O Barroco e a Produção Literária no Brasil

Por ATILIO BORGES NETO | 06/11/2013 | Filosofia

O BARROCO E A PRODUÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL

 

Atílio Borges Neto

 

PREÂMBULO

            O Barroco é considerado como um período de oposições, mas no Brasil colônia não se podia falar ainda em uma oposição entre teocentrismo e antropocentrismo, pois em um Brasil recém-descoberto, a vida cultural praticamente não existia. Segundo Bossi (1970), Era apenas na Bahia e em Pernambuco que havia alguma atividade de natureza cultural, isso porque a economia de base açucareira propiciava o surgimento de algumas manifestações voltadas à cultura. Fora isso, temos que levar em conta que não havia um sistema no qual a literatura estivesse apoiada, porque nem sequer tínhamos um sistema de topografia e isso impedia a publicação de livros e jornais. É, para o autor, em razão disso que na literatura brasileira vão aparecer apenas escritores isolados, cujas obras são reflexos do barroco português. Em termos de literatura, temos o intuito de compreender melhor esse período que foi o barroco e analisar uma obra do padre Antônio Vieira para averiguarmos nela as características que tinham suporte nas oposições aderidas pelo homem barroco do séc. XVI.  

A PALAVRA “BARROCO”

            De acordo com Bossi (1970), a concepção mais aceitável do termo “barroco” é a de que ele teria se originado do vocabulário espanhol “barrueco” que era utilizado pelos joalheiros para se referir às pérolas irregulares e defeituosas. Seria uma comparação do movimento literário que apresenta características livres e anárquicas e que vai contra o movimento anterior, chamado de Renascentismo.

HISTÓRICO

            O Barroco surgiu com a queda do Classicismo, com a morte de Luis de Camões termina o período do Classicismo juntamente com a Unificação da Península Ibérica. No ano de 1580 em Portugal, é uma fase marcada pela divisão do homem entre o espiritual e o material que começa a abordar características antagônicas. Esse período em Portugal se estende até 1756 com a fundação da Arcádia lusitana.

            No Brasil, inicia-se em 1601, com a publicação do poema épico prosopopéia, a primeira obra propriamente literária escrita entre nós que foi produzida pelo português Bento Teixeira. O final do período foi em 1768 com as obras poéticas de Claudio Manuel da Costa. Porém, a visão barroca foi reconhecida e praticada de 1720 a 1750, quando foram fundadas várias academias literárias, assim se desenvolveu uma espécie de barroco tardio nas artes plásticas.

            O barroco foi um movimento marcado pelo uso de antítese e paradoxos, metáforas e hipérboles que na literatura expressam a visão do mundo barroco numa época de transição entre o teocentrismo e antropocentrismo.

            Em 1758, Portugal vive uma crise dinástica em que D. Sebastião desaparece na região da África e dois anos depois Felipe II consolida a Unificação da Península Ibérica. Esses fatos originam um movimento chamado Sebastianismo, onde se cria a ideia de que D. Sebastião voltaria e transformaria Portugal no quinto império. O principal representante do Sebastianismo foi o Padre Antônio Vieira.

            No Brasil, o quadro se completa no século XVII com a presença cada vez mais forte dos comerciantes e com transformações ocorridas no nordeste em consequência das invasões holandesas  e  finalmente com o ápice e a decadência da cana de açúcar .

            Porém, na segunda metade do século XVIII o ciclo do ouro já daria um substrato material à arquitetura, à escultura e à vida musical, de sorte que parece lícito falar de um “Barroco Brasileiro” e, até mesmo, “mineiro”, cujos exemplos mais significativos foram trabalhos do aleijadinho, de Manuel Costa Ataíde e composições sacras de Lobo Mesquita, Marcos Coelho etc.

            Na literatura os exemplos foram de autores como o padre Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. 

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

            Algumas características da linguagem barroca merecem atenção pela sua peculiaridade e pelo uso que foi sendo feito de alguma delas em escolas posteriores:

            Arte da Contra-Reforma: a ideologia do Barroco é fornecida pela contra-reforma. A arte de ter como objetivo a fé católica.

            Conflito espiritual: o homem barroco sente-se desconcertado e angustiado diante da alteração dos valores, dividindo-se entre o mundo espiritual e o mundo material. As figuras que melhor expressaram esse estado de alma foram a antítese e o paradoxo, como vemos no poema de Gregório de Matos:

“ Nasce o sol, e não dura mais que um dia,

Depois da luz se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas e alegrias.

Porém, se acaba o sol, porque nascia?

Se é tão formosa a luz, porque não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no sol e na luz falta a firmeza,

Na formosura não se dê constância

E na alegria sinta-se a tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza

A firmeza somente na inconstância.”

Temas contraditórios: há o gosto pela confrontação violenta de temas opostos. 

Efemeridade do tempo e carpe diem: o homem barroco tem consciência de que a vida terrena é efêmera, passageira e por isso é preciso pensar na salvação espiritual já que a vida é passageira, sente, ao mesmo tempo, desejo de gozá-la antes que acabe, o que resulta em um  sentimento contraditório, já que gozar a vida implica pecar e se há pecado não há salvação.

“... Gozai da flor da formosura,

Antes que o frio da madura idade

Tronco deixe despido,

O que é verdura...”

(Gregório de Matos)

“Lembra-te Deus, que és pós para humilha-te,

E como o teu bachel sempre fraqueja,

Nos mares da vaidade, onde peleja

Te ponha a vista a terra, onde salvar-te...”

(Gregório de Matos)

OS DOIS ESTILOS DO BARROCO LITERÁRIO:

 

            O Cultismo é caracterizado pela linguagem rebuscada, culta, extravagante; pela valorização do pormenor mediante jogos de palavras, com visível influência do poeta espanhol Luis de Gôngora, daí o estilo ser também conhecido como gongorismo. O aspecto exterior imediatamente visível no cultismo ou gongorismo é o abuso no emprego de figuras de linguagem como as metáforas, antíteses, hipérboles, hipérbatos, anáforas etc.

            O Conceptismo é marcado pelo jogo de ideias, de conceitos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista, que utiliza uma retórica aprimorada. Um dos principais cultores do conceptismo foi  o espanhol Quevedo,  de onde deriva o termo quevedismo . Os conceptistas pesquisavam a essência intima dos objetos, buscando saber o que são, visando a apreensão de face oculta, apenas acessível ao pensamento, ou seja , aos conceitos. Assim, a inteligência, a lógica e o raciocínio ocupam o lugar dos sentidos, impondo a concisão e a ordem, onde reinavam a exuberância e o exagero. Assim é usual a presença de elementos da lógica formal, como:

A)      O silogismo :  dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, chamada conclusão. Assim, temos como exemplo: Todo homem é mortal (premissa maior);  eu sou homem (premissa menor); logo , eu sou mortal (conclusão).

B)      O sofisma: é o argumento que parte de premissas verdadeiras e que chega a uma conclusão inadmissível, que não pode enganar ninguém, mas que se apresenta como resultante de regras formais do raciocínio. É um raciocínio falso, elaborado com a função de enganar.  Ex.: “Muitas nações são capazes de governarem-se por si mesmas. Logo, as nações capazes de governarem-se por si mesmas não devem submeter-se às leis de um governo despótico”.

Cultismo e Conceptismo são dois aspectos do Barroco que não se separam, antes, supõe-se como as duas faces de uma mesma moeda. Às vezes, o autor trabalha ao patamar da palavra, da imagem; busca mais argumento, o conceito.

Nada impede que o mesmo texto tenha, simultaneamente, aspectos cultistas e conceptistas. Didaticamente, emprega-se que o cultismo é predominante na poesia e o conceptismo predominante na prosa.

Assim, de estilo barroco conceptista, Antônio Vieira joga com as ideias e os conceitos de acordo com os ensinamentos da retórica dos jesuítas. Um dos seus principais sermões é o Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real de Lisboa em 1655, abaixo se encontra um trecho do Sermão da Sexagésima:

[…] Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os    pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta, que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?

ANÁLISE

            Neste trecho do sermão, não há só a presença de sofisma que seria a presença de argumentos inadmissíveis como conclusão de ideias previamente formuladas, mas podemos notar que há também argumentos racionais que estão próximos de um jogo silógico. Contudo, vemos que esse jogo silógico não é totalizado, mas demonstra a intenção do Vieira enquanto autor de um falar retórico, isso se nota com a sequência gradativa dos argumentos:

1 -   Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas,

2 -  como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras.

3 -  Se de uma parte está branco, da outra há de estar negro;

4 -  se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra;

5 -  se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu.

6 -  Basta, que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz?

7 -  Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?

            Dessa sequência, notamos que o primeiro argumento é apelativo pelo fato de trazer consigo a autoridade que é Deus. Esta autoridade ganha voz dentro do primeiro argumento, no sentido de que há uma afirmação envolvendo uma ação de Deus que foi a ação de criar o céu em perfeito estado. Vieira joga com essa ideia de “perfeita criação” para expor que os pregadores “não estão adotando boas ações” de acordo com as que eles deveriam adotar. Então, se Deus é criador de um céu perfeito e Viera diz que “Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas”, isso quer dizer que na voz de Vieira a autoridade divina se realiza como se o próprio Deus estivesse falando Eu não fiz o céu em xadrez de estrelas. O primeiro argumento é, portanto, apelativo e fica em oposição ao segundo argumento para levar os interlocutores do sermão a uma reflexão, pois no segundo vemos a acusação de Vieira sobre os pregadores: “como os  pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras”.  Neste trecho, Vieira compara a ação dos pregadores com a ação de Deus, trata-se de um confronto de autoridade, pois se o primeiro argumento é oriundo da autoridade divina que realiza obras perfeitas e o segundo tem o homem pregador como referente, o qual realiza obras com falhas, podemos dizer que houve ,então, um contraste entre a ação divina e a ação humana. Esse contraste é uma característica do Barroco, ou seja, trata-se da oposição entre Teocentrismo e Antropocentrismo.

Se articularmos os dois argumentos em uma única voz, a da autoridade (Deus) chamada nos dizeres de Vieira, teremos a seguinte proposição estratégica para convencer os ouvintes: Vocês homens pregadores estão usando palavras obscuras em vossos sermões, mas eu que tudo posso porque sou Deus nunca fiz coisa alguma com esses seus tipos de obscuridade.

            A dedução para esta proposição se dá pelo fato de que o termo do primeiro argumento (xadrez de estrelas) parece significar “desordem”, passa a ideia de algo sem organização, o mesmo acontece no segundo argumento, em que se tem o termo “xadrez de palavras” que parece dizer respeito a uma forma desorganizada  e  não  clara  do uso  das  palavras  por  parte  dos  pregadores, isso porque  essa metáfora (sermão em xadrez de palavras) está relacionada às ações dos pregadores.

            Nesses argumentos acima destacados, averiguamos que para levar os pregadores a uma reflexão direcionada a uma nova postura de pregar, Vieira usa de dizeres com valores paradoxais para estabelecer comparações (se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra;) e com isso pode convencer seus ouvintes de que o que está falando é uma verdade absoluta. Isso demonstra a característica cultista de linguagem metafórica e paradoxal e também uma das características do conceptismo que é de formular um jogo de ideias marcado pela presença das relações lógicas, mesmo que sejam falsas.

Essa lógica se faz bem visível na proposição[1] que levantamos de forma ilustrativa, porque nela a lógica é de uma relação sofismática implícita, que pode ser deslindada da seguinte forma: O homem que não é poderoso erra ao fazer um sermão em xadrez de palavras, Deus que é poderoso não erra fazendo um céu em xadrez de estrelas. Logo, o homem não pode errar porque Deus não erra. Essa relação não tem plausível consistência porque o homem enquanto ser humano é, foi e sempre será falho, o homem sempre cometerá erros porque vive no meio de erros e acertos, promovendo o mal assim como o bem.

Pensando nisso, vemos que a ideologia da contra-reforma (tudo voltado à fé católica) e a corrente antropocêntrica causavam embaraços no homem barroco que, nesse contexto teocêntrico e antropocêntrico, buscava conciliar ideias contraditórias a fim de chegar a um equilíbrio que parecia não querer se aproximar de ninguém.    

CONSIDERAÇÕES

            Analisando apenas um fragmento da obra do padre Antônio Vieira, foi possível averiguar que o homem barroco realmente vivia inserido em um meio dotado de contradições, isso porque até para convencer alguém de algo que esse alguém deveria fazer, as ideias do homem barroco eram usadas de forma paradoxal. Nessa linha de raciocínio, podemos até levantar a hipótese de que a sociedade em geral do séc XVI estava chocada diante das novas formas de enxergar o mundo e esse choque, que se deu não somente entre espiritualidade e matéria, mas também entre o desejo de viver com liberdade e o de viver regrado pela fé, acabou despertando as sociedades para analisarem com mais profundidade as suas práticas sociais.     

            Contudo, notamos que na literatura, sobretudo no fragmento da obra de Vieira, há uma forte adesão ao aspecto teocêntrico do barroco, isso demonstra que a literatura estava influenciada pela fé católica  e o resultado, ou melhor, a consequência disso tudo se resume no fato de que provavelmente boa parte da literatura estava servindo de suporte ideológico para as concepções teocêntricas.

            Embora nossa análise tenha sido breve, foi possível por meio dela compreender com maior clareza as características do Barroco brasileiro, as quais se focam nas relações contraditórias entre homem x Deus, espirito x matéria e bem x mal.         

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira. Brasília, Universidade de Brasília, 1963.

BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

FARACO, C. E.; MOURA, F. M. Literatura Brasileira. São Paulo: Ática, 1988.

LUFT, Celso Pedro. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. 2. ed. Porto Alegre, Globo, 1969.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]    A proposição foi: Vocês homens pregadores estão usando palavras obscuras em vossos sermões, mas eu que tudo posso porque sou Deus nunca fiz coisa alguma com esses seus  tipos de obscuridade.