O BIODIREITO E A MUDANÇA DE PARADIGMA FRENTE AOS NOVOS CONCEITOS DE FAMÍLIA

Por Raíssa Daniela Pompeu Oliveira | 31/08/2017 | Direito

 

O BIODIREITO E A MUDANÇA DE PARADIGMA FRENTE AOS NOVOS CONCEITOS DE FAMÍLIA: a Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina e o direito dos casais lésbicos recorrerem à reprodução assistida.[1]

 

Adriana Teixeira Mendes Coutinho[2]

Raíssa Daniela Pompeu Oliveira[3]

Anna Valéria Cabral Marques [4]

 

Sumário: 1 Introdução. 2 A mudança de paradigma no que tange aos novos conceitos de família. 2.1 O reflexo do Biodireito e da Bioética no direito das famílias homoafetivas. 3 As técnicas de reprodução assistida frente ao que dispõe a Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina. 3.1 O uso da reprodução assistida por casais lésbicos e o desejo de constituírem família.4 Considerações finais. Referências.

 

RESUMO

 

A proposta do presente artigo científico é analisar de forma interdisciplinar para além da norma jurídica, a mudança de paradigma frente aos novos conceitos de família sob a ótica do Biodireito e da Bioética, levando em consideração seus princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, especificamente no que tange a possibilidade de os casais homossexuais femininos recorrerem às técnicas de reprodução assistida. Essa novidade foi proporcionada pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina. A análise é pautada nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, bem como nos princípios que regem o direito de família como o da liberdade de construir uma comunhão de vida familiar, principalmente em relação às famílias homoafetivas. Também será ressaltado o importante papel da jurisprudência no Direito pátrio que demonstra essa quebra de paradigma no que tange ao conceito de família, uma vez que apesar de existirem Resoluções do Conselho Federal de Medicina e ainda Enunciados do Conselho Nacional de Justiça, ainda não há uma lei consolidada que enfrente a questão de forma específica, fato que evidencia uma lacuna no Direito que deve ser preenchida para que sejam efetivamente alcançados os objetivos constitucionais.

 

 

Palavras-chave: Paradigma. Bioética. Biodireito. Famílias-homoafetivas.

1 INTRODUÇÃO

 

A ideia tradicional de família vem sofrendo mudanças ao longo dos anos. É crescente o número de casais homossexuais, sejam femininos ou masculinos ambos desejam ter seus filhos e construir uma família. Hoje, esse sonho já é possível de ser concretizado em função das técnicas de reprodução assistida, que passam a ser cada vez mais procuradas pelos casais lésbicos e fazem disso um verdadeiro projeto de vida, ou seja, a possibilidade daquele filho ser fruto das duas de uma maneira não convencional, passa a ser frequente.

É importante ressaltar, que vivemos em um Estado Democrático de Direito, que possui como uns de seus alicerces os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.  A compreensão da operatividade e da dimensão deste princípio é uma base para fazer um enfrentamento jurídico das questões relacionadas ao Biodireito e a Bioética nas relações familiares homoafetivas. Os temas que envolvem o Biodireito geram discussões jurídicas bastante interessantes e pertinentes. Neste sentido, a Resolução 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina ao possibilitar o uso das técnicas de reprodução assistida aos casais homoafetivos, representa um avanço no que diz respeito aos direitos e uma inovação para os desejam constituir uma família.

Dessa forma, as lésbicas optam pela fertilização in vitro para que o óvulo de uma seja implantado no útero da outra, para que de alguma forma elas se sintam mães daquela criança, no entanto, a parceira que dá à luz não é a mãe biológica, mas a mãe gestacional, tratando-se juridicamente de uma família monoparental. Vale ressaltar que, “é preciso ter em mente que o direito à constituição da família é um direito fundamental, para que a pessoa concretize sua dignidade”. Por conseguinte, esse tema também gera discussões bastante enriquecedoras sobre a questão da filiação, tais como o registro da criança em nome das duas mães, a dupla maternidade e a possibilidade de procriarem sem a violação de sua orientação sexual, e também quanto à questão do preconceito ainda tão existente em nossa sociedade.

Logo, é relevante destacar que, consequentemente, surgem dilemas envolvendo a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais que devem alcançar a todos. Portanto, a escolha do tema se torna pertinente, tendo em vista a importância de se analisar as transformações no conceito de família vivida pela sociedade bem como o reconhecimento das famílias homoafetivas, frente à possibilidade de casamento e união estável e agora com a Resolução 2.013/2013, a oportunidade dos casais homossexuais utilizarem as técnicas de reprodução assistida.

O interesse das autoras quanto à pesquisa tem como base a importância do tema para a atualidade levando em consideração a quebra de paradigma e a importância da discussão do Biodireito, bem como da Bioética no que tange as famílias homoafetivas, especialmente aos casais lésbicos e seu sonho de ter filhos. A pesquisa propõe ainda fazer um estudo da resolução do Conselho Federal de Medicina º 2013/2013, no que concerne a força normativa e a efetividade aos casos concretos e cada vez mais comuns no Brasil. Portanto, o debate interdisciplinar se encaixa perfeitamente ao propósito.

Para tanto, o primeiro capítulo do desenvolvimento abordará a questão da mudança de paradigma frente aos novos conceitos de família, bem como os reflexos proporcionados pelo Biodireito e pela Bioética nas relações familiares homoafetivas, especialmente em relação aos casais lésbicos.

 

2 A MUDANÇA DE PARADIGMA FRENTE AOS NOVOS CONCEITOS DE FAMÍLIA

 

Em primeiro lugar é de suma importância pontuar que a família “é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social” (GONÇALVES, 2013, p.17).

A passagem da Constituição Federal, para o centro do sistema jurídico, reflete as transformações ocorridas no século XX no qual a ideologia do constitucionalismo democrático saiu como vencedora em detrimento de outros projetos autoritários tais como o socialismo e o fundamentalismo religioso, que colocavam-se no centro do sistema. Portanto, o constitucionalismo democrático condensou algumas das maiores promessas da modernidade: como os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, a justiça material a tolerância e a própria felicidade (BARROSO, 2013).

Tais princípios como o da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da não intervenção na liberdade, da solidariedade familiar, dentre outros que atualmente regem o Direito de Família, não só estruturam o ordenamento como também geram consequências concretas e geram profundas mudanças na forma de se pensar a família brasileira. Como muito bem pontuado pela ministra Nancy Andrighi (apud TARTUCE, 2015, p.24):

A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto nas relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas do mesmo sexo, sejam entre homem e mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre seus integrantes.

 

Nesse mesmo sentido, Maria Berenice Dias pontua que (2015, p.36):

 

O direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora-elitista da época das codificações do século passado. Em face da nova tábua de valores da Constituição Federal, ocorreu a universalização e a humanização do direito das famílias, que provocou um câmbio de paradigmas.

 

Diante desse contexto de constitucionalização do Direito Civil, o Direito de Família se beneficiou de forma bastante significativa com essa visão mais “aberta, pluralista e tolerante de vida que reconhece como legítimo diferentes projetos existenciais” (BARROSO, 2013).

Inclusive, as novas formas de família, tendo em vista que agora o conceito não se limita somente às ditas tradicionais, formadas por homem, mulher e filhos, ou seja, aqueles que conforme os ideais conservadores teriam capacidade de reproduzir. Nessa linha de raciocínio Paulo Lôbo (apud DIAS, 2015, p.272):

Conforme Paulo Lobo, na Constituição atual não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorria com as Constituições anteriores. Com isso está sob a tutela constitucional "a família ", ou seja, qualquer família. E conclui de modo enfático: a interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. A referência constitucional é norma de inclusão, que não permite deixar ao desabrigo do conceito de família - que dispõe de um conceito plural - a entidade familiar homoafetiva. E, na inexistência de regra restritiva, é de ser reconhecida a união estável homoafetiva.

 

Vale ressaltar que a sociedade aceitava somente a família decorrente do casamento, somente o reconhecimento social dos vínculos afetivos sem o selo de oficialidade dado pelo Estado fizeram as relações extramatrimoniais, como a união estável, ingressarem no mundo jurídico e isso muito se deve à jurisprudência e passou a integrar o Livro de Direito de Família. Todavia, esqueceu-se de regulamentar as famílias monoparentais e nada traz sobre as famílias homoafetivas (DIAS,2015, p. 34).

A mudança começou no ano de 1999 quando a justiça gaúcha definiu a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas e foi no ano de 2001 que uma decisão do Rio Grande do Sul reconheceu pela primeira vez a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. E foi no ano de 2011 que o STF reconheceu a união estável homoafetiva (DIAS, 2015, p,272-276).

A expressão que melhor atende a essa nova perspectiva, a esse novo âmbito de proteção, livre de qualquer discriminação, bem como a que melhor atende as multifacetadas formações de família é “direito das famílias”. No plural, pois remete ao pluralismo e a aceitação destes novos projetos existenciais (DIAS, 2015, p.29). 

Portanto, de fato, a constitucionalização do Direito Civil, que consequentemente ocasionou esta mudança de paradigma frente ao conceito de família, proporcionou benefícios para o Direito das Famílias, principalmente para as famílias homoafetivas, que não possuíam reconhecimento jurídico, e isso é decorrente de um pensamento conservador e arcaico que está cada vez mais sendo abandonado pela sociedade e pelo Direito.

 

2.1 O reflexo do Biodireito e da Bioética no Direito das Famílias Homoafetivas

        

Hoje, com todas essas alterações estruturais e históricas podemos afirmar que há um novo Direito de Família. Com esse novo dimensionamento, é importante “reconhecer a eficácia imediata e horizontal dos direitos fundamentais, a horizontalização das normas que protegem as pessoas que devem ser aplicadas nas relações entre particulares e entes privados” (SARLET apud TARTUCE, 2015, p.05).

Logo, a análise do Direito de Família hoje deve ser feita do ponto de vista da tolerância, do afeto da ética, da valorização das pessoas e de sua dignidade, além do solidarismo social e da igualdade constitucional, não apenas formal, mas também material. (TARTUCE, 2015, p.05).

Nesse sentido, a Bioética objetiva, através dos princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça tratar de questões ecológicas que dizem respeito à sobrevivência da humanidade abrangendo temas polêmicos como início e fim da vida, experiência com seres humanos, reprodução assistida dentre outros. Já o Biodireito, visa regular estas condutas hoje tão presentes em nossa realidade (MORAES; PEIXOTO, 2012).

Partindo deste pressuposto, Moraes e Peixoto afirmam que os direitos fundamentais (2012):

Desempenham, direta ou indiretamente, papel relevante quando nas problemáticas relacionadas ao biodireito. Nem todos os direitos fundamentais estão previstos expressamente na Constituição Federal de 1988, sendo tarefa de todo inócua buscar estabelecer um rol taxativo de direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Conforme o art. 5º, § 2º da Constituição Federal de 1988 “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Pode-se observar que o legislador constitucional expressamente admitiu a possibilidade de outros direitos além daqueles postos na Constituição. Alguns dos direitos fundamentais que ganham relevo e estão diretamente relacionados à Bioética e ao biodireito, funcionando como parâmetros a ambos, são os direitos fundamentais a liberdade de pesquisa e à liberdade de consciência. (GRIFO NOSSO).

 

No eu tange às famílias homoafetivas a discussão interdisciplinar entre o Direito e a Bioética é bastante importante, pois nossa Constituição prevê o princípio da igualdade, veda qualquer discriminação ou preconceito por qualquer motivo, seja sexo, religião, orientação sexual e outros. Logo a sociedade deve ser fraterna e pluralista e estes casais também tem direito de recorrer às técnicas da reprodução assistida para concretizarem seu projeto de ter filhos (DIAS, 2015, p.272).

Neste novo cenário, as famílias homoafetivas devem ter seus direitos assegurados, e com base no planejamento familiar e também no princípio constitucional da paternidade responsável, tendo em vista que com tais técnicas ocorre uma ampliação da família com a possibilidade de gestação de seus filhos, na qual deve ser sempre assegurada a proteção integral e o seu melhor interesse. (CHENSO; FERRARI, [s/d]).

Inclusive, há também discussão quanto ao registro da criança e a dupla maternidade, tendo em vista que, frequentemente, é entendido eu a doadora do óvulo é que deve ser considerada a mãe biológica da criança na qual as duas tiveram participação. Já há jurisprudência no sentido de reconhecimento desta dupla maternidade. Tal decisão ocorreu na 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na qual duas mulheres viviam em união estável reconhecida por escritura pública e tiveram um filho mediante inseminação artificial heteróloga, o relator em seu voto muito bem pontuou que:

Não proclamar tal pretensão corresponderia a uma usurpação principiológica da dignidade da pessoa humana e da cidadania (artigo 1º, incisos II e III, CF/88), e dos direitos fundamentais à igualdade (artigo 5º, caput e inciso I, CF/88), liberdade, intimidade (artigo 5º, X, CF/88), proibição de discriminação (artigo 3º, inciso IV, CF/88), ao direito de se ter filhos e planejá-los de maneira responsável (artigos 5º, caput e 226, parágrafo 7º, da CF c/c artigo 2º da Lei nº 9.263/96) e, por fim, da própria matriz estruturante do Estado Republicano de Direito: a democracia.

 

Diante destas novidades, é possível analisar que técnicas auxiliam na constituição das famílias homoafetivas. E neste contexto, é possível a análise do uso de tais instrumentos pela Bioética, que consequentemente gera uma discussão no âmbito do Biodireito, que visa justamente a regulação destas condutas presentes na sociedade, inclusive nos direitos que devem ser assegurados a tais famílias, bem como o reconhecimento dos deveres oriundos do poder familiar e da paternidade responsável. (CHENSO; FERRARI, [s/d]).

3 AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA FRENTE AO QUE DISPÕE A RESOLUÇÃO 2013/2013 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

 

A reprodução assistida pode ser conceituada como “o conjunto de técnicas laboratoriais que visa obter uma gestação substituindo ou facilitando uma etapa deficiente no processo reprodutivo” (BADALOTTI). Seguindo esta definição, é importante evidenciar que a inseminação artificial é dividida em duas formas: a homóloga e heteróloga. Dias diferencia ambas afirmando que:

Na inseminação homóloga, o material genético pertence ao par. É utilizada nas situações em que o casal possui fertilidade, mas não é capaz de provocar a fecundação por meio do ato sexual. Na inseminação heteróloga, o esperma é doado por terceira pessoa. É utilizado nos casos de esterilidade do marido. Tendo havido prévia autorização, também se estabelece a presunção pater est (CC 1.597, V), ou seja, como o cônjuge concordou de modo expresso com o uso da inseminação artificial, assume a condição de pai do filho que venha a nascer (DIAS, 2015, p. 295).

 

A depender da técnica aplicada, a fecundação poderá ocorrer in vivo ou in vitro. Torna-se conveniente, todavia, especificar quanto aos procedimentos, já que a fecundação sempre será natural, é considerado artificial o método para se chegar à fecundação. Tem-se então a fertilização in vitro que “é a fecundação de um óvulo em laboratório, a união dos elementos masculino e feminino de reprodução”. A partir de certo tempo, surge o embrião que será transferido para o útero e assim prosseguir a gestação (MEIRELLES, 2000, p.18 apud SILVA, 2011, p. 13).

A Resolução 2.013, de maio de 2013, do Conselho Federal de Medicina, pontua que são pacientes das técnicas de RA:

1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre a mesma, de acordo com a legislação vigente.

2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico.

 

O principal objetivo da Resolução 2013/13 do Conselho Federal de Medicina, inicialmente, fora de suprir a lacuna legislativa e estabelecer os parâmetros quanto a reprodução assistida no território pátrio. Apesar de não ter caráter normativo, se fez necessária a alteração de diretrizes a partir do reconhecimento da união estável entre casais homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal, conferindo os devidos direitos a esses casais, demonstrando a necessidade de edição e o surgimento de novas diretrizes (CUNHA; DOMINGOS, 2013).

 

Esta, revogou a Resolução 1957/2010, que por sua vez substituiu a Resolução 1358/1992, estas normas tratavam de questões éticas a respeito do tema no que tange a questões práticas com objetivo de orientar os médicos que atuavam nesta área (TARTUCE, 2014).

Com o advento dessa resolução os casais lésbicos podem recorrer às técnicas de reprodução assistida para gerar seus filhos, de forma que ambas tenham participação no processo. Esse é um marco muito importante, pois há pouco tempo essa possibilidade nem era cogitada, tendo em vista o preconceito e a visão conservadora do legislador e da sociedade. Isto também é reflexo de uma quebra de paradigmas em relação a visão tradicional de família, uma vez que como bem pontua Judith Costa (2000):

O Direito desenvolve-se na História e, por isso, um de seus papéis é o de mediar a dialética que por vezes resta estabelecida entre a tradição e a ruptura, entre os processos de continuidade e os de descontinuidade social. Seu papel não é, pois, o de cercear o desenvolvimento científico mas, justamente, o de traçar aquelas exigências mínimas que assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e como tal portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados.

 

De fato a reprodução assistida representou um grande avanço para a ciência, não só para os casais heterosexuais impossibilitados de ter filhos, como pôde tornar realidade o sonho de muitos casais homoafetivos de constituir família, especificamente, aos casais lésbicos abordados neste trabalho. Contudo, é notável que ainda há preconceito em relação à essa organização familiar formada por duas mães. Pontua Dias (2009, p. 45) que “em virtude do preconceito, tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito”.

Destaca-se ainda que, a reprodução humana assistida nestes casos “será sempre heteróloga, pois haverá sempre um terceiro estranho à relação, o doador, e em casais femininos há a doação de um óvulo de uma e cessão do útero da outra parceira” (CHENSO; FERRARI, [s/d]).

 

3.1 O uso da reprodução assistida por casais lésbicos e o desejo de constituírem família

 

A Constituição Federal elenca como princípios basilares o da dignidade da pessoa humana, expresso no art. 1º, inciso III, bem como os princípios da igualdade e da isonomia que norteiam o sistema jurídico. Por serem dotados de relevância princípios da igualdade e da liberdade estão consagrados no preâmbulo da Carta de 88, maior norma do ordenamento. Assim, esta ao conceder proteção a todos, não estabelece critérios de distinção, uma vez que a ideia é vedar as discriminações existentes, sejam estas por motivo de raça, origem, idade ou sexo (DIAS, 2009).

O artigo 5º da Carta Constitucional, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, deixa claro: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O mesmo dispositivo elenca, de modo expresso, o direito à liberdade e igualdade. No entanto, sabe-se que aquilo que ocorre na prática é diferente, “enquanto houver segmentos-alvo da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado”, não se vive em um Estado Democrático de Direito (DIAS, 2009, 43).

Segundo Maria Berenice Dias (2015, apud TARTUCE):

Não há restrição alguma nem pode haver qualquer obstáculo legal para impedir o uso de tais práticas. Entende a última doutrinadora que em situações tais deve-se considerar que a criança tem dois pais ou duas mães, pois, caso contrário, haverá preconceito. Tal posicionamento segue a linha de pensamento de que a união homoafetiva constitui uma entidade familiar, o que vem sendo confirmado pelos Tribunais Superiores nacionais (ver Informativo n. 625 do STF sobre a união homoafetiva; e Informativo n. 486 do STJ sobre o casamento homoafetivo).

 

Neste mesmo sentido, também é interessante citar uma decisão do STJ de 2012, sobre a possibilidade de adoção unilateral quando apenas uma das companheiras homoafetivas faz uso das técnicas de RA heteróloga, acórdão este publicado no Informativo 513 da Corte (TARTUCE, 2015):

Direito civil. Adoção. Concessão de adoção unilateral de menor fruto de inseminação artificial heteróloga à companheira da mãe biológica da adotanda. A adoção unilateral prevista no art. 41, § 1.º, do ECA pode ser concedida à companheira da mãe biológica da adotanda, para que ambas as companheiras passem a ostentar a condição de mães, na hipótese em que a menor tenha sido fruto de inseminação artificial heteróloga, com doador desconhecido, previamente planejada pelo casal no âmbito de união estável homoafetiva, presente, ademais, a anuência da mãe biológica, desde que inexista prejuízo para a adotanda. O STF decidiu ser plena a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas, o que trouxe, como consequência, a extensão automática das prerrogativas já outorgadas aos companheiros da união estável tradicional àqueles que vivenciem uma união 817/1350 estável homoafetiva. Assim, se a adoção unilateral de menor é possível ao extrato heterossexual da população, também o é à fração homossexual da sociedade. Devese advertir, contudo, que o pedido de adoção se submete à norma-princípio fixada no art. 43 do ECA, segundo a qual ‘a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando’. Nesse contexto, estudos feitos no âmbito da Psicologia afirmam que pesquisas têm demonstrado que os filhos de pais ou mães homossexuais não apresentam comprometimento e problemas em seu desenvolvimento psicossocial quando comparados com filhos de pais e mães heterossexuais. Dessa forma, a referida adoção somente se mostra possível no caso de inexistir prejuízo para a adotanda. Além do mais, a possibilidade jurídica e a conveniência do deferimento do pedido de adoção unilateral devem considerar a evidente necessidade de aumentar, e não de restringir, a base daqueles que desejem adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que, longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um lar” (STJ, REsp 1.281.093/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.12.2012). (Grifo nosso).

 

O fato é que diante destas garantias constitucionais se torna impositiva a inclusão de todos, sem exceção e discriminação para o manto da tutela jurídica, uma vez que “a constitucionalização da família implica assegurar proteção ao indivíduo em suas estruturas de convívio, independentemente de sua orientação sexual” (DIAS, 2015, p.272).

Nesta perspectiva é coerente que:

Se existem outros meios para procriar, diversos do meio natural, que são eticamente consideráveis e aceitáveis e utilizados por pessoas heterossexuais, não haveria porque negar à um homossexual, que é um cidadão, sujeito de direitos, tal benefício. Tal negação seria como uma punição por causa da sua orientação sexual (SILVA, 2011, p. 35).

 

Diante disso, os princípios mais importantes que regem as relações familiares são a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade. Sendo assim, o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como um estruturante destas relações, tendo em vista que na família patriarcal somente o chefe da família era dotado de direitos e a mulher e os filhos eram submissos a isso. Hoje a situação é diferente, deve-se zelar pelo equilíbrio e pleno desenvolvimento da dignidade de todos os membros da família, sem distinção e isso não é apenas dever do Estado, mas de todos os membros da comunidade familiar (LOBO, 1999).

O princípio da liberdade está relacionado com a autonomia de constituição e o livre poder de escolha, neste sentido, ressalta-se que é de suma importância para a constituição das famílias homoafetivas, especialmente no que tange aos casais lésbicos, uma vez que elas terão liberdade para agir, administrar seu patrimônio e educar seus filhos como qualquer outro casal. Logo, a igualdade formal e material também é importante, pois entre elas também haverá paridade de direitos, entre elas e em relação aos seus filhos. (LOBO, 1999).

Desse modo, diante do princípio da liberdade de constituir uma comunhão de vida familiar, é plenamente possível que os casais lésbicos, que desejam a concretização do sonho de ter filhos, recorrerem às técnicas de reprodução assistida e não deve ocorrer nenhuma restrição de pessoa jurídica de direito público ou privado como bem pontua o artigo 1513 do Código Civil (GONÇALVES, 2013, p.25).

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O presente trabalho preocupou-se em analisar sob a perspectiva do Biodireito e da Bioética, os novos conceitos de família frente à quebra de paradigmas e o que preconiza a Resolução 2013/2013, do Conselho Federal de Medicina, quanto à possibilidade dos casais homossexuais recorrerem à reprodução assistida, em especial os casais lésbicos.

Partindo desse pressuposto, a constitucionalização do Direito Civil proporcionou mudanças de paradigmas, tendo em vista que a Constituição Federal, cujo centro axiológico é a dignidade da pessoa humana, passou a vigorar com supremacia material em nosso ordenamento jurídico.

Nesse contexto, o Direito de Família foi um dos mais beneficiados, a partir desta visão mais pluralista e tolerante, que tem abandonado a ideia conservadora a respeito da formação familiar, tendo em vista que antes da Lei Maior de 1988 só era reconhecida como legítima a família decorrente do casamento. Tal abandono pode ser evidenciado pelas decisões dos tribunais que, passaram a reconhecer estas novas configurações familiares contribuindo para sua legitimação perante a sociedade.

E nessa linha de raciocínio, é importante ressaltar os princípios da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana perante o Direito de Família, especificamente no que diz respeito às famílias homoafetivas. Elas, como qualquer outra formação familiar, possuem direitos e deveres, inclusive no que tange aos filhos. Diversos casais homossexuais têm recorrido ás técnicas de reprodução assistida para concretizarem o sonho de terem sua prole, fato este plenamente possível perante as garantias constitucionais que implicam em assegurar proteção ao indivíduo em suas estruturas de convívio e familiares, independentemente de sua orientação sexual. 

Neste sentido, verificou-se que a Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina permitiu o uso das técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos. A partir disto, surgiu a discussão pertinente ao Biodireito e a Bioética, uma vez que esta visa através de seus princípios, discutir a respeito de questões por vezes polêmicas como início e fim da vida e reprodução assistida, por exemplo.

Já o Biodireito, visa à regulação de tais condutas que estão sendo cada vez mais presentes na realidade brasileira. E isso pode ser verificado na jurisprudência pátria com o reconhecimento de dupla maternidade e a possibilidade de adoção unilateral quando apenas uma das companheiras homoafetivas faz uso das técnicas de RA heteróloga e isto também foi decorrente desta visão mais pluralista, tolerante e reconhecedora do afeto. Fora evidenciando então que a reprodução humana assistida, no casos dos casais lésbicos, é classificada como heteróloga, pois haverá sempre um terceiro estranho à relação, o doador. Torna-se recorrente entre esses casais o fato de uma doar o óvulo, considerada a mãe biológica, e a outra parceira participar da gestação, a mãe gestacional.

Apesar de existir, por exemplo, a Resolução do Conselho Federal de Medicina e  a Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça que tratam sobre uso de técnicas de reprodução assistida por casais homossexuais e sobre casamento e união estável de pessoas do mesmo sexo, respectivamente, elas não tem força normativa, ou seja, ainda não há uma lei consolidada que enfrente a questão de forma específica, o que evidencia uma lacuna no Direito que deve ser preenchida para que sejam efetivamente alcançados os objetivos constitucionais e para que sejam de fato atendidos os casos concretos.

Por fim, concluiu-se que apesar da constitucionalização do direito civil ter proporcionado essa mudança no modo de pensar decorrente da quebra do paradigma da família tradicional, ainda há óbices a serem superados frente ao reconhecimento das famílias homoafetivas. A análise a partir da ótica do Biodireito e da Bioética é de suma importância para o enfrentamento destas questões.

REFERÊNCIAS

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[1] Redação final do paper apresentada à disciplina de Recurso da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco-UNDB

[2]Aluna do 6º período do Curso de Direito, da UNDB

[3]Aluna do 6º período do Curso de Direito, da UNDB

4 Professora, Mestra orientadora.

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