O Bacamarte, o Engenho e o Cruzeiro. Uma viagem ao passado da nossa família.

Por Joaquim Renato de Moraes Barros Filho | 07/03/2025 | Contos

 

O Bacamarte, fabricado em 1800 e pouco, deu seu derradeiro tiro em agosto de 1953 por Sr. Renato, meu pai – a carga de um tiro de bacamarte normalmente levava uma colher de sopa de pólvora e 18 grãos de chumbo. Essa arma ficou com um dos filhos de Hilário e acabou nas mãos de meu pai através de seu cunhado, Antônio Azevedo. Hoje reformada, tendo suas partes metálicas revitalizadas e uma coronha nova, feita de Taipoca, virou peça de museu. 

Essa arma tem história: a família Rego Barros é uma das famílias mais icônicas do período colonial da capitania de Pernambuco, no Brasil, e é originária da pequena nobreza portuguesa. Eles se estabeleceram em Pernambuco no final do século XVI. Saturnino do Rego Barros migrou de Recife para o sertão do Maranhão não se sabe bem ao certo quando. Em 1814 Saturnino participou de uma reunião na vila da chapada, hoje cidade de Grajaú, pra tratar de assuntos relacionados à comunidade. O intendente era um padre, o grupo que ali estava não aceitaram a autoridade daquele senhor sentado à cabeceira da mesa, pois ele era negro e filho de escravo. Mal o padre iniciara a seção, um dos participantes falou: "Levante-se, esse lugar não lhe compete." O padre perguntou o motivo e o outro respondeu: "Você é incapaz, pois deve a pena de pato." O padre levantou e saiu furioso. Outro assumiu a presidência e a reunião prosseguiu normalmente. Um dos que afrontou o padre era Saturnino, trisavô de meu pai. Um outro integrante da reunião morava em Grajaú. Passados alguns dias, o morador de Grajaú foi encontrado morto com um tiro na nuca – segundo meu pai, com um tiro desses não dá pra escapar. Saturnino, no sertão, ficou tranquilo, pensando que a vingança não o alcançaria.

Nas terras de meu tataravô tinha muita abelha meleira tiúba e, um dia, Saturnino saiu para colher mel, montado a cavalo. Após colher muito mel, voltava para casa. Quando chegou à beira de um riacho, usou seu copo feito de chifre de boi, chamado guampo, para beber água. Enquanto bebia, um sujeito deu um tiro em sua nuca. Ele caiu morto dentro do riacho. O cavalo chegou em casa selado, com as vasilhas presas aos arreios da cela, cheias de mel. Os filhos e a viúva seguiram a vida, durante muitos anos, sem saber quem havia assassinado seu ente querido.

Durante a revolta da Balaiada, ocorrida entre 1838 a 1841, Hilário – bisavô do meu pai e de minha mãe, Puçá – avô de Mundico Grilo, Pedro Vaqueiro, João Duro, Euzébio da Gama e outros filhos de Saturnino se juntaram ao bando de revoltosos. Hilário, apesar de engraçado, era um nome próprio, como Supercílio e tantos outros nomes que caíram em desuso.

Em um almoço do bando, cujo cardápio principal churrasco de novilha, chegou um sujeito montado a cavalo, chapéu de couro e um bacamarte na sela. Como o assunto era valentia, ele bateu no bacamarte e disse: "Foi com este aqui que quebrei a nuca de Saturnino do Rego Barros", falando na frente de dois filhos dele. Um deles estremeceu para pegar o homem, mas o outro disse: "Espera aí, não é assim não." Durante o transcorrer do movimento, colocaram outro para conversar com o sujeito, porque não conseguiam, estavam furiosos só de olhar para o assassino. O escolhido perguntou o nome, onde morava e mais um monte de coisas, e o homem contou tudo, não escondeu nada.

Quando saíram da revolução, mandaram alguém comprar o bacamarte do homem, fosse por quanto fosse. Não havia limite de preço, era para trazer a arma, e ele trouxe. Os filhos, através de um intermediário, convenceram o assassino a passar no mesmo riacho onde o pai deles havia sido assassinado. Um deles, provavelmente Puça, executou o infeliz, da mesma forma que este havia matado Saturnino do Rego Barros, seu pai.  Dívida paga com a mesma moeda.

Hilário, rapaz de boa representação, casou-se com com Delfina, portuguesa, filha de Estevam e Merandolina. Tiveram vários filhos, dentre eles: Inácia, Ana, João, Raimundo, Juvenal, José e Emiliano, todos do Rego Barros.

José do Rego Barros casou-se com Alexandrina Antônia de Araújo. Tiveram como filhos Manoel, Joaquim, Luís, Apolinario e Maria,

Juvenal, seu irmão, casou-se com Maria Gomes de Moraes e tiveram como filhos Laura e Mundico, gêmeos, Custódio, Josina, Joaquina, Alexandrina, Lucas, Agenora, Delfina e Rita.

Aí ficou assim: Joaquim, filho de José, casou-se com Laura, filha de Juvenal e Custódio, filho de Juvenal, casou-se com Elisa Ferraz de Souza. Nessa história eu nasci tendo o pai de minha mãe irmão da mãe do meu pai.

Revisitando o passado, tem-se uma encomenda de engenho feita por meu bisavô, José do Rego Barros, cuja fabricação não se concretizava. Meu avô, Joaquim de Araújo Barros, homem de muitas habilidades, disse a seu pai: “Eu sei quem faz um engenho pra o Senhor”. O pai perguntou que seria esse profissional e Joaquim lhe respondeu: “Eu”. Joaquim nunca havia realizado esse trabalho.

No dia de colocarem o engenho pra funcionar estavam presentes várias pessoas, dentre eles o fabricante tradicional, morador da região de Mirador, que perdera a encomenda e torcia, naturalmente, para que o feito fosse uma decepção. Não deu certa sua torcida, o engenho rodou suave ao primeiro impulso na manjarra, puxada por bois de carro, mostrando que Joaquim poderia ser chamado então de engenheiro. No casamento com minha avó, Laura Barros, ele já era denominado artista – título concedido a profissionais de grande habilidade.

Joaquim de Araújo Barros começou então a fabricar engenhos, além de fazer outras coisas como trabalhos com couro e atividades de carpintaria, ofícios que transferiu pra seus filhos. Um dos clientes de Joaquim foi Emídio Lima, morador da Solta, cabeceira do riacho Buenos Aires, região conhecida também como Areias. Hoje sertão de Montes Altos. Na época, sertão de Imperatriz, que se unia a Grajau, antes da criação dos municípios de Montes Altos e Sitio Novo. Este engenho foi depois vendido a João Moraes, morador de Liverpool, região próxima às Areias.

Com a desapropriação de terras de fazendas no interior de Montes Altos, para restauração da reserva dos índios Kricatis, em 2004 pelo Governo Federal, esse engenho ficou dentro da reserva. Meu tio Juvenal ficou sabendo disso e me indicou Antenor Santana pra me ajudar a resgatar essa peça. Antenor era amigo do cacique Kricati e eu fui com ele a mais uns três homens nessa missão de resgate de um pouco da história produzida por meu avô.

A negociação com o cacique foi tranquila, na época fechamos em R$ 50,00 reais pra eu fazer a remoção do engenho da reserva. Chegando ao local, de difícil acesso, com estradas já tomadas de mato e erosão, descobri que a minha caminhoneta Bandeirantes não transportaria todo o engenho de uma só vez. Decidimos então retirar moendas e a cobertura para uma primeira viagem, cujo objetivo era leva-lo para uma fazenda na região, fora da reserva, e voltar, no mesmo dia pra levar as peças estruturais pra mesma fazenda e, no outro dia, iniciar o translado em definitivo aqui pra essa chácara de Imperatriz. O nome daqui é Chácara Boa Lembrança, e vou explicar o motivo do nome mais à frente.

Iniciado o trabalho eu procurei uma boa sombra, armei minha rede e, na condição de motorista, me pus a esperar que os homens completassem a primeira carga pra eu realizar a primeira viagem. Nisso aparece a cavalo algumas pessoas armadas, se dizendo serem os legítimos donos daquele artefato. Esperei o clima esquentar um pouco, entendi quem era o líder, me dirigi a ele perguntando seu nome e sugeri que eu iria embora sim, mas que passaria no cacique pra pegar meu dinheiro de volta e dizer-lhe que fulano de tal havia impedido que seguíssemos com nossa tarefa. Foi aí que obtive a autorização de prosseguir com o compromisso de só retirar daquele local exclusivamente as peças que compunham o engenho.

O resto foi só o trabalho de transporte, montagem e restauração desse artefato que aqui se encontra.

Custódio foi morar na fazenda Boa Lembrança, sertão de Montes Altos. Elisa Ferraz, sua esposa faleceu em consequência de uma hernia estrangulada em 12 de março de 1938, deixando minha mãe Josina, com seis anos de idade o os outros irmãos: Marioza, Juvenal, Valois – que se pronuncia va-lwah, Clores e Beth. Minha avó Elisa foi enterrada em um cemitério da família, próximo à sede da fazenda. Por volta do ano de 2012 o proprietário, primo de minha mãe, solicitou aos parentes que aquelas pessoas ali sepultadas fossem relocadas pra um lugar mais apropriado e isso despertou em minha mãe a ideia de levar vó Elisa para o cemitério de Montes Altos.

Provavelmente por ser o filho mais velho de Josina e Renato, que tiveram também Laiza, Beth e Denizia, fui incumbido por minha mãe de realizar essa missão de resgate, junto com meu tio Juvenal, minha mãe e outros três parceiros. 

Chegando na fazenda, visitamos o local e demarcamos juntos a posição mais provável da cova, baseado em um antigo cruzeiro que ali estava fincado desde o dia de sua morte. Ao iniciar as escavações minha mãe foi pra dento de casa. Meu tio Juvenal também saiu do local quando tocou em alguma coisa diferente, ainda a uns cinquenta centímetros de profundidade. Não é fácil pra os filhos realizarem essa tarefa até o fim. Segui com os parceiros e quando estávamos com mais ou menos um metro e meio de profundidade um dos homens me chamou e mostrou uma loca na areia – um espaço vazio. Concluímos então inexplicavelmente que havíamos errado o local a ser cavado e isso nos deu a oportunidade de chegar perto de minha avó sem lhe causar nenhum dano. Cavamos mais e o que se descortinou à nossa frente foi Elisa, sem caixão, sem cabelos, só seu esqueleto, perfeitamente montado, com todos os ossos encaixados. Absolutamente eu não esperava por isso: de repente estava eu ali, de frente ao esqueleto da mãe de minha mãe, onde ela descansara por uns 74 anos. Recolhi cuidadosamente seus ossos, coloquei em uma urna especialmente preparada pra isso, limpando e cuidando pra que ficassem bem acomodados. Hoje minha avó Elisa segue junto com meu avô Custódio e o cruzeiro, que a acompanhou por muitos anos, encontra-se colocado em frente à casa principal da chácara Boa Lembrança, em Imperatriz, lhe rendendo uma última homenagem.

 

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