O Bom Rapaz

Por José Ricardo Malaquias Matos | 11/03/2011 | Arte

O bom rapaz


Dorival andou até o ponto de táxi. Sentia-se apreensivo por sua momentânea situação financeira. Era fim de mês e restava-lhe na carteira uma única cédula de dez reais. Enquanto se acomodava no banco dianteiro do carro de praça, observou o taxímetro, que já cobrava de saída um terço do seu numerário.
? Para onde, doutor? ? Perguntou-lhe o jovem motorista.
? Leve-me ao "Bradesco" mais próximo, por favor.
? Tem o da Pituba e o do Iguatemi? As distâncias são relativamente iguais.
? Sendo assim, vamos ao da Pituba. É mais vazio. Minha preocupação é dinheiro. Só disponho de dez reais na carteira e já estourei o limite do cheque especial. Se não depositaram meu salário, estou arrochado! Destes dez reais, ainda espero que sobre, pelo menos, o do ônibus de volta pra casa, caso aconteça o pior.
Explicou ao taxista, demonstrando fidalguia. Dorival é um senhor de meia idade, 1,7m, calvo, um tanto atarracado, e portava um tom acinzentado no olhar, mostrando para um bom observador, seu momentâneo descontentamento financeiro.
? Oito dão. ? Pressupôs o valor da corrida o taxista ? Ponha o cinto, por favor.
Enquanto cumpria a ordem, Dorival tinha fé que o salário estivesse creditado. Lembrou-se que em sua casa, com a despensa quase vazia, a amante e companheira desdobrava-se para preparar uma moqueca de carne com ovos, feita com as sobras do lombo do dia anterior.
? Reconheço o senhor. ? Afirmou o jovem motorista.
? Não duvido, ando muito de táxi. Sofro de labirintite, o que entre outros inconvenientes, impede-me de dirigir.
? O senhor não se chama Dorival?
Dorival acenou afirmativamente com a cabeça e completou:
? Foi uma homenagem que meu pai resolveu prestar ao grande cantor e compositor Dorival Caymmi. Como papai dizia: ? "Caymmi é o único cantor brasileiro que transmite toda a manha do baiano ao cantar..."
? Pois é, doutor. Fique o senhor sabendo, que se hoje estou livre, devo isso ao senhor.
? A mim?
? Sim, ao senhor. Estou notando que o senhor não se lembra de mim.
? Honestamente? Não me lembro. Deve ser a idade, na minha idade a memória vai se esvaindo.
? Quando eu contar minha estória, tenho certeza que o senhor se lembrará de mim. Meu nome é Antônio Carlos, também foi uma homenagem que meu pai prestou, só que ao Senador ACM, "O Cabeça Branca".
? Seu pai é "Carlista!?"
? Não só meu pai. Toda a minha família é eleitora de Antônio Carlos Magalhães. Porém, não era sobre esse assunto que eu queria lhe falar. Quero é lembrar ao doutor, de onde é que nós nos conhecemos.
? Tudo bem, Carlos. Sou todo ouvidos.
Em frente, um enorme engarrafamento impõe lentidão ao trajeto a ser percorrido. Novamente, Dorival observou o taxímetro que registrava: quatro reais e cinqüenta centavos.
? O senhor não mora no condomínio Costa do Atlântico? No STIEP?
? Atualmente, não. Morei lá. Mas mudei-me a alguns meses.
? Isso não vem ao caso. Como estava dizendo, eu tinha ido ao bar que fica dentro do condomínio onde o senhor morava...
? Sei. O "Bar de Nonato!"
? Aquele mesmo. O senhor estava sentado. Bebia cerveja junto ao balcão. Naquela época, eu trabalhava como segurança: carro forte, segurança de banco, essas coisas. Eu tinha ido até lá porque estava seguindo minha mulher. Eu suspeitava que ela tinha ido ao encontro do amante. Então, parei no "Bar de Nonato" para beber umas pingas, e tomar coragem pra matar a vadia, e ao sacana que estava "faturando" ela. Foi aí, que o senhor notou que eu estava armado, nervoso e bebendo. Então, o senhor puxou assunto e chamou-me para tomarmos cerveja. Lembro-me como se fosse hoje. O senhor disse que não valia a pena eu me sujar, ser preso, correr o risco de ser usado como mulher no presídio, só por causa de uma vingança burra... Na hora, o senhor parecia Jesus Cristo falando. Depois, quando eu já estava calmo, o senhor tomou a arma e entregou ao dono do bar. O senhor se lembra de mim agora?
Um arrepio subiu pela espinha de Dorival, por um momento ele empalideceu, mas instintivamente, seus pensamentos se voltaram mais uma vez para o taxímetro, e olhando de relance e disfarçadamente, pôde notar que o marcador registrava cinco reais e cinqüenta centavos.
? Agora, lembrei-me, Carlos. E fico feliz por ter sido útil. O propósito de se tornar um uxoricida é burrice, é... Carlos interrompe o discurso de Dorival.
? Posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal, doutor?
? Claro! Pode perguntar.
? O doutor já foi chifrado?
? É uma pergunta pessoal, sem dúvida, e um tanto quanto complexa. Para lhe ser sincero, nunca me preocupei muito com este tipo de assunto. Vejo o adultério por uma ótica muito pessoal... O adultério... como eu poderia lhe explicar... o adultério é mais um dogma religioso. Não é algo de maior gravidade. Talvez, seja de maior gravidez. ? Zombou Dorival na resposta ? É que sou um cínico agnóstico, um seguidor do socratismo, sou a favor do hedonismo...
? Ta falando grego, doutor... Não entendi patavina.
? Grego não. Sobre gregos... Vou ser chulo... Para mim, é melhor ser um corno feliz do que um onanista triste. Entendeu?
? O doutor está de brincadeira, não está? Quer dizer que o doutor, além de não acreditar em Deus, ainda por cima, não se importa de ser corno?
? Primeiro: Deus é quem não acredita em mim. ? Dorival, novamente, falou ironizando ? E, como já lhe falei, sou incrédulo. Quanto ao adultério... meu pensamento é simples; mas fica complicado para lhe explicar...
? Tente, doutor. Talvez eu entenda.
? O fato é que o adultério não conseguiria induzir-me a sofrimentos maiores. Não aceito que me atribuam responsabilidades por atos praticados por outras pessoas. Se minha mulher for buscar prazeres com outros homens, é escolha dela, não minha. A ação será dela, não minha. Por força de conseqüência, nenhum argumento poderia ser-me atribuído para responsabilizar-me por quaisquer atitudes dela. Acredito ardentemente que eu sou livre até pra perdoá-la por tais atos, caso queira. Não me sinto devedor de satisfações a ninguém... Exceto, ao imposto de renda... Fui claro!
? O senhor não me respondeu a pergunta... ? Interrompeu Carlos, ansioso, por não ter obtido a resposta desejada.
? Certo! Você quer saber se já fui corno? Provavelmente sim, se não física, com certeza espiritualmente. Mas, se já fui, de fato, chifrado carnalmente, até então, não fiquei sabendo. Respondi agora a sua pergunta?
? Respondeu. E é por isso que o doutor acredita ser loucura matar uma adultera. O senhor não sabe a dor, o desespero que dá. É como se alguém lhe tirasse o chão sob os pés... ? a voz de Carlos saia arrastada, tremula, em falsete. Dorival interferiu interrompendo a narrativa do taxista.
? Calma, meu jovem! Mesmo que realmente isso lhe tenha acontecido, é passado. Não vale a pena você ficar remoendo esta dor. Se isso ocorreu, não pode mais ser mudado, e é tolice guardar sofrimentos. Perdoe o deslize de sua ex-mulher. O perdão é uma dádiva e só nos faz bem.
? Doutor Dorival, se o senhor soubesse o ódio que esta lembrança me provoca. Eu conheci Verônica ainda menina lá no meu interior. Namorávamos desde que éramos crianças. Na época, eu tinha doze anos, ela tinha onze, um ano a menos que eu. Quando fiz dezoito, papai foi pedir a mão dela ao compadre. Casamos na Igreja de papel passado e tudo. Até lua de mel nós tivemos. Foi meu tio quem pagou. Ficamos em Canavieiras por uma semana. Quando voltamos da lua de mel, ela ficou morando na casa de papai, e eu vim para "Bahia" para trabalhar com meu tio. ? Eu dava um duro danado. Todo o dinheiro ganho, eu juntava. Centavo por centavo. Eu não bebia, eu não fumava, eu só trabalhava. Eu fazia tudo para economizar. Trabalhei duro, de sol a sol, até que consegui comprar uma casa-de-alvenaria, lá em Pirajá. Mobiliei a casa toda: Armários, cama de casal, geladeira, fogão, televisor a cores, comprei até um DVD para aquela puta. E fui fiel a ela, doutor! Mesmo quando ela estava morando longe de mim, eu fui fiel...
? Calma!, meu caro. Você está destemperado. Acalme-se ? Dorival olhou o taxímetro. Piscava em vermelho: nove reais e cinqüenta centavos.
? Carlos, por favor, encoste o carro. O dinheiro que disponho, não vai dar para cobrir o custo da corrida. O restante do trajeto, faço a pé.
? Não. Nada disso! Fique tranqüilo, doutor! ? Como estava lhe contando, depois de tudo pronto, mandei o dinheiro e ela veio para Salvador. Foi o tempo mais feliz de minha vida. Eu ficava rezando pelo final do expediente só para correr pra casa. Vivíamos juntos. Eu só saía com ela, e ela, só saía comigo. Foi assim até a cachorra da Sueli fazer amizade com minha Verônica. Foi aquela "piranha" que botou Verônica a perder. Foi depois que Verônica conheceu a tal da Sueli, que começou a usar saia curta, biquíni enfiado na bunda, e a pintar à cara e a boca.
? Carlos! Isso não significa que ela lhe traiu. Isso faz parte da vaidade feminina. É comum a todas as mulheres...
? Até pode ser, doutor. Mas ela comprou um bocado de calcinhas de renda, e tinha uma delas, com um coração vermelho costurado bem na testa do xibiu. Outra coisa, doutor. Ela passou a raspar os pentelhos... E o pior, é que quando ela ficava em casa ou saia comigo, só usava os calçolões de algodão que ela trouxe do interior, mas, quando ia sair sozinha, era com as calcinhas de renda que saía...
? Será que ela lhe traia mesmo, Carlos? Todo o cuidado é pouco, meu jovem. As aparências às vezes enganam.
? Doutor!, ela mudou... Antes, ela só queria ficar em casa cuidando das nossas coisas. Depois desta tal de Sueli, é que ela apareceu com a conversa de trabalhar fora de casa. Foi a puta da Sueli que arranjou as malditas faxinas para Verônica fazer. Além do mais, um amigo me disse, que o porteiro do prédio onde ela fazia as faxinas disse a ele, que ela estava de caso com um coroa lá do edifício, lá no ex-condomínio do senhor.
? Será que esse cara era mesmo seu amigo, Carlos? Ou ele tinha inveja de vocês? Existe muita gente maldosa neste mundo.
? Foi verdade, Dorival! Ela me chifrou mesmo!
? Você perguntou a ela?
? Perguntei, mas ela negou-se a falar. É Claro! Ela me contou que só foi ao prédio receber o dinheiro das faxinas. Mas, eu sei que ela estava mentindo. Tanto é, que depois que eu saí para trabalhar, ela pegou as roupas dela e sumiu. Acho que foi morar com a tal da Sueli... É bem provável que o doutor tenha conhecido. O senhor conheceu?
? Dificilmente! Eu não tinha amizades por lá, muito menos, com uma menina. Foram poucas às vezes em que fui ao Bar de Nonato. Eu freqüentava os bares da orla, de preferência, os da Pituba.
? Ah!, doutor. Se o senhor tivesse conhecido, o senhor saberia do que eu estou falando. ? O jovem fala com ternura e ódio da ex-mulher ? O senhor não iria esquecê-la nunca. Aquela vagabunda era linda, era não! Ela é MA-RA-VI-LHO-SA! Morena cor de jambo. Os olhos grandes, da cor de caramelo, os cabelos lisos e sedosos com aquele tom de cobre velho. Cor natural. Vai até o rego da bunda. O sorriso é de um branco que magoa às vistas da gente. Um corpo, doutor! Coloca no chinelo qualquer uma daquelas dançarinas da televisão. E como era fogosa na cama... Vige Maria!
? Você tem procurado por ela, Carlos?
? Para quê, Dorival? Para ser visto como corno? Eu sou homem, doutor. E homem que é homem, "tira o sebo do pau e come". ? Carlos cala-se por instantes buscando conter as emoções. Seus olhos ficam avermelhados e deixam escorrer pequenas lágrimas. Dorival guardou silêncio. Quando Carlos voltou a falar, a voz saiu rouca, arrastada, chorosa.
? Ufa! Naquele dia, doutor, ela só não morreu porque o senhor, em nome de Jesus, me impediu. ? Carlos dá uma pausa, respira fundo e recomeça ? E este favor vou lhe dever até que Deus me busque.
? Você se separou legalmente, Carlos?
? Ainda não. Meu tio é que está providenciando a tal da separação. Ele me disse, que ela não quer nada de mim. E graças a Deus, nós não tivemos filhos para colocarmos no meio.
? É verdade. Em uma separação quem mais sofre são as crianças. Mesmo assim, é melhor separar-se do que manter um relacionamento ruim. Você é jovem, tem toda a vida pela frente, e ela, com sorte, pode até encontrar algum outro homem.
? Eu não quero nem pensar nisso, doutor. ? falou Carlos com raiva. ? Por mim ela fica por aí: "pulando de pau em pau que nem galinha em poleiro".
Dorival, ao ver que o taxímetro ultrapassou a cifra dos doze reais, exclamou!
? Carlos, este taxímetro está querendo me ferrar! Como você está sabendo, só disponho de míseros dez reais, e se o dinheiro não foi creditado, só irei poder lhe pagar oito reais. Ainda bem que estamos chegando. ? Em poucos minutos, Carlos estacionava o táxi em frente ao banco. Antes que Dorival exprimisse qualquer pensamento, foi antecipando:
? Calma!, Dorival! Vou esperá-lo aqui o tempo necessário para que o senhor possa resolver o seu problema. Vá tranqüilo. Se o dinheiro estiver depositado, tudo bem. Caso contrário, levo o senhor de volta e depois acertamos.
O dinheiro fora depositado, porém, estava bloqueado para saque. Dorival retornou ao táxi aborrecido e acabrunhado. Ao chegar, notou que o taxímetro estava desligado. Dorival entrou no carro com ar de derrota e tentou negociar:
? Carlos. Amanhã acertaremos o debito.
? Para onde, Dorival?
? Vou voltar para casa. Fica perto do ponto onde eu lhe apanhei.
? O senhor, é Bahia ou Vitória? ? questionou Carlos, mudando o rumo da prosa.
? Bahia...
Carlos e Dorival retornaram conversando sobre o Esporte Clube Bahia, e a sua atual fase na segunda divisão do campeonato brasileiro. Ao chegarem em frente ao edifício de Dorival, ele tentou uma nova negociação.
? Obrigado, Carlos. Anote o endereço de meu escritório. Amanhã eu te pago a diferença...
Dorival tentou entregar os dez reais a Carlos. Carlos insistiu na recusa.
? Esqueça, Dorival! Até qualquer outro dia...
? Então, muito obrigado, você é um Anjo. Até mais, Carlos.
Ao chegar em casa. Sua linda morena da cor de jambo, demonstrando ansiedade, perguntou-lhe:
? O dinheiro saiu, amor?
? Foi depositado, mas está bloqueado para saque. Só posso retirá-lo amanhã. Passei o maior sufoco, porém, seu Deus enviou-me um Anjo.
? E desde quando você acredita em Anjo, amor?
? Desde hoje! Querida... desde hoje! ? A propósito. À noite, quero que você use aquela calcinha de renda.
? Qual delas?
? Aquela que tem um coração vermelho...