O AUTO DE SÃO LOURENÇO E OS MITOS FUNDADORES DA IDENTIDADE...

Por Joérica da Silva Santos | 30/08/2016 | Literatura

O AUTO DE SÃO LOURENÇO E OS MITOS FUNDADORES DA IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA

 

SANTOS, Joérica da Silva [1]

CREVELARI, Mariza[2]

SOARES, Beatriz Fraga [3]

  

INTRODUÇÃO

O rito antropofágico, na literatura brasileira, remonta ao período quinhentista. Este trabalho enfoca a antropofagia literária, relacionando o “Auto de São Lourenço”, produção de Pe. José de Anchieta, ao processo de construção da alteridade literária brasileira.

Finazzi-Agrò (1991, p.53) defende que “[...] o outro é, sob esse aspecto, o que se mexe além de uma fronteira, num ‘fora’ indefinido e indefinível [...].”. Ele enfoca a emergência da identidade nacional nos escritos literários, em que os primeiros relatos que descrevem o Brasil como ser o Duplo/ ser a Falta da Europa. No séc. XVI, a colônia era infantilizada politicamente, para estar a serviço da metrópole.  O Brasil era o duplo e a falta de Portugal – era a reescrita da história portuguesa e devia fornecer matéria-prima humana e econômica para a matriz.

No estudo da construção da identidade brasileira, desde a carta de Pero Vaz de Caminha às obras pós-modernas, mitos fundadores estão presentes: mito edênico (descrição do Brasil como paraíso mítico); mito do bom selvagem (descrição dos índios como seres inocentes);  mito da cordialidade brasileira (descrição da bondade/permissividade indígena) e mito ufanista (orgulho acrítico da pátria).

O texto de Anchieta, escrito pelo viés maniqueísta, em três línguas (português, espanhol e tupi), é dividido em cinco atos. O primeiro mostra o martírio de São Lourenço que, no segundo, junto com São Sebastião e o Anjo da Guarda, impede que Guaixará, o rei dos diabos, destrua junto com seus servos uma aldeia indígena com o vício e o pecado. No terceiro ato, Aimbirê e Saraiva, os servos de Guaixará, torturam os responsáveis pela morte de São Lourenço, Décio e Valeriano. No quarto ato, o temor e o amor de Deus são explicitados aos índios. O auto termina no quinto ato, com um jogral de doze crianças na procissão de São Lourenço.

DESENVOLVIMENTO           

            O “Auto de São Lourenço” foi produzido com o intuito de servir à catequização dos índios. Com uma linguagem simples, é a representação teatral estrategicamente usada pelos jesuítas para que os índios pudessem compreender a mensagem. Usando plurilinguismo, Pe. Anchieta visa, dessa forma, dividir o bem e o mal (as línguas europeias remetem ao bem e a língua indígena, ao mal). Com esse viés maniqueísta – indígena/ruim/europeu/bom – buscava-se a conversão dos índios aos costumes e crenças europeus.

            O tema central é a luta de São Lourenço e São Sebastião contra uma horda de demônios cujos nomes advêm da tribo indígena dos tamoios (rivais dos tupis) aliados dos franceses. Guaixará era um rei cacique que representava a resistência contra a colonização portuguesa. No Auto, Guaixará personifica o rei dos demônios com seus vícios e pecados, sendo assim, além da função catequética religiosa, o espetáculo contribuiu para o exercício da moral, da cultura e da política europeia. Por meio da teatralização, os índios absorviam a fé cristã e se aproximavam dos cultos aos santos católicos.

            Esse Auto tinha funções: política, pois em diversos momentos, Anchieta afirma que as tribos, sujeitas à influência demoníaca, eram aliadas dos franceses, que estavam em conflito com Portugal; moral, pois mostrava, entre outras coisas, que o fato dos índios andarem nus, entre outros costumes, ia contra os padrões morais da Europa; e cultural, pois buscava impor aos índios a cultura europeia, anulando seus costumes locais.

            Na obra de Anchieta, segundo Alfredo Bosi (1986, p. 25), a dinâmica é  representada por dois polos dicotômicos: de um lado,  o bem, materializado por anjos e santos da fé católica; do outro,  o mal, que se mostra caracterizado por figuras demoníacas em que seus vícios e pecados se assemelham aos  costumes indígenas. As cenas são adaptadas ao contexto do nativo, fazendo com que a conversão se dê em forma de entretenimento.

As falas dos demônios foram, originalmente, escritas em tupi, enquanto os versos em português contidos no Auto são as falas dos anjos que representam, simbolicamente, o amor e o temor de Deus.

       Os versos:        

Dos vícios já desligados

nos pajés não crendo mais,

em suas danças rituais,

nem seus mágicos cuidados.(ANCHIETA, p.55)

enfocam o momento em que os índios já estariam prontos para serem catequizados. O trecho: “já desligados”, remonta à ideia dos índios já terem abandonado suas crenças e estarem prontos, para receber os novos ensinamentos religiosos que lhes eram impostos de forma alienante por eles, constituindo-se em uma escravização camuflada.

            Ratificando, “Auto de São Lourenço” se divide em cinco atos, em que o primeiro relata o martírio de São Lourenço, um chamariz para a história; o segundo e terceiro trazem a apresentação de Guaixará e seus ajudantes, exaltando os costumes indígenas e a vitória de São Lourenço (bem) sobre os demônios (mal); no quarto, os anjos Temor de Deus e Amor de Deus pregam a religião, apelando para a condenação (inferno) ou salvação (conversão) e, no quinto, encerra-se a história com a apresentação de dança dos doze meninos, recheada de simbologia da iconografia católico-cristã.

            A criação da identidade nacional deu-se, a priore, a partir de uma duplicação/imitação da identidade portuguesa. As terras descobertas eram vistas como a representação do Éden bíblico, os nativos encontrados eram considerados como seres puros e cordiais. O choque cultural estabelecido focava as diferenças culturais entre nativos e europeus.

            Na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, “a certidão de nascimento do Brasil”, observa-se o deslumbramento nas informações e o surgimento dos mitos que contribuíram para o desenho da identidade nacional, que são reforçados nos trechos a seguir e transcorrem ao longo dos anos. Dessa maneira, surgem os mitos fundadores, remontando o povo nativo americano com as principais construções ideológicas: Mito Edênico, Mito da Cordialidade Brasileira, Mito do Bom Selvagem e Mito Ufanista.

         Na descrição da terra:

De ponta a ponta é toda praia... muito chão e muito fremosa. (...) Nela até agora não pudemos saber que haja ouro nem prata... Águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem... (CAMINHA, 2016)

            Na descrição dos índios:

A feição deles é serem pardos maneiras d’avermelhados de bons rostos e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar o rosto. (CAMINHA, 2016)

Isso relembra a descrição do Jardim do Éden que consta na Bíblia, no Gênesis, em que  “Deus cria um jardim e faz brotar todas as espécies de árvores formosas de ver e boas de comer... um rio saía do Éden para regar o jardim... ora, o homem e sua mulher estavam nus, porém e não sentiam vergonha.” (GÊNESIS, 1990).

            O mito edênico apresenta-se na fala de Saravaia, ao comparar o anjo (ser divino) com um pássaro azulão, (arara, ave símbolo do Brasil); “e este pássaro azulão, quem será que assim me encara? Algum parente da arara?” (ANCHIETA, p.32), em que ele aproxima o nativo do divino.

            No quinto ato, quando a oitava criança diviniza São Lourenço, igualando-o a Cristo, o único capaz de pisar na cabeça da serpente, ratifica-se a visão edênica baseada na cultura cristã ocidental:

[...]

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