O ato de esperar

Por Ivan Henrique | 16/08/2022 | Contos

      O ato de esperar

 

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–                                                                                                 Ivan Henrique Roberto

–                                                                                                 Julho de 2014

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–                                -Você volta ainda hoje?

–                    -Sim, minha missão está encerrada por aqui, desta vez. Já deixei o carro abastecido e calibrado.

–                    -Não acha que está um pouco tarde? Não demora a escurecer e as nuvens estão muito carregadas. A estrada é boa mas sei lá...o dia foi longo e cansativo.

–                    -É, eu sei. Mas você sabe como sou ansioso. Pretendo tirar mais um dia de folga.

–                    -Já sabe onde vai pernoitar?

–                    -Não vou pernoitar. Vou dar uma esticada firme. Penso em dormir na minha cama.

–                    -Você é corajoso hein? O rio costuma transbordar. Eu não encararia.  Acho que é a idade pesando. Bem, boa sorte então.

–                    -Obrigado. Até a próxima.

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–                              Rádio ligado com a previsão do tempo. “ Instabilidade acentuada. Previsão de pancadas de chuva com muita intensidade na região serrana. Visibilidade reduzida com a previsão de nevoeiro”.

–                              A luz do dia diminuía com rapidez na estrada sinuosa. Dois acidentes antes da saída da cidade já haviam atrasado a viagem. A ansiedade não costuma ficar de bem com a imprevisibilidade, sendo esta o cálice que contém o líquido corrosivo a ser jogado nas entranhas da ansiedade. O plano de viagem já foi sabotado logo no início, logo de saída na cidade tortuosa, cheia de cruzamentos, cheia de ambulantes e barracas coloridas às margens da estrada-avenida neste dia útil. Nem as cidades menores estão a salvo do enxame de veículos, que são a sustentação da sociedade motorizada.

–                            O tempo, ah o tempo perdido! Não adianta reclamar, não há com quem reclamar.

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–                         Os primeiros pingos vieram de encontro ao para-brisas, gentilmente batendo e escorrendo pelo vidro, e qual uma infestação de pragas sem controle logo uma camada grossa de água obrigava as hastes do limpador a fazer o seu vaivém, jogando à esquerda e à direita a água abençoada que pulava do céu para umedecer o solo e fazer crescer as plantas. A pista que logo encharcava dava mostras da necessidade de trazer para primeiro plano a cautela, aquele ente irritante que se antepõe à pressa, ao arrojo, à impetuosidade e todos os adjetivos que servem para lubrificar a máquina do sucesso nestes tempos modernos medido em milissegundos.

–                       O velocímetro já marcava 90 km/h na estrada sinuosa e molhada, a luz baça do crepúsculo sombrio diminuía o raio de ação e a velocidade de reação caso o freio fosse acionado. Ah o planejamento! Sempre brota uma variável indesejada para desequilibrar a equação.

–                       500 metros adiante há uma curva muito fechada, e uma fileira de caminhões abarrotados já ocupa o espaço. A ultrapassagem além de proibida é impensável. E as comportas do céu foram escancaradas de vez. Que cenário estimulante!

–                        As forças da natureza não se importam com os pobres mortais. Meros figurantes de um enredo intrincado e caprichoso, os simples mortais quase sempre assistem ao desenrolar dos acontecimentos de forma passiva e impotentes, creditando à sorte e ao acaso a composição dos fatos, que ao final de um período determinado transforma-se em história, seja minha, sua ou deles, tanto faz. A sequência dos fatos deste pequeno recorte de história, neste momento nos diz que a transmissão da rádio local informa de uma carreta tombada a poucos quilômetros, serra abaixo. Já nervoso com o atraso inicial, a irritação dá saltos dentro do corpo já cansado de um mero trabalhador que só queria dormir em sua cama nesta noite.

–                         Minutos alongados ao máximo da capacidade de paciência vão se sucedendo. A noite se instala em definitivo e a chuva que havia chegado com tanta alegria e disposição, não dava nenhum sinal de ir embora, parecendo mesmo que estava tão saudosa do solo, que a conversa entre ambos não pararia jamais. Nosso devotado trabalhador desligara o carro, vencido pela espera de uma estrada vazia, que não vinha. Suas pernas já doem. Sua impaciência perdera a queda de braço e virara resignação.

–                        A música escorria dos falantes de seu carro e embalara-o ternamente. Adormecera. De repente sons de motores a dar partida. Despertara num susto, alguns segundos para dar-se conta da situação. A estrada estava livre de novo. A serpente adormecida se movia novamente e um ânimo novo insuflava seus pulmões e sua mente. E a chuva não arrefecia. 30 quilômetros adiante havia um rio. Rios gostam de chuva. Ela os alimenta, os engorda, os mantém vivos e lépidos. Ah as águas! As águas, tão vitais neste planeta chamado Terra.

–                        Chegamos então num longo trecho em que as habitações e construções se rarefazem. A mata fechada ainda sobrevive com alguma folga e muitas folhas nesta região que produz uma bela vista e um belo refúgio quando o Sol está alto e fagueiro, e várias trilhas levam à cachoeiras e grutas, diversão gratuita aos bravos de espírito, bem preparados e bem abastecidos com água e guloseimas. Num claro dia de primavera ou verão, quando as nuvens estão altas no céu e os pássaros cantam para namorar é um bom lugar para se estar. Mas a chuva nesta noite de fim de outono não quer ir dormir. E a luz está ausente em grande parte. A estrada esvaziou um pouco, porém o asfalto já bastante gasto associado com a água em abundância impede que o carro ganhe velocidade.

–                       Já bastante distante da cidade a transmissão do rádio estava intermitente. “.......atenção na estrada por conta da chuva torrencial.......não há previsão de que haja melhoras nas próximas horas…ATENÇÃO!! A PONTE ACABA DE RUIR.......” E o sinal da rádio sumiu de novo.

–                        O trabalhador cansado, já a esta altura dos acontecimentos, aguça o ouvido e mexe no dial do rádio, porém a notícia já havia sido transmitida. “A ponte caiu? A ponte caiu? Foi isto mesmo o que eu ouvi ???!! Só me faltava essa! O quê que eu faço agora? Não tem nada nessa região, nenhum hotel, nenhuma pousada, eu que contava em dormir em casa…”

–                         Antes que a ponte ruísse os veículos já haviam escoado com rapidez, e o carro azul de nosso trabalhador estava sozinho na estrada escura e molhada. Faltavam poucos quilômetros para atravessá-la.  A chuva aumentara de intensidade bruscamente. Parecia mais uma descarga monumental acionada nas nuvens.  Uma placa semidestruída indicava um antigo comércio de licores e vinhos à direita, cerca de 200 metros ao longe. Nosso trabalhador num impulso semiconsciente sai com o carro da estrada e vai em direção ao prédio abandonado. Um trecho de terra totalmente enlameado o separa de seu abrigo.

     ABRIGO

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–                        Havia bastante tempo que uma chuva com tanta volúpia não desabava nesta região. Agora tudo ao redor está molhado e enlameado. Ele para o carro no antigo estacionamento e com cuidado caminha até a porta. Ainda dentro de um impulso semiconsciente, um pontapé na fechadura abre as portas para este abrigo improvisado. Uma escuridão e um monte de teias de aranha são os recepcionistas.

–                         “Pelo menos o teto está intacto. Acho que vou ter de me virar por aqui mesmo”

–                         Ele começa a explorar o edifício. Muitas peças do mobiliário continuam no estabelecimento abandonado há vários anos. Algumas janelas quebradas deixam passar um pouco do frio úmido que circunda tudo. Num canto meio escondido há um lampião. Várias cadeiras ainda estofadas se colocadas em fila podem fazer o papel de uma cama, caso seja imperioso passar a noite. O abandono lega ao ambiente uma camada substancial de pó. Caso haja alguém com um mínimo que seja de alergia esta não aguentaria permanecer por mais do que 15 minutos no recinto, porém este não é o caso de nosso pobre trabalhador, que de queixas em relação à saúde tem muito poucas. Apenas a ansiedade, fruto do estresse constante, se bem que isto não é um privilégio dele, mas sim uma praga em escala global.

–                          O frio aumenta neste casarão abandonado, cercado por uma mata luxuriante e encharcada neste fim de outono. Uma despensa ao final do corredor continha ainda algumas toalhas de mesa e outros apetrechos. Não tão sujas por estarem fechadas em gavetas de um móvel de esmerada construção, que ao serem fechadas lacravam com bastante precisão todos os utensílios esquecidos em seu interior. “Quem não tem cão caça com gato é o que dizem, então se tiver que pernoitar aqui já tenho com que me cobrir”.

–                       Continuando a exploração deste território ele descobre, com grande surpresa e satisfação, que havia vários galões de água, licores e garrafões de vinho (se bem que de qualidade para lá de duvidosa), ainda lacrados e potáveis, sabe-se lá como. Pois que a sede já avançava pela sua garganta, resultado de toda a ansiedade e irritação pelos eventos recentes. “Este lugar parece que foi abandonado às pressas”, pensou, agora com a garganta tranquila e refrescada. Os relâmpagos providenciavam a claridade para a locomoção neste terreno desconhecido. Então percebeu a fome. Quantas horas já haviam decorrido desde a saída da reunião? A contagem do tempo havia ficado em suspensão desde a parada e o breve cochilo quilômetros e horas atrás.

–                        Apesar da fome, que agora que percebera tornara-se uma companhia desagradável, ele subiu ao piso superior do estabelecimento, em busca de alguma outra surpresa. Todavia qualquer resquício de comida caíra por terra, pois mesmo que houvessem esquecido mantimentos, os ratos, pássaros e demais animais silvestres já teriam se fartado muito antes de sua chegada. A noite havia de ser longa.

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–                                                                O RIO

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–                         Rios gostam de água. Rios são feitos de água, apesar de todo o lixo que insistem em pedi-los para guardar em seu bojo. Há quanto tempo eles estão em seu leito original?

–                           Hoje o Rio dos Troncos está feliz, pois tamanha quantidade de água assim faz tempo que ele não recebe como visita. Logo se expande, e se expande cada vez mais, numa velocidade assombrosa. Em minutos ele resolve sair de seu leito original, acariciando a grama e os arbustos que o margeiam. A pobre ponte que por sobre seu dorso permanecia imóvel já por vinte anos, hoje não aguentou e despencou. O rio não quer saber do destino da ponte. Logo avança mais e mais, e não parecia arrefecer neste ímpeto aventureiro, como que tomado por um desejo irrefreável de conhecer toda a vizinhança, deixar o leito para trás e subir, subir, subir....

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–                                                         PRIMEIRO METRO ACIMA DO LEITO

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–                         O primeiro metro acima do leito levou cerca de uma hora para ser alcançado. Já encharcada pela queda livre vertical dos pingos grossos de água, a terra ao longo do leito do rio deixou fácil o caminho para o avança impetuoso daquela massa de água revolta. Todo o lixo acumulado ao longo das margens já rodopiava, afundava e voltava à tona, num vaivém frenético, após o arrasto inicial, parecendo mesmo um trio elétrico que passa e leva aquela multidão maravilhada pelo som e luzes coloridas. Galhos e ramos caídos levavam sacos plásticos como bandeirolas numa procissão. Baldes de lixo já cheios de areia e sedimentos se chocavam com garrafas plásticas, cascas de côco, sapatos velhos sem par, até um pobre pássaro preso por um pedaço de fio elétrico não havia sido rápido o bastante para escapar da enxurrada. Visto de longe é um belo espetáculo esta pororoca, esta avalanche horizontal. Quem pode com a força das águas?

 SEGUNDO METRO ACIMA DO LEITO

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–                         O segundo metro veio quase em seguida. Árvores recém brotadas e ainda não firmes o bastante foram arrebatadas pela marcha frenética. Alguns casebres miseráveis ao longo do caminho, abandonados também, outros como simples abrigos para caçadores clandestinos, e cujos alicerces não eram lá essas coisas, nenhum deles ofereceu a mínima resistência. Pedaços de parede, tijolos soltos, telhas quebradas, cadeiras velhas, pedaços de pau foram juntar-se ao turbilhão de objetos que avançavam sem limite e sem vergonha

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–                                                                      ABRIGO

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–                            Um cansado trabalhador desaba numa cadeira coberta de poeira ao se dar conta que seu abrigo não contém uma simples migalha de qualquer coisa que possa ser mastigada e deglutida.  O cansaço começa a cobrar seu preço, transformando a surpresa inicial com a descoberta deste refúgio em um leve desespero, alimentado pela fome que veio para ficar como companhia indesejada. O que antes era uma escuridão física, pela ausência de uma simples lâmpada incandescente que seja, mesmo uma pequena de uns quinze watts, pouco a pouco se transmuta numa escuridão psicológica. Ah o conforto! Tudo à distância de um simples apertar ou estalar de dedos, uma rede extensa criada e mantida pelo esforço anônimo de milhões de outros trabalhadores para garantir o bem-estar de seus concidadãos. Quando esta rede se rompe os dedos ficam inertes e impotentes. Só resta cruzá-los em um perplexo gesto de superstição.

–                            A chuva não dava trégua, nem cedia um mililitro que fosse. Os raios riscavam o céu noturno, numa dança iluminada e aleatória, parecia a natureza em festa a zombar dos humildes mortais encolhidos em suas casas, ensopados nas ruas, encurralados debaixo de pontes e marquises.  Os raios continuavam a fornecer a pouca luz naquele ambiente desolado que servia de abrigo.

–                         “ Acho que eu tenho ainda um pacote de biscoitos no porta-luvas do carro”, pensou o trabalhador de boa memória, apesar da fome. “O repouso eu já arrumei, aquelas toalhas bastam como coberta, mas e a fome? Vai ser duro de aguentar passar a noite desse jeito”. Apesar do desconforto que um estômago vazio oferece àqueles que sempre tem à disposição alguma coisinha para mastigar, nosso resignado trabalhador resolve esperar um pouco, talvez na vã esperança que a chuva pare de repente. “Que horas devem ser? Deixei tudo no carro, meu relógio, meu celular, meu notebook, tô completamente perdido, estou ilhado literalmente, acho que ninguém vem aqui há tempos”               

–                          Vários minutos são consumidos nestas deliberações e hesitações. Quando o desconforto alcança o ponto em que obriga nosso herói a se mexer, ele quase num salto resolve ir até o carro vasculhar o porta-luvas em busca do biscoito perdido.  Depois de quatro passos o assoalho cede abruptamente, resultado do abandono e uma infiltração de água que havia solapado a madeira. Ele enfia o pé no buraco súbito, com todo seu peso.  O estalo nem chegou a ser ouvido pois no mesmo instante um trovão rugiu forte e poderoso, enchendo o ar com seu som assustador. A dor não demorou a vir. Uma torção muito forte, talvez uma fratura, causou esta dor lancinante que se apossa do corpo e alma deste pobre, cansado e faminto trabalhador, que só queria dormir sentindo o cheiro familiar de seu travesseiro.

–                          A dor foi tão intensa que ele perdeu os sentidos. Em poucos minutos, já refeito do desmaio, o descontrole já quer invadir seu raciocínio. Ele percebe a gravidade da situação.

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  CINCO METROS ACIMA DO LEITO DO RIO

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–                           Se traçássemos uma linha de altimetria entre a sala agora esburacada deste casarão abandonado e o leito original do Rio dos Troncos, teríamos como certo que cerca de 10 metros seriam suficientes para que, numa situação anormal, as águas chegassem, sinuosas e sorrateiras. A propriedade onde estava edificado este casarão situava-se na bacia do rio. Com tanta água à sua disposição o rio só crescia e corria, cada vez mais rápido, cada vez mais forte. Árvores robustas e maduras em idade já se deslocavam, num rafting sem emoção, apenas uma corrida cega à mercê da enxurrada.  Toneladas de terra, pedra e sedimentos arrancados das margens, que se devidamente processadas e tratadas seriam suficientes para a construção de um bairro inteiro, porém, neste momento não é esse o objetivo. Este é o momento de destruição. Ou de renovação, depende do ângulo que se olha.

–                           A defesa civil da cidade mais próxima já se mobilizava, pois certamente o estrago seria colossal. Com a ponte caída e o rio transbordado, a ajuda teria enormes dificuldades para chegar. A chuva intensa era mais um ingrediente deste bolo amargo a ser servido ao poder público e seus contribuintes.

–                          Com todas as dificuldades já relatadas até agora, o trânsito na estrada havia cessado. Se nem os locais habitados eram objeto de atenção, imagine um local abandonado? Para todos os efeitos tudo que estivesse a menos de 15 metros de altura a partir do leito original do rio parecia condenado.

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–                                                                                   ABRIGO

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–                              A dor intensa do momento após o trauma havia cedido um pouco, mas não passara. A imobilidade era a única certeza que nosso trabalhador azarado tinha no momento. A fome fora esquecida por motivo de força maior, bem maior, diga-se de passagem. Mais do que se sentir sozinho ele sente e percebe a verdadeira solidão. Com todo o seu aparato de comunicação há apenas cerca de 20 metros de distância, dentro do carro, distância que numa situação de normalidade seria percorrida em poucos segundos, o isolamento em que este contundido homem se encontra é uma grande ironia em face da sociedade onde o anonimato e a privacidade são bens cada vez mais raros.

–                           O teto da construção ainda resiste. Alguns filetes de água escorrem pelas paredes. Os trovões não param de ribombar, com seu barulho ensurdecedor. Com tanto ruído ao redor o som surdo que avança em direção ao casarão fica em segundo plano. A dor e os trovões impedem de ouvir muita coisa.

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–                                                         DEZ METROS ACIMA DO LEITO DO RIO

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–                           A escalada do rio em direção ao topo não encontrava obstáculos. A celeridade do avanço havia diminuído um pouco em relação ao início avassalador, mas mesmo assim o volume envolvido era tão grande que a própria inércia tinha velocidade. Aos poucos, quase imperceptivelmente, a chuva começava a diminuir, como a se cansar de sua queda tão rápida, a brincadeira perdendo a graça do início. Já quase não havia terra seca num raio de vários quilômetros, já quase não havia construção que tivesse resistido em pé diante de um poder maior.  Uma placa semidestruída, que indicava em anos recentes um local de comércio de licores e vinhos, boiava agora por cima de um monte de galhos e material de demolição na garupa de uma massa d'água que avançava sem controle, porém agora numa velocidade menor.

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–                                                                                  ABRIGO

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–                            “ Tenho a impressão que a chuva está diminuindo. Ou minha razão já está sendo afetada, pela fome, pela dor, pelo azar”. “Por que não fiquei para pernoite? Bem que o colega avisou. Ahh, agora já era. ” Desconsolado, esfomeado e com uma dor intensa, sentado num chão imundo, o ansioso trabalhador tenta reunir alguma força e algum raciocínio que o faça buscar uma saída. “Minha perna dói demais, mas eu tenho que me arrastar até o carro, senão jamais saberão que eu estou aqui. ”

–                       O suor frio escorre pela sua testa, pelas suas mãos, pelas suas costas. Mesmo se arrastando a dor na perna é imensa. Ele é obrigado a parar pois não resiste ao esforço. “Ahhh. Acho que não dá…” E começa um choro convulsivo, um choro de desamparo, como há muito não fazia. Talvez desde criança, quando acordava sozinho no quarto, todo molhado no meio de um pesadelo. Um pesadelo recorrente, com ondas gigantes que avançam para o banco de areia onde ele está, no meio do oceano, e mais nada ao redor e ao longe.

–                        “ O que será que eu fiz de errado? ” Tremendo de frio e de medo o raciocínio se esgarça. O som dos trovões quase acabara, a chuva de fato diminuíra. “Então, que som é este? Que barulho é este? Parece um enxame gigantesco. ” Dentro de seu carro o celular mostrava várias ligações perdidas. A madrugada avança e várias equipes de socorro já estavam trabalhando na recuperação da ponte, ou no que seria possível fazer emergencialmente. Os esforços ficaram concentrados neste ponto específico desta região agreste. Num raio de 5 quilômetros, tendo o casarão abandonado como epicentro, nada parecia chamar a atenção, apenas o barulho das águas que avançavam.

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 DOZE METROS ACIMA DO LEITO DO RIO

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–                         A cerca que impunha o limite da propriedade não resistiu mais do que alguns segundos, pois árvores frondosas e maciças servindo de aríete arrancaram meras estacas e finos fios de arame como se fossem barbantes e palitos de dente. A inclinação do terreno retardou só um pouco do inexorável avanço, um espetáculo majestoso para o observador que estivesse flutuando como espírito distante, ou ave altaneira certa de sua segurança a muitos metros do solo.

–                         O carro azul ainda novo, já bastante enlameado das aventuras recentes, sentiu as águas barrentas tocando seus pneus fincados no solo. Uma tonelada de metal que descansava em silêncio logo, logo começou a boiar, qual veículo anfíbio, se bem que esta descrição não é muito apropriada, pois experimente deixá-lo encharcado para checar o seu funcionamento! Carros gostam de um asfalto firme e não de uma enxurrada barrenta. Logo, logo começou a rodopiar sem direção, qual um barquinho de papel na correnteza. A água, em poucos minutos, invadiu o interior confortável e seco, encharcando tudo que estivesse dentro; celular, notebook, pastas de documentos, carteira, o que fosse. Perda total.

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–                                                                                 ABRIGO

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–                             Certas pessoas são resistentes, outras pessoas costumam se gabar de sua segurança e fortaleza. O corpo humano tende ao conforto e ao bem-estar, a um sofá macio e uma ducha quente quando chega em casa no ocaso de mais um dia duro de trabalho e atribulações. Em alguns casos já documentados algumas pessoas sobreviveram em condições extremas, subvertendo as expectativas de uma morte anunciada. Outras desabam na presença de um mero resfriado. Nosso pobre trabalhador nunca foi colocado à prova. Nenhuma grave crise ou ponto de ruptura jamais se apresentara a ele, e a carne amaciara demais.

–                           Neste momento a dor e a fome se misturam em um ser pego de surpresa. As condições extremas à que ele ficara agora exposto, com a contusão inesperada e a estômago vazio, vacuidade esta que migrara para sua mente, podem determinar que tipo de pessoa ele é, frente às adversidades. A confusão mental que ganhava espaço obscurecia o raciocínio. Mas tanto faz qual estratégia ele deveria escolher para se arrastar até seu carro, pois neste momento uma água suja invade por baixo das portas deste casarão esquecido.

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–                                                              ABRIGO?

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–                           A escuridão aumentara assim que os relâmpagos cessaram de riscar o céu. O som de água que avança é inconfundível. As águas deveriam estar dentro dos canos, certo? No conforto e na segurança de uma construção bem-feita, no aconchego de uma vizinhança numerosa, em residências de alto padrão, sim. Mas aqui a normalidade se ausentara há muito tempo. Lá fora seu carro desgovernado bate contra uma parede ainda sólida, mas sem pintura e sem cuidados.  Com o impacto, parte de um telhado desmonta e despenca sobre a lataria azul. Tanto faz, o carro está condenado de qualquer maneira.

–                         O instinto de sobrevivência ainda é uma força poderosa no íntimo dos seres vivos. Ao se dar conta, numa fração de segundos, do quadro assombroso em que estava colocado, ele reúne forças já quase ausentes e se arrasta em direção à escada, para o mezanino. Cada degrau é um suplício, pois seu pé inchado bate em cada um deles, agravando a dor. Com muito, muito esforço ele chega ao piso superior da construção. Ofegando, suado, os olhos esgazeados e estupefatos por tudo de ruim que desabou sobre sua pobre pessoa.

–                        “Por que eu? ” (Pergunta clássica em momentos de desespero). “Que foi que eu fiz de errado? ” (A velha culpa cristã inculcada e infligida ao longo de dois milênios). “ Eu, eu não entendo! Por que vim parar aqui? Acho que é castigo”.  Está mais do que claro e bem explicado que não há eletrodos em sua cabeça, nem aparelhos sofisticados de ressonância, nem técnicos habilitados para operá-los, portanto só se pode especular sobre o que se passa em seu cérebro bastante cansado e quase exasperado nestes momentos de grande aflição, quando um sujeito comum, sem talentos destacados, sem habilidades cognitivas fora do padrão médio, e acima de tudo completamente sozinho e incógnito neste agreste destruído por uma força titânica da natureza, se vê de cara com uma realidade sombria, diria até que fatal.

–                        As águas avançam, embora com um quinto de sua força original de arrancada. O salão embaixo já está completamente tomado. As cadeiras e mesas remanescentes boiam, outros utensílios sobrenadam naquela imundície. Apesar do que aparentava de início, as paredes resistem com bravura, só as portas da frente haviam sido arrancadas, e com isso deu boas-vindas à torrente. O som ambiente era um composto líquido de borbulhas e atrito aquático. A chuva já se dera por satisfeita e cessara por completo. Tirando o som das águas em desfile, todo o resto era um silêncio abismal. Nenhum grito seria ouvido, nem adianta tentar, é só um esforço desesperado e inútil.

–                         Mesmo assim ele tenta um grito de socorro, mas tão logo expande os pulmões para executar o ato, tão logo o grito se desfaz em face da total inutilidade deste ato. A impotência é a regra neste momento, e o cansaço está junto para somar forças.

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–                       “Eu não entendo, eu não deveria estar aqui, eu deveria estar na minha cama, no meu conforto! Que mal eu fiz? A quem eu fiz? Eu sempre agi de forma correta... tão longe eu possa lembrar eu nunca prejudiquei ninguém. Tá certo, eu tive raiva muitas vezes, mas quem nunca teve? Quem nunca quis matar o vizinho abusado ou o colega aproveitador, num momento de descontrole? ”

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–                          A água chega ao segundo degrau da escada.

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–                       “ Será que foi por causa daquela garota que eu conheci no clube?  Eu não quis mais nada com ela e ela vivia me perseguindo, querendo compromisso. Eu não queria compromisso!  Não sou obrigado!  Eu só queria me divertir, eu só queria curtir muito! Que será que aconteceu com ela? Ah, ela deve ter conhecido outro cara e seguido em frente. É isso, é isso, ah eu não tenho culpa, eu não queria ficar com ela mais. Como era mesmo o nome dela? Alice, ah Alice, agora lembrei! De que adianta lembrar disto agora? ”

–                     

–                        A água chega ao quinto degrau da escada.

–                     

–                      “ E a Elisa? Caramba! Como ela pode ter sumido da minha memória? Quanto tempo faz, quanto tempo... oito anos, não, sete anos, sete anos. Ela ficou grávida. Eu me apavorei. Eu não estava pronto para ser pai. Eu não queria compromisso. Eu só queria me divertir, só queria curtir a vida. Eu paguei, sim eu paguei para ela retirar... eu deveria ter pago? “

–                     

–                       A água chega ao oitavo degrau da escada.

–                     

–                       “ Por que esta lembrança tem de vir agora? Eu sou uma pessoa correta, não é? Meu irmão.... Ele nunca me perdoou. Mas ele nunca foi ambicioso, nunca demonstrou interesse no negócio. Eu tirei ele sim. Eu tirei ele sim. Ele não merecia nada! Ele só me deu o dinheiro, mais nada. Minha mãe nunca perdoou também. Mas eu não preciso deles! Eu não preciso de ninguém! ”

–                     

–                       A água ultrapassou o décimo quinto degrau da escada

–                     

–                        “ Por que, por que eu lembrei? ... eu não, eu não roubei a ideia, a ideia estava dando sopa, eu só registrei. Ele foi muito descuidado também, a culpa foi dele. Otávio…Otávio. Por que estes nomes estão aparecendo assim de repente?  Eu havia esquecido disto tudo. Otávio. Tenho que admitir que ele era inteligente, muito inteligente. Inteligente demais, dava até raiva do queridinho dos professores! Tão inteligente que deixou aquela ideia brilhante por escrito na minha gaveta”

–                          Uma maré de memórias submersas aflorou na mente deste homem esquivo. Uma onda de cargas elétricas disparou dentro de seu cérebro e desnudou estes véus espessos. Quem sabe se resultado do medo intenso e do fato de estar encurralado, sem saída e ferido?   Suas mãos e todo o seu corpo tremem sem controle, não se sabe se por causa do frio, do choque ou da súbita lembrança de seus atos passados. Uma epifania moral, que chegou para cobrar-lhe dívidas antigas, dívidas irresgatáveis.

–                     

–                            E a água chega no topo da escada.

–                     

–                       “ Eu não fiz nada de mais, nada demais. Muita gente faz isso, ou até pior, muito pior, viu? Eu nunca matei ninguém! Eu só queria viver minha vida, sem compromisso. Sempre paguei minhas contas, ninguém nunca pagou minhas contas. Aquela vez que eu entreguei meu sócio para as autoridades foi por extrema necessidade, era ele ou eu, e eu sou um homem correto. Nem quero saber o que aconteceu com ele, deve estar preso ainda. Eu sou um homem correto!!” Este pensamento era tão caro para ele que foi verbalizado em voz alta e clara.  E ninguém ouviu.

–                        “Alguém me ajude, alguém me ajude!!” A voz muda queria gritar, mas era inútil. A consciência agora desperta e abastecida com as memórias lacradas, oscilava entre euforia e delírio. Ele pensou ouvir helicópteros, sirenes de bombeiros, gaitas de foles (!?), a bateria de uma escola de samba, e até a voz de sua mãe. A pulsação acelerada irrigava com muita intensidade seu cérebro, e com isso a atividade de sua mente era análoga a um arquivo onde as gavetas se abriam descontroladas, despejando seu conteúdo pelo chão. Alguns compartimentos, que por força da conveniência estiveram lacrados por anos, agora se expunham sem controle.

–                          O estado lamentável de nosso obscuro trabalhador não impede que ele perceba a água que avança, agora de forma mais lenta, mas que avança em sua direção. O grau de delírio que ele atingiu faz com que uma superfície inanimada de uma substância se transforme num monstro de olhos arregalados, que olha fixamente e demonstra a intenção de cobrar suas dívidas, reais e imaginárias.

–                           “ Vai embora, vai embora! Eu não tive culpa de nada, eu não fiz nada errado! Todo mundo faz igual.... Por que você quer me pegar? ”

–                           A água suja e escura, malcheirosa e carregada de lixo não quer saber se alguém traiu, trapaceou ou renegou seu semelhante. Ela quer ocupar seu espaço quando pode.

–                     

–                            A água chega aos pés do sofá.

 Ele se arrastara com enormes dificuldades por causa da dor em seu pé contundido até um sofá velho. Num plano mais elevado do que o sofá havia uma série de  prateleiras na parede atrás. Mais do que isso só o teto sem nenhum ponto de apoio.

Já era de madrugada e as equipes de emergência trabalhavam em ritmo acelerado para mitigar o impacto. Seria preciso no mínimo um mês para reconstruir a ponte, e enquanto isso um desvio de doze quilômetros já estava traçado para permitir o acesso a este trecho. Com sorte, uma equipe de resgate chegaria neste local somente em dois ou três dias. A boa sorte porém parecia estar ausente nestas redondezas.

  A simultaneidade dos acontecimentos é uma prova da multiplicidade de opções que a natureza oferece como alternativas para se safar de situações complicadas. Por quê então ser partícipe justamente do acontecimento mais desastroso? Estar no lugar errado e na hora errada, deixar o livre arbítrio tão livre que o arbítrio comanda e impõe a escolha errada. Ficar ou partir? Esquerda ou direita? Parar ou continuar?  Certo ou errado ? Destino ou escolha? São questões irrespondíveis. O “se” não existe,  o que existe são as muitas trilhas à frente, mas só há uma escolha neste plano concreto de opções excludentes.  E então o que está a esperar é a porta emperrada e sem chaves. É a água subindo rumo ao teto.

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  E a água encharca o sofá.

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  Já semiconsciente, o que prevalece é o instinto de sobrevivência. Com o olhar já habituado à escuridão ele sublima a dor e se estica. Agarra a primeira prateleira com força surgida sabe-se lá de onde e puxa o corpo, que se acomoda como um saco de areia. O volume de água é impressionante, e apesar do ritmo mas lento do deslocamento, logo o sofá é arrastado pela torrente. O desenrolar dos acontecimentos torna-se até monótono, com este leito de rio viajante que não encontra adversário e nada que o impeça de seguir. Um ambiente úmido e frio como cenário. Então, qual o problema? Ah sim, temos um ser humano desesperado lutando pela sua vida. Mas, alguém sabe disso? Alguém percebeu isso? Alguém filmou isso? Se não, não importa. Isto não está acontecendo. A simultaneidade de acontecimentos faz com que a atenção seja direcionada para o heroico esforço de  colocar a ponte em condições de trânsito e o restabelecimento do acesso para a zona urbana já tão castigada pelo pequeno dilúvio.

  Uma alvorada pálida já se insinua pelas nuvens enxutas depois de tanto esforço. A luz incipiente de mais um dia clareia uma região vestida de calamidade. Não se tinha certeza dos contornos da terra firme. O rio subira tanto que se metamorfoseara num lago barrento, que se encorpara com os demais córregos.

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–  O       TETO

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  De volta ao casarão restavam três prateleiras até o teto. Já se antecipando ao inevitável, este maltratado ser de pé torcido se agarra ainda com mais força do que na primeira vez na viga lateral e passa para a prateleira de cima. Com isso ele procura respirar com um pouco mais de folga, e se possível, pensar nas possibilidades de salvação. O teto é sólido e aguentou bem ao tranco de toneladas de água entornadas direto do céu. Vários utensílios de cozinha foram achados logo no início do refúgio, mas nenhuma ferramenta mais pesada, como um martelo ou marreta que quebrasse um pedaço de parede.

  E a água sobe um pouco mais. Já alcançou a primeira prateleira. Tudo dentro do previsto. Um aquário sem peixes neste momento é no que havia se transformado aquela casarão, que outrora em dias de feriado prolongado e férias vivera dias de muito movimento, com o estacionamento cheio de carros cheios de consumidores. Também serviam lanches rápidos e bebidas. E algum artesanato local. A morte inesperada de um dos sócios inviabilizou o negócio, e o imóvel estava fechado há alguns anos por conta do inventário. Coisas de família cujos membros não se entendem.

  Alguém que já tenha passado por experiência semelhante poderia explicar o que se passaria na mente deste sujeito acuado, neste instante em que a água alcança a segunda prateleira. Eu, confesso, nunca passei por situação semelhante, nem quero.  O que se conta é que, com os sentidos mais aguçados pelo estresse, ele já se arrastara para a terceira prateleira. E em seguida, até parecendo se divertir um pouco com isso, pulou para a penúltima prateleira. Começa a gargalhar de repente, algo sem sentido. Não há inibição nenhuma em jogo. E poderia haver alguma?

  “Hahahaha venha água imunda! Você não me alcança! Eu escapei até hoje, eu não sou tão fácil assim, hahaha, eu já provei que não sou! Eles se enganaram comigo, eu sou uma planta carnívora, ehehehehehe, atraio e depois devoro, hahahahahahahah”

  “ Eu não me arrependo, não me arrependo de tudo que fiz. Eu posso gritar em voz alta agora, ninguém vai ouvir, nem me recriminar, hahaha. Eu deveria ter feito muito mais!!!”

  Uma euforia histérica sem testemunhas e sem julgamentos. Eis o véu espesso que estava rasgado e atirado no turbilhão barrento. Eis a água subindo e atingindo a segunda prateleira, novamente um monstro disforme que arreganha uma boca pronta para devorar uma consciência pesada , hóspede de um corpo ordinário.

  “ Vai embora, vai embora, você não ouviu isso!Eu não disse isso, eu não quis dizer nada disso, eu,eu, eu.... Eu quero sair daqui!!! Me deixa em paz!!! Eu não quero morrer agora!!!”

  Um desespero lancinante sem apoio e sem ajuda. Eis o véu já rasgado que não pode mais impedir o frio da alma.

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–  A ÚLTIMA PRATELEIRA

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 Ainda restava uma última prateleira. O último passo antes do teto. Antes do fim?

  Não havia ninguém por perto, como já foi exaustivamente explicado antes. Mas se houvesse algum observador, de perto ou de longe, veria um rosto tão desfigurado por uma combinação de emoções tão intensas, que por um lado sentiria uma repulsa imensa por aquele olhar esbugalhado e desesperado, e por outro lado ficaria solidário com a situação desesperadora, de um ser espremido entre um teto duro e frio e uma água suja, fria e absoluta.

 Sem opção e de forma automática, ele se arrasta para a última prateleira. E lá fica inerte, agora sem energia nenhuma, como que anestesiado. Esperando, esperando, esperando. Não se pode medir o tempo numa situação destas, creio que não possa. O tempo não é linear como se acredita. Apenas mais uma ilusão, dentre as tantas que existem ao redor. O silêncio é total, apesar do murmúrio da água. O pé já não se sente. A dor passou, só há um silêncio como uma capa.

  Por mais incrível que possa parecer, uma paz cálida se apoderou deste corpo arrasado pelo medo. A libertação após expelir tantos fantasmas e demônios enjaulados por anos em sua mente esquiva, serviu como um antídoto deste veneno que o corroía por tanto tempo. Uma catarse. Uma purgação. Sentia-se leve como um menino olhando o céu estrelado, com a Via Láctea em arco sobre sua cabeça. Continuou a esperar. Que mais ele podia fazer ?

Então a água chegara de fininho aos seus pés. Eu creio que ele caíra em si e aceitou o inevitável. Com a perna pendida para baixo o toque da água em princípio não fora tão ruim assim. Não estava gelada. Sou tentado a dizer que parecia mais uma carícia, um afago.

  “Será que a morte chega com um afago?” Quem pensou isso, ele ou eu?

 Houve uma certa demora para que  alcançasse seu joelho. Imperceptivelmente o ritmo do avanço diminuía. A água se cansara?

  Uma imagem difusa começou a fazer contornos em seus olhos cerrados. A praia com rochas e um vento forte que levantava muita areia. O cheiro longínquo, muito tênue. Uma lembrança recuada no tempo. O Sol estava ofuscado por muitas nuvens e o vento forte e constante trazia um frio inesperado naquele pedaço de litoral afastado. Os brinquedos estavam jogados na areia macia, e o castelinho de areia ainda aguentava firme o ataque dos elementos. De repente ele  procura por seu pai. Olha ao redor e está sozinho. Estivera distraído na árdua tarefa de construtor de superfície instável, buscando água com seu baldinho para engrossar a areia, junto aos palitos de sorvete usados como sustentação de seu castelo tão poderoso. “Onde está meu pai ?” E um coraçãozinho aflito de criança dispara ao se perceber sozinho numa terra estranha.

  As nuvens que se juntam em comboios escurecem cada vez mais o céu. Só muito distante deste local onde pai e filho haviam fincado sua bandeira é que algumas pessoas marcavam presença. A formação rochosa fora escolhida com cuidado, por ser pouco frequentada,  onde a arrebentação era mais forte, e mais perigosa. Aquela oportunidade de passeio com seu pai era há muito aguardada, e muito rara de acontecer. Ele raramente aparecia e a pobre criança não sabia o porquê.

 Quanto tempo decorreu desde o momento em que se viu sozinho? Não se sabe. Só se sabe do medo imenso que tingia com cores escuras o mundo ao redor do menino sozinho na praia. “Onde está meu pai?” já chorando ele pensava. E tremia, talvez de frio, por certo de medo, ou também pela decepção.

  Tempos depois seu pai reapareceu. Com olhar sério e repreensivo ao ver o filho encharcado de lágrimas. “Por que você está chorando deste jeito?” disse rispidamente. “Pare de chorar, não vê que eu estou aqui?” A volta do pai, mesmo deste jeito suave como um ouriço, trouxe a calma de volta ao menino. Um pouco afastada dos dois ele percebeu então uma mulher . Ela estava parada observando  o reencontro dos dois. Seu pai dirigiu o olhar para ela , que se afastou lentamente. Aquela não era sua mãe, mas ele percebeu que seu pai tinha alguma ligação com a desconhecida  da praia .

  “Eu vou sair mais um pouco, mas já vou voltar, não precisa chorar de novo, feito um bebê faminto! Depois nós vamos embora por que vêm chuva” E o menino vê o pai mais uma vez se afastando. Quase no final da praia ele percebe o entrelaço das mãos de seu pai com a misteriosa mulher.

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  E então a água chegou na sua cintura.

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  Por que se lembrara disto? O que esta lembrança já quase apagada queria dizer?  É bem possível que estivesse em busca de justificativa e perdão. A consciência estava vazia, e este vazio já  não impunha pressão alguma sobre ele. Entornara por completo a taça de líquido corrosivo que por anos castigava lentamente suas entranhas, seu íntimo, sua personalidade. O que restava agora?

  Este é um território difícil. O que fazer diante do inevitável?  Só resta a perplexidade? Desfocar o olhar para não ver o destino tão próximo, neste caso já chegando em seu peito?  Mesmo com a pressão da água num abraço mais do que apertado, a paz cálida não o abandonava.

  Ele deixou a cabeça cair para frente, já não aguentando a pressão no pescoço. Se não tinha saída, por que ficar ainda mais desconfortável? Seu corpo deu uma leve escorregada e a cabeça mergulhou por inteiro na água suja.  O choque foi imediato e ele viu uma luz à sua frente.

  A manhã seguia seu rumo e o Sol já mostrava seu rosto fulgurante como se quisesse dizer que continuava como senhor absoluto de tudo, e que logo, logo secaria aquela balbúrdia feita sem seu consentimento. Colunas de diáfano vapor se elevavam em direção aos céus para dar continuidade ao ciclo iniciado bilhões de anos atrás quando bactérias insignificantes estabeleceram o poder de fixar na superfície do planeta esta substância tão essencial à vida tal qual conhecemos.

 Neste instante uma porta  até então desapercebida na face norte do casarão, e que se mantivera firme, não aguentou e abriu. Em consequência, grande parte do volume de água contido agora tinha como escapar. O rio se cansara da aventura e começa o regresso ao leito original.

  O brilho de uma manhã invadindo aquela mistura de água e pensamentos difusos permitiu a confusão neste homem vazio, no momento de seu batismo involuntário. A luz que acabava de ver não era de sua redenção, nem de sua partida para regiões mais sutis, tampouco a salvação no corpo de um ser divino e imaculado a lhe arrebatar, no momento mais crítico de sua existência. Era tão somente o reflexo do Sol num espelho do lado oposto, despercebido no meio da escuridão de até agora pouco.

  O mergulho é um momento de comunhão, o corpo se solta em busca do desconhecido, pode ser o fim de tudo, pode ser o espaço vazio e o chão intransponível. Após o mergulho ele, já resignado com seu destino, se deixou ficar flutuando, livre e aliviado neste retorno ao útero, neste invólucro líquido que o abraçava no fim do caminho.

 O             FIM

                        A porta da face norte do casarão estava escancarada. A água barrenta fluía com facilidade e rapidez. Quase tão rápido quanto subira, ganhando terreno com velocidade constante, a água agora retornava por onde viera. A manhã  clara e fresca em nada lembrava a noite calamitosa da véspera, cujos índices pluviométricos registraram um recorde difícil de ser batido. A enchente em si não era novidade naquela região, tendo sido verificado em pelo menos quatro ocasiões na última década, mas não naquela proporção. Os que acompanharam pelo noticiário, e sendo mais crentes nas Escrituras, juraram de pé de junto que Noé existia de fato e fora o responsável. Enfim, sendo verdade ou não, agora era a hora do rescaldo, de contabilizar os prejuízos, de reconstruir a paisagem humana seriamente danificada.          O nível da água baixa e logo passa da primeira prateleira. Em seguida o sofá imprestável retorna ao solo. A escada encharcada está visível de novo. E um corpo inerte pousa suavemente nas tábuas envelhecidas do piso superior deste casarão, que em tempos idos costumava receber turistas aos montes, em busca de lanches rápidos e artesanato local no caminho para a cidade. Em questão de poucas horas o rio terá voltado ao seu tamanho normal, contido em seu leito esculpido ao longo de eras e estações esquecidas, em tempos onde nenhum ser humano jamais havia colocado seus pés para refrescar a pele na água corrente após longas caminhadas, pois o rio era jovem e os humanos nem existiam ainda. Mas isso foi há muito tempo, e a paisagem mudara inúmeras vezes, só o Sol estava lá por testemunha.         No lado de fora da propriedade um lamaçal era tudo o que existia, e também um automóvel seriamente avariado na lataria, e de cor indefinida ; somente após uma lavagem muito caprichada é que se poderia saber sua verdadeira cor. O conteúdo do carro também estava imprestável, encharcado, sujo e inoperante, perda total sem dúvida nenhuma. Dado ao estado de abandono da propriedade, antes do pequeno dilúvio, a tendência a permanecer do jeito que estava era muito 

grande, a lama secaria por certo e a parte desabada do casarão ficaria como um souvenir, um instantâneo do momento. 

                             AINDA NÃO É O FIM

        Os olhos foram abertos com cautela. Ainda pareciam colados, os cílios entrelaçados, a imagem bastante turva, tudo desfocado e incerto, com contornos indistintos. Um peso exagerado nestas pálpebras cerradas por longo tempo, não se pode saber por quanto. Era quase preciso pegar dois dedos para auxiliar no movimento que é tão natural e automático. Contudo os dedos também estavam parados, contraídos, tensionados, crispados, bem como os braços e as pernas. Os sons começaram a tomar forma lentamente, em parte por que o mundo ao redor estava esquecido e silencioso e em parte porque a água encharcara até os tímpanos. E enfim o movimento da respiração e do batimento cardíaco. Tudo estava tão calmo agora e em silêncio. Havia consciência neste momento? Difícil responder.     Após longos minutos, muito longos, tão longos que romperam a barreira das convenções estabelecidas pelos laboratórios ao redor do mundo, minutos que poderiam ter sido horas; enfim aquele esquecido trabalhador, que confessara suas fraquezas e expusera seus medos para ninguém em especial, despertara deste torpor, deste transe, daquele pesadelo onde terminaria sepultado em água. O destino traz em seus bolsos cheios alguns truques e desvios, como abrir portas onde não se sabe que existam, e concede uma segunda chance para aqueles que ainda precisam aprender muitas lições.      Após relaxar e recuperar seus movimentos ele permaneceu imóvel, apenas sentindo sua respiração acalmada e seu coração no ritmo que melhor lhe convinha. Estava preocupado e apreensivo? Não mais. Tinha bastante tempo para pensar numa saída agora.