será justo se nessa abdicação se encontrar o propósito de preservação de bem jurídico-social mais amplo que venha a repercutir no homem como indivíduo" (1)
Se a Constituição Federal desse estado laico chamado Brasil tem por objetivo fundamental o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, não será a crença de uma parcela da população que irá impedir que tais desígnios se cumpram, sob pena de admitirmos que o fundamentalismo, causador de tantos males, venha destruir a nossa cultura de povo harmonioso, bom e amante da liberdade.
A bíblia ?como eles afirmam- é a palavra de Deus, enquanto a Constituição é a lei do País.
Para serem coerentes com aquilo que pregam, não podem esquecer a lição estabelecida naquele livro: a Deus, o que é de Deus, e a Cesar, o que é de Cesar.
Legislar para todos é de Cesar, aqui entendido como o Estado de Direito, laico, chamado Brasil e, portanto, devem responder civil e criminalmente aqueles que, por motivos religiosos, praticarem atos atentatórios contra a Lei Maior e contra os direitos dos demais brasileiros que desejam viver em paz, numa nação livre, justa e soberana.
Sabiamente, o Supremo Tribunal Federal, na condição de Corte Constitucional, decidiu pelo reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo e direitos dela decorrentes, demonstrando ao mundo que o Brasil tem capacidade de resolver definitivamente tal questão e observando as normas de Direito Internacional Público, no campo em que contemplam os crimes contra a humanidade.
A respeito do assunto, podemos citar trecho de excelente artigo, que bem pode esclarecer a importância da decisão do STF, in verbis:
"O Tribunal Penal Internacional também pode exercer sua competência sobre os crimes contra a humanidade, conforme disposto no artigo 7º do Estatuto de Roma, sendo considerados crimes contra a humanidade: homicídio; extermínio; escravidão; deportação; aprisionamento com violação das normas do direito internacional; torturas; estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, violência sexual; perseguição de grupos ou comunidades por motivos políticos, raciais, culturais, religiosos; desaparecimento forçado de uma ou mais pessoas; apartheid; atos inumanos que provocam graves sofrimentos." (2) (o grifo é nosso)
Uma decisão que viesse a legitimar a perseguição a uma comunidade por motivo religioso, que se admite apenas pelo amor ao debate, representaria, com absoluta certeza, a ponta do iceberg da existência em nosso País, de um desses tipos de crime contra a humanidade.
O STF agiu com sabedoria. Parabéns Brasil !
NOTAS
1. VICENTE GRECCO FILHO, Tutela Constitucional das Liberdades, Ed. Saraiva, 1989, pg. 10
2. NAYANE DO CARMO MARTINS, ROBERTA GONTIJO BRANDT e THAÍS MARTINS DA SILVA http://www.webartigosos.com/articles/61461/1/Crimes-contra-a-humanidade-e-Internacionalizacao-do-Direito--Tribunais-Penais-Internacionais-sua-constitucionalidade-em-face-a-soberania-nacional/pagina1.html#ixzz1LUA21oDg