O Brasil da (in)justiça, dos equívocos, das desigualdades...

Por Walace Ferreira | 26/04/2013 | Resumos

O Brasil da (in)justiça, dos equívocos, das desigualdades - Análise da obra “O equívoco”, de João Uchôa Cavalcanti Netto

 Walace Ferreira

Atualmente é Professor de Sociologia no CAP-UERJ; Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP)/UERJ; mestre em Sociologia pelo IUPERJ; bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UERJ. Graduando em Direito na UERJ. Ex-Professor Substituto do Colégio Pedro II; Ex-Professor Substituto da Faculdade de Ciências Sociais da UERJ.

E-mail: walaceuerj@yahoo.com.br.

Introdução

Qualquer proposta racional referente a se pensar na arte da justiça remete-nos de imediato a uma percepção de que nos encontramos presos numa jaula de ferro alicerçada sobre leis que visam estabelecer a ordem numa teia societária entrelaçada por correntes responsáveis por atribuir sentido à existência de cada indivíduo dentro desde grande Leviatã hobesiano criado com a finalidade de garantir o equilíbrio entre seres naturalmente dominados por paixões. Tomando pelo âmbito do Estado, ser justo representaria, segundo essa lógica, cumprir a lei, a qual encontra-se em nossa sociedade corporificada e institucionalizada por este corpo espiritual chamado justiça. A leitura de O equívoco - Contos Bandidos, de João Uchôa Cavalcanti Netto, nos permite refletir a respeito das várias relações inter-humanas edificadas sob o signo de sociedade, especialmente a nação brasileira, esculpida ao longo de uma história inconseqüente calcada numa severa colonização baseada sobretudo na sede pela exploração. Dessa forma, emoldurou-se por aqui um cenário triste e preocupante, cuja cicatriz mais dolorosa consiste na profunda desigualdade sócio-econômica de um país que esbanja riqueza ao mesmo tempo que corrói-se pela ainda existência de bolsões de pobreza - mesmo no século XXI.

1. A reflexão sobre o livro

O autor de O Equívoco inspirou-se na sua experiência em anos de atividades jurídicas para tecer contos que misturam abstração e concretude, permitindo-nos refletir de modo reprovável às maneiras privatizadas de se utilizar a lei, quando estas beneficiam terceiros em vez de apoiarem a construção de  uma sociedade em que um verdadeiro Estado Democrático de Direito não seja apenas uma utopia. A historiografia brasileira revela que desde a época da colonização a justiça já beneficiava uma elite agrária cujo poder econômico tão logo passou a ser também o poder político e social. O conto número dois mostra um garoto negro e pobre que, ao ser preso pela polícia, em vez de receber o castigo adequado nos moldes da legislação penal, acabaria sendo torturado caso não fosse a intervenção popular,  fazendo-nos indagar sobre como a cor e a condição financeira permanecem suscitando efeitos discriminatórios por parte de uma sociedade ainda preconceituosa e hipócrita. Alguns cientistas políticos têm afirmado que, no exemplo brasileiro, o Estado Democrático de Direito só existe em sua plenitude no plano jurídico-formal. A justiça continua de certa forma junto de uma elite política que aproxima-se muito da elite econômica e social do país, produzindo um status quo em que as leis ou as suas interpretações acabam beneficiando aos membros dessas classes. Isso explica o porquê  de uma legislação aparentemente democrática ressaltar no terreno prático uma realidade jurídica que normalmente beneficia aos ricos e nada de extra-legal oferece aos pobres e aos miseráveis. O famoso estudo do antropólogo Roberto Da Matta sobre o ritual do “Você sabe com quem está falando?” já revelava como que no Brasil moderno certas formas de  status (sobretudo o econômico e o político) permitem uma pessoalização privilegiada da pessoa diante da lei, enquanto um sujeito simples (sem prestígio e pobre) aparece diante desta mesma lei como um mero indivíduo para quem nada se pode fazer além  de se impor a seca e cega sansão penalizativa. Dois contos expressam bem essa questão. O de número quatro, que traz a história de um delegado decidido a ocultar diversos culpados de corrupção em seu inquérito, visto serem os envolvidos pessoas de grande poderio econômico com os quais poderia barganhar, em troca, apoio financeiro para a sua campanha eleitoral; e o conto de número 29, que espelha o drama de um cidadão que pede à justiça para não pagar a última das cem prestações de uma casa contratada junto a um banco, alegando desemprego, velhice e doença - o resultado nada mais é que o frio decreto da lei: “Direito e Caridade não entrosam”, e o cidadão é expulso da tal casa, e seus bens leiloados para arcar com todo o ônus do processo. Nesse sentido, a cidadania no Brasil tem se revelado um conceito muito mais presente nas estampas da teoria do que assentada no solo da realidade. Os pobres continuam recebendo um tratamento indiferente ou  agressivo no país. Eis o exemplo da tortura, presente mesmo em tempos democráticos inspirados na carta dos Direitos humanos. A ditadura, por exemplo,  produziu inúmeras vítimas, marcando a memória e a alma dos seus perseguidos com as lembranças dos seus porões até os dias de hoje. Ademais, essa prática ainda permanece viva nos métodos investigativos de parte da nossa polícia, muitas vezes exercendo ela própria o papel que o Estado nacional concebera ao judiciário. Quem não se lembra de Sandro Nascimento, seqüestrador do ônibus 174 e seu trágico fim no escuro de um carro policial? Ou pior: Quem esqueceu-se da tragédia do Carandiru? Um verdadeiro extermínio de pobres! O conto 06, em que um rapaz é preso e torturado a fim de confessar o homicídio de um casal de idosos é apenas uma ficção denunciadora de um cotidiano sombrio, cruel e não menos real, sendo a sua prisão o reflexo de um estereótipo de marginalidade fortemente crescido em nosso meio cultural-social: pobre, ex-detento, ocupante de funções desprezíveis, e possivelmente negro.

A realidade desigual da sociedade em que vivemos tem sido analisada em suas conseqüências por diversos estudiosos das mais diversas áreas do saber. E João Uchôa faz sua contribuição de modo irônico e de forma magnífica. O conto 20, por exemplo, mostra um funcionário que decide furtar bilhões da empresa em que trabalhava, requerendo para si o direito constituinte de se ter uma vida em que o trabalho não seja o imperativo de seu cotidiano, mas também o lazer e a dignidade sejam elementos de grande presença em sua vida, o que lhe parecia distante caso seguisse o burocrático e lento caminho da promoção oferecida pela instituição em que atuava.  Este conto desfere um incisivo golpe no coração da desigualdade estabelecida pelas sociedades regidas pelo capital, e indaga sobre o por quê de o diretor da empresa - representante da burguesia - poder esbanjar lucros excessivamente altos ao passo que seus funcionários operariados se eternizam nas funções assalariadas, engendrando a já conceituada mais-valia marxiana para os bolsos dos seus patrões. Outro efeito desta sociedade moderna ou pós-moderna, como queiram, não menos delirante, entretanto, são as atitudes estranhas e esquizofrênicas emitidas pelos seus atores sociais. São exemplos os contos de número 30, em que um menino de rua se aflige com o amor recebido por um casal que lhe adota e lhe dá um lar, se revoltando e fugindo novamente para a rua, até que assassina um casal de namorados durante um assalto, tudo por ter visto neles a projeção de um desconhecido amor que recebera daqueles que lhe adotara no passado; e o conto 12, em que um juiz se aterroriza ao condenar um réu fisicamente a ele semelhante, se desesperando quando este sai da cadeia, suspeitando que o bandido está lhe perseguindo,  adoentando neuroticamente por causa disto.

O Direito na sociedade brasileira parece, então, refletir um tecido social esgarçado pela desigualdade, local onde a justiça tem se espelhado tendenciosa no que tange à busca pela eqüidade e pela igual aplicação junto aos sujeitos sociais, produzindo uma situação perversa e uma população amedrontada, corroborada pela presença da miséria urbana, fruto de processos emergidos a partir do neoliberalismo e da globalização bem como de políticas internas tradicionais de benefício das elites.  Pensando a miséria urbana nos últimos trinta anos, lembramos que o período militar poderia tê-la reduzido, caso crescesse economicamente em paralelo com o combate à pobreza, porém preferiu apostar na danosa tática do “primeiro cresce o bolo para depois dividi-lo”, que apenas beneficiou os amigos do regime. A redemocratização, porém, e os frustrados planos de combate à inflação inicialmente agravaram o caos, de modo que apenas a partir do plano real, e o seu sucesso no combate inflacionário, retomamos as esperanças quanto a redução da miséria. Contudo a estrutura iníqua desta sociedade tem se mostrado mais forte do que pensavam os estudiosos do problema, os quais assistem apreensivamente a dramatização de uma séries de conflitos na sociedade urbana atual, tais como a favelização desordenada, a insegurança pública, saúde e educação precárias, lágrimas de fome, gritos de desesperança ... a miséria do homem ... tudo corroborando para a composição de uma face social ferida pela desigualdade de oportunidades e pela apropriação injusta das riquezas produzidas nesta terra de alguns. Enquanto os profissionais do Direito não se voltarem para uma atuação fundada em princípios equânimes e justos em relação a interpretação, a constituição e a transformação das leis e enquanto cada cidadão deste país não tomar para si a posição de agente de direitos e deveres, continuaremos reproduzindo um Brasil alicerçado no equivoco da desigualdade, da violência, da corrupção e da miséria, além de alimentar o nascedouro de meninas e meninas descrentes do futuro e desprovidos do maior  elo que ainda pode nos unir: o espírito de nação.

Bibliografia:

CAVALCANTI NETTO, João Uchôa.O equívoco. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 2005.

DA MATTA, Roberto.Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou uma matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2002.