O ato de ler como consciência sobre o "significar" de si mesmo e do outro no mundo
Por Williani Almeida Carvalho | 05/08/2010 | EducaçãoRESENHA: O ato de ler como consciência sobre o "significar" de si mesmo e do outro no mundo
Autora: Williani de Almeida Carvalho
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. 48 ° ed. São Paulo: Cortez, 2006. 87 pp.
Paulo Freire notabilizou-se por "traduzir" o conhecimento referente à educação tendo como principal base a consciência crítica do educando na concepção pedagógica. Por essa via, o autor distingue no crescimento do educando em direção à consciência crítica de sua realidade pessoal e social, a maneira pela qual o mesmo se situa organicamente no mundo e empreende, ele próprio, a construção de seu "ser" em termos individuais e sociais. No livro "A importância do ato de ler", Paulo Freire lança-nos luzes para a compreensão do ato de ler, que muito mais do que uma simples reprodução mecanicista de letras e palavras, requer um esforço contínuo de aprendizado do educando que inserido no seu contexto sociocultural, torna-se capaz de nele interagir e de propiciar mudanças significativas no mundo à sua volta, o que ele denomina de um aprendizado dinâmico-prático, de uma leitura transformadora e libertadora. Paulo Freire, em sua obra, relata-nos dentre outros aspectos relacionados à leitura, os que se referem à biblioteca popular e a sua relação com a alfabetização de adultos desenvolvida na República Democrática de São Tomé e Príncipe.
O autor traz pressupostos que muito mais do que metodológicos, nos revela uma maneira de "introduzir" o educando ao mundo das letras e das palavras não dissociado de uma leitura do mundo, pois para Freire, a leitura do mundo precede a leitura das palavras. A última como tal, serve-nos de instrumento a fim de que nos aperfeiçoemos enquanto sujeitos de nossa própria história e a construamos na forma concreta de libertação, num processo criativo de reconstrução e reinvenção da sociedade em si.
Na primeira parte do livro intitulada "A importância do ato de ler", Paulo Freire destaca a relação dialógica que existe entre leitura e percepção crítica entre texto e contexto. quando menciona que o contexto é como o mundo de vivência própria de cada indivíduo. Assim sendo, para que o educador logre êxito no processo de aprendizagem do educando pela leitura e escrita, é preciso que compreenda que a leitura experiencial da vida do mesmo em consonância com tal processo, propicia a real compreensão da importância do ato de ler, não como algo mecânico, enfadonho, dissociado de sua realidade, mas como um ato de conhecimento de si mesmo e do mundo à sua volta como um ato criador e não reprodutivo de "bê- à- bás."
O educando como sujeito e não como objeto, se torna capaz de fazer uma leitura de seu mundo para depois aprender a decodificá-la em letras e palavras, para que a partir do desenvolvimento de sua percepção crítica ?aprenda? e ?apreenda? o mundo das palavras num processo criador e não reprodutivo, do meio no qual está inserido. Essa pretensão de Freire abre-nos as portas para um novo sentido do processo de alfabetização, não comprometido com um sistema educacional reprodutor, mas sim, comprometido com um aprendizado de leitura e escrita aliado à dinâmica transformadora e recriadora da própria existência.
Na segunda parte do livro intitulada "Alfabetização de adultos e bibliotecas populares_uma introdução", Freire destaca que tratar sobre o tema "alfabetização de adultos e bibliotecas populares", requer lidar com um problema da leitura e da escrita não sob o viés de uma simples compreensão metodológica sobre o ato de ler e escrever, mas se constitui num ?problema?, na medida em que as propostas pedagógicas das chamadas bibliotecas populares não atendem ao seu real objetivo quando se tornam num mero depósito de livros que dissociado de ?significados? para uma cultura local, não atendem ao processo educativo que propõe uma compreensão crítica da alfabetização por parte de educador e educando. Freire destaca a relação contraditória que existe entre educação e ato político, uma vez que essas contradições marcadas por uma relação muitas vezes de poder unilateral, interferem no processo educativo e o torna a expressão da educação associada a um subsistema que por sua vez está associado a um sistema maior que dita as regras e as faz necessárias no esforço de introduzir o educando num sistema reprodutor e ideológico de estruturas institucionais e políticas que, a rigor, são autoritárias. Na maioria dos casos, a relação de educador-educando sob a égide do poder nega a solidariedade recíproca entre o ato de educar do educador e o ato de ser educado pelos educandos.
Essa relação de coerência entre o que se ensina e o que se aprende requer uma disponibilidade crítica do educador no sentido de se comprometer o ?viver? com o que se ensina, e isso só acontece quando o educador reconhece que antes de haver um sistema "político-pedagógico", enrijecido por uma forma de poder alienador, tem que haver uma reciprocidade na ação educativa entre o ?falar? e o ?ouvir?. Quando só se fala, quando só se reproduz, impedimos que o conhecimento seja dinâmico, antes, o tornamos algo estátil, em que o educando inserido num universo frio e sem sentido, não é capaz de alavancar por meio de sua vivência cultural, um conhecimento que seja comprometido com uma ética da responsabilidade, pois como bem menciona o autor, a leitura do mundo e da palavra estão dinamicamente ligadas e propiciam qualquer emancipação ou mudança social, numa visão de educação em que o mundo se refaz constantemente. Considerar tais fatores se torna condição sine qua nom para entendermos que a alfabetização de adultos e a pós-alfabetização, requer um comprometimento de ambos, tanto de educador quanto de educandos, de uma alfabetização como ato criador e político no sentido de saber fazer as escolhas sem necessariamente reproduzir uma ideologia elitista e dominante, mas sim, sem ser ingênuos, tornarem-se indivíduos astutos capazes de questionar qualquer sistema vigente buscando adentrar-se criticamente na leitura de um texto.
A forma com que atua uma biblioteca popular, a constituição do seu acervo, as atividades que podem ser desenvolvidas no seu interior, tudo isso tem que acontecer como "uma certa política cultural", mas essa política cultural tem que ter como base o estímulo aos educandos de escreverem seus próprios textos, desde o inicio do processo de alfabetização, para que na pós-alfabetização, obtenha-se a formação que poderá se transformar numa pequena biblioteca popular com a inclusão de páginas escritas não só por renomados autores já conhecidos, mas, também, pelos autores da sua própria história reinventada, ou seja, a dos educandos.
Na terceira e última parte do livro que tem como título "O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe", o processo de alfabetização no contexto da República Democrática de São Tomé e Príncipe, foi aprimorado sob o aspecto da importância da dinâmica entre a leitura da palavra e a leitura da realidade. Esse processo assessorado pelo governo e Elza Freire, trouxe uma contribuição no campo da educação de adultos com uma assessoria que se torna indispensável no que concerne à implantação de uma educação democrática num país até então governado por um sistema colonial e repressor. O autor destaca que sem a parceira entre um assessor pedagógico comprometido com uma prática educacional libertadora e com um governo popular seria praticamente impossível implantar um modelo de alfabetização de adultos que não se orientasse no sentido de aliar a dinâmica da leitura da palavra e a leitura da realidade.
O esforço empreendido em São Tomé e Príncipe na prática da alfabetização de adultos como na da pós-alfabetização é baseado nos cadernos de ?Cultura Popular? que são usados pelos educandos como livros básicos, com exercícios chamados ?Praticar para o Aprender?. Numa linguagem desafiadora, os textos dos referidos cadernos, estimulam a participação efetiva do povo enquanto sujeito, na reconstrução do país, por meio da alfabetização e pós-alfabetização. Os cadernos se constituem numa forma de participação crítica e democrática dos educandos no ato de conhecimento de que são também sujeitos. O povo participa de forma efetiva no processo de reinvenção de sua sociedade, no caso a sociedade são tomense, recém-independente do jugo colonial, que há tanto tempo a submetia.
Na proposta de uma alfabetização de adultos e pós-alfabetização comprometida com a reconstrução nacional, existe a concepção de que o ato de estudar, enquanto ato curioso do sujeito no mundo é a forma de expressão de um povo que toma a história em suas mãos e a refaz numa participação consciente, que exige ação e pensamento, prática e teoria, que reforça a leitura de uma história ativa e não passiva, em que o povo se torna presente nela e não simplesmente por ela é representado. A reconstrução nacional precisa de que o povo conheça mais e melhor a sua realidade, para nela agir de forma eficaz e contínua, e isso só se consegue quando a ação educativa é criativa, dinâmica, pois um povo que assim é alfabetizado e pós-alfabetizado, assim o é enquanto sujeitos de transformação.
Conclusão
Concluímos com a leitura desse livro que uma educação que estimule a colaboração, que aguce o senso crítico, que desenvolva o ser humano em todos os aspectos de sua existência, requer de nós educadores e educadoras uma "disposição" e uma "pré-disposição" para buscar uma educação que incentive o educando a unir a prática à teoria, procurando desenvolver uma política educacional que seja comprometida com os interesses do nosso povo e não só com uma estrutura alienada e alienante, por vezes massificadora e dominante. Isso requer vontade, vontade de ser, de aprender do educador, para que a realidade, por mais contrastante que seja se torne a mola propulsora de uma mudança social e cultural. Alfabetizar considerando tais fatores, favorece uma mudança não no sentido restrito, mas no sentido amplo, pois começa em nós, educadores, e termina e se consolida num processo dinâmico nos educandos.
Alfabetizar é isso, um processo dinâmico, que envolve não só mera repetição alienante, mas, sobretudo, conhecimento aliado à responsabilidade, responsabilidade de "ser" e de "fazer". Conhecimento como mera absorvição irresponsável de informação gera o que temos visto nos nossos dias: jovens, adultos, crianças cada vez mais alienados e descomprometidos com uma leitura que lhes abra a visão para o inesperado, para o desejado, para a tão ansiada mudança social e de si mesmo, antes, a leitura alienada das drogas, da violência, do consumo, tem se tornado algo mais atrativo, simplesmente, porque é a realidade que lhes é apresentada, sem possibilidade de enxergar outra, por uma leitura mais atrativa, envolvente, que o torne imerso num processo que lhe traga sentido para a vida.
Quando nos acercamos dessa realidade de um conhecimento responsável, lembro-me das palavras de Clarice Lispector, que pode muito bem nos servir para a conclusão desta resenha, quando afirma: "quem vive, sabe, mesmo sem saber que sabe". Resumidamente, essas palavras são a interpretação daquilo que Freire chama de leitura do mundo que precede a leitura das palavras, pois se ?quem vive, sabe, mesmo sem saber que sabe?, pode muito bem ser capaz de reinventar o mundo à sua volta de forma responsável e comprometida com a vida e com o outro, basta que seja despertado para tanto, num processo educativo que estimule a redescoberta de novas e amplas possibilidades.