O Amor em Camões e a Paixão em Bocage

Por Bárbara Tahis Patta Soares | 16/05/2011 | Literatura

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DA CAMPANHA - URCAMP

BÁRBARA TAHIS PATTA SOARES

O AMOR EM CAMÕES E A PAIXÃO EM BOCAGE

São Borja

2009

BÁRBARA TAHIS PATTA SOARES

O AMOR EM CAMÕES E A PAIXÃO EM BOCAGE

Monografia apresentada ao Curso de Letras da Universidade da Região da Campanha ? Campus Universitário de São Borja (RS), como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em Letras ? Habilitação em Língua Portuguesa, Língua Espanhola e Respectivas Literaturas.

Orientadoras: Profª Mestra Zilá Teixeira Delavy

São Borja

2009

RESUMO

Este trabalho pretende revisitar os poetas portugueses Camões e Bocage, partindo da premissa de comparar seus sonetos, separando o tema Amor, representado por Camões na estética do Classicismo e a polêmica Paixão tema constante em Bocage e presente no período Neoclássico.
Considerando os distintos séculos e as estéticas Clássica e Neoclássica, observa-se, em Camões e Bocage, determinada semelhança quanto à forma de composição e quanto à naturalidade de expressar pensamento e sentimento, elementos inerentes a suas poesias. Ambos os autores possuíam a inquietação pelo perfeito, assim como um imenso orgulho por sua pátria. Na literatura não poderia ser diferente, tamanha destreza e engenhosidade de visionários na arte de poetar, marcaram épocas que assistiam a descobertas de novas terras, onde se instalava novos comportamentos, isto, intensificando e enriquecendo a produção literária destes sonetistas.

RESUMÉN

Este documento tiene por objetivo revisitar los poetas portugueses Camões y Bocage, con la premisa de hacer una comparación de sus sonetos, separando el tema Amor, representado por Camões en la estética clasicista y el controvertido tema de la pasión constante en Bocage en el período neoclásico.
Teniendo en cuenta los diferentes siglos y la estética Clásica y Neoclásica, se observa en Camões y Bocage, dada la similitud en la forma de composición como la naturalidad de expresar el pensamiento y sentimiento, los factores inherentes a su poesía. Ambos autores tienen una preocupación por el perfecto, y un inmenso orgullo en su patria. En la literatura no podía ser diferente, la verdadera habilidad y el ingenio de visionarios em la arte de poetar, ellos señalaran épocas que asistieron a los descubrimientos de nuevas tierras, donde instalaron nuevos comportamientos, a saber, intensificando y enriqueciendo la producción literatura de estos sonneteer.

INTRODUÇÃO

A relevância pela forma poética soneto, teve início no século XVI em Portugal, por meio de Luís Vaz de Camões, o qual observou uma necessidade de transpor o conceito de Amor, universalizando-o, pórem, considerando seu caráter individual.
Camões, humanista nato e possuidor de uma curiosidade sem limites, leva estudiosos e pesquisadores a uma conclusão a respeito de sua obra, que é inevitável, comprovar em seus poemas, a diversidade das emoções humanas, o ideal de perfeição, e principalmente, a busca pela verdadeira felicidade tão almejada pelo homem.
Toda a manifestação camoniana gira em torno de um motivo poético - o Amor-, devido a esta busca incessante o poeta se consagrou na literatura mundial. Foi cultuando com rara beleza estética e genialidade este sentimento, que Camões atinge em versos o que para ele, seria a solução do enigma da vida.
No período em que predominou o Classicismo em Portugal, tornou-se possível implantar novas formas de poetar, através dos preceitos estéticos amparados na cultura antiga que serviram de ferramentas para Camões preconizar o amor baseado na filosofia platônica como conhecimento universal.
Seguindo os passos e demonstrando a mesma inquietude que Camões, Bocage inaugura em meio ao século XVIII, uma ousada forma de compor evidenciando a intimidade, os desejos e as fraquezas do homem frente ao sentimento da ? Paixão-.
Bocage também possui sua vida entrelaçada com sua obra, isto porque descreve com profundidade em seus sonetos a fixação que se dá pela proximidade física, e o desequilíbrio que a Paixão acarreta na mente do ser que deseja outro ser.
Apesar da semelhança entre os poetas ? Camões e Bocage-, em relação aos sentimentos humanos e em aspectos como orgulho pela pátria, e quanto à forma de composição, ambos os poetas diferenciam-se na maneira de aceitar e definir os sentimentos do Amor e da Paixão, sugerindo que é impossível julgá-los da mesma forma, ou dar-lhes o mesmo conceito.
Para a realização deste trabalho monográfico procurou-se verificar a ambigüidade existente nos sentimentos expressos e no estilo de cada sonetista.
A metodologia aplicada é a pesquisa bibliográfica, ou seja, será realizado um estudo descritivo dos clássicos sonetos de Camões e os pré-românticos sonetos de Bocage. A coleta do material será feita em livros e autores que tratam deste assunto e que, darão assim, maior embasamento teórico a este trabalho.
A estruturação desta monografia tem como ponto de partida o esclarecimento prévio sobre os sentimentos do Amor e da Paixão segundo a filosofia.
Após esta etapa, abordam-se os aspectos históricos e sociais dos séculos em que se manifestaram as estéticas do Classicismo e do Neoclassicismo em Portugal, analisando peculiarmente, como essas estéticas literárias influenciaram os poetas, respectivamente lembrados como gloriosos homens de seu tempo.
Na parte que encerra este trabalho monográfico, evidencia-se a análise dos sonetos selecionados, procurando-se sempre alertar e destacar a diferença existente entre eles, no que diz respeito ao motivo poético de ambos.

1 O AMOR À LUZ DA FILOSOFIA

Na filosofia, o livro mais famoso sobre o amor é O Banquete de Platão (428/27 ? 347 a.C.). Trata-se de um banquete durante o qual alguns antigos atenienses tentam explicar porque o amor exerce tanto poder sobre nós. Platão teria uma concepção de belo que se afasta da interferência e da participação do juízo humano, ou seja, o homem tem uma atuação passiva no que concerne ao conceito de belo: não está sob sua responsabilidade o julgamento do que é ou não é belo. A dialética de Platão aponta para duas direções: o mundo das idéias, num plano superior, do conhecimento, que é, ao mesmo tempo, absoluto e estático; a outra direção segue para o mundo das coisas, dos humanos.
Em O Banquete, Platão define o Amor como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógino que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana. Esse ser, que só existe no mundo das idéias platônico, confere à sua natureza e forma uma espécie peculiar de beleza: a beleza da completude, do todo indissociável, e não uma beleza que simplesmente imita a natureza.
Este conceito de amor apresentado por Platão, é revisto e comprovado através dos diálogos presentes na obra O Banquete, onde Fedro, Pausânias, Erixímaco (o médico) e Aristófanes (o poeta) discursam sobre o amor, ou sobre a amizade. Estes filósofos contribuíram com idéias que deixam evidente que o amor não se trata de apenas uma conexão corporal, é muito mais de essência e de complementaridade. Aristófanes que era o mais afeiçoado a Eros, dá sua opinião sobre o amor:
Quando acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo, ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que denominamos amor ( Platãol, 1987).
Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma coisa diferente, o porquê a alma de ambos quer uma coisa que ela não pode exprimir e só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma da sua vida. Aristófanes termina seu discurso sobre o amor de forma belíssima:
Falo em tese, tanto do homem como da mulher, para afirmar que nossa espécie só poderá ser feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós, encontrarmos o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza (Platão, 1987).
O Banquete demonstra não só a forma dos escritos platônicos e a transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles, mas a celebração e o louvor de Eros.

1.1 A Paixão vista pela filosofia

Não há filosofia sem paixão, sem criatividade, sem irreverência sob o risco de se transformar em saber doutoral e estéril. No entanto não há verdadeira paixão sem filosofia, isto é, sem organização e profundidade sob o risco de se converter em sentimento fútil e espúrio. A filosofia é e será sempre racional, mas a reivindicação plena da racionalidade não pode confundir-se com qualquer reducionismo que oblitere e empobreça a real complexidade humana. O homem não se reduz à dimensão racional como não se reduz a qualquer outra dimensão porque o característico do homem é a superação e a construção.
Na filosofia, Paixão é conceituada como algo que desejamos e não podemos possuir, existe uma fixação que se dá através da proximidade física, próxima a impossibilidade da realização deste desejo.
Se algo pode ser dito sobre as idéias do filósofo Sócrates mestre e inspirador de Platão, é que ele foi moralmente, intelectualmente e filosoficamente diferente de seus contemporâneos atenienses. Quando estava sendo julgado por heresia e por corromper a juventude, usou seu método de elenchos para demonstrar as crenças errôneas de seus julgadores , ele acreditava que as idéias pertenciam a um mundo que somente os sábios conseguiam entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o perfeito governante para um Estado.
Para Sócrates, o amor começa com a paixão por um corpo atraente e termina no amor pela beleza absoluta. Sem descartar a dose de desequilíbrio que a paixão acarreta na mente do ser que deseja outro ser, a ponto de não mais gozar dos prazeres da vida se não for sob a condição de adorador, amante ou escravo. Este sentimento é pensado aqui não só como prejudicial ao caráter humano, mas como um estímulo necessário para que haja coragem nos homens, para que perdure o constante anseio por conquistas. Sócrates afirma que a filosofia vem de dentro para fora e sua função é despertar o conhecimento, ou seja, o auto - conhecimento, pois, a verdade está dentro de cada um. Para conhecer a si mesmo é preciso conhecer o outro. A alma do outro é como se fosse o espelho da própria alma, um movimento impetuoso para o bem ou para o mal.
O pathos é um dos temas recorrentes na poesia lírica da Antiguidade. E talvez tenha sido a poeta Safo uma mulher aristocrata nascida na ilha de Lesbos, quem conseguiu criar uma das mais belas representações deste sentimento para o mundo grego:
Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo sutil corre sob minha pele, tudo escurece ante o meu olhar, zunem-me os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem-me tremuras e fico mais pálida que a palha: dir-se-ia que estou morta .
Safo descreve o estado de adoração e paralisia que acomete o apaixonado, identificando sensivelmente as reações do corpo ao êxtase da alma. As alterações físicas do corpo dão concretude ao estado febril da paixão. O pathos, a paixão, aparece em sua intensidade, marcando o corpo do sujeito lírico que sofre com a intensidade dos sentimentos que nutre pelo ser amado. O sofrimento interior atinge a carne, o corpo físico adoece tal a dor vivida pelo sujeito lírico.










2 A ERA CLÁSSICA

De acordo com os estudiosos e pesquisadores, a literatura clássica portuguesa abrange o período entre os anos de 1527 até a morte de Camões em 1580. Através de uma viajem para a Itália em 1521, Sá de Miranda observou o florescer do estudo da literatura antiga, grega e latina, juntamente, com as comemorações das descobertas científicas e marítimas que proporcionavam ao homem um novo olhar sobre a realidade e uma noção maior de suas possibilidades. Ao trazer para Portugal, cinco anos depois, novas formas de poetar, constatou que o momento era propício para a implantação destas formas, uma vez que os portugueses eram partícipes, em muitos aspectos, das mudanças que se operaram em toda a Europa a partir da segunda metade do século XV e durante o século XVI.
O ideário clássico é fundamentado na tradução e nos comentários de textos teóricos grego-latinos, visivelmente a Poética de Aristóteles, e a Arte poética, de Horácio. O maior número de obras acerca da doutrina clássica é vindo da intensa criticidade italiana. Apresenta-se, portanto, o período clássico, com uma série de preceitos estéticos, amparados na cultura antiga, e com os quais não deixaram de interferir determinantes históricas, políticas, sociais e científicas.
A doutrina clássica, inspirada nos antigos, preconiza o predomínio da Razão, a submissão da Natureza ao homem e a existência de uma " autoridade" em matéria de beleza. É em razão, porém, do retorno à filosofia platônica que se propõe o conhecimento universal através do amor e da fruição da beleza divina 4
Em Portugal, o classicismo literário segue os modelos italianos da imitação da estética antiga e, por outro lado também é pautado por obras de grandiosos poetas da Itália anteriores ao Renascimento, como Dante e Petrarca.

Havia uma incontestável atração pela cultura italiana(a intermediar o conhecimento da cultura antiga) entre os intelectuais portugueses, que desde o século XV, com o magistério de mestres italianos ? entre eles Mateus Pisano, preceptor de D. Afonso V e Cataldo Sículo, da época de D. João II -, manifestam um marcado interesse pelos estudos humanísticos como discípulos entusiasmados das lições italianas... Deve-se à Itália, portanto, o gosto da erudição, do estudo das línguas sábias ( o grego, o latim e o hebraico) e o cultivo das Humanidades: foram assim os casos de Henrique Caiado e Francisco de Holanda (Op. Cit. 1993 p. 19).
A grandiosidade da manifestação literária do Classicismo português, o qual consagrou Luís Vaz de Camões como maior poeta da Língua, quase não obteve apoio teórico. Segundo os dados históricos e literários, Sá de Miranda foi o introdutor do classicismo em Portugal, com o propósito de analisar em suas obras, aspectos fundamentais das artes literária e plástica: a mimese, a simetria e o decoro, entre outros. Juntaram-se a ele Tomé Correia( 1536- 1595) e o pintor Francisco de Holanda (1517-1584), mas foi António Ferreira, quem consolidou definitivamente a teoria clássica em Portugal.

Situado entre 1527, data do regresso de Sá de Miranda a Portugal, e 1580, que corresponde à morte de Camões, o Classicismo português observa, em geral, os grandes princípios e conceitos que vigeram nas literaturas ocidentais no século XVI, ressalvas as diferenças criadas pelos resíduos medievais. Partiam esses princípios de uma busca da perfeição através do culto da forma e da obediência às regras, orientadas pelo equilíbrio entre a razão e a emoção (Op. Cit. 1993 p. 22).


2.1 Luís Vaz de Camões

Camões nasceu em torno de 1525, em Coimbra ou Lisboa, filho de Simão Vaz de Camões e de Ana de Macedo ou Ana de Sá ou Ana de Sá de Macedo, teria o poeta obtido a sua formação cultural na Universidade de Coimbra, onde o tio Bento de Camões era chanceler. Em Lisboa, aproveitaria a juventude em boêmia, mulheres, turmas de rapazes, mas poetando sempre. Serviu como soldado em Ceuta, por volta de 1549-1551, aí perdendo um olho. Em 1552, de regresso a Lisboa, esteve preso durante oito meses por ter ferido, numa rixa, Gonçalo Borges, um funcionário da corte. Data do ano seguinte à referida Carta de Perdão, ligada a essa ocorrência. Nesse mesmo ano, seguiu para a Índia. Nos anos seguintes, serviu no Oriente, ora como soldado, ora como funcionário, pensando-se que esteve mesmo em território chinês, onde teria exercido o cargo de Provedor dos Defuntos e Ausentes, a partir de 1558. Em 1560 estava de novo em Goa, convivendo com algumas das figuras importantes do seu tempo (como o vice-rei D. Francisco Coutinho ou Garcia de Orta). Em 1569 iniciou o regresso a Lisboa. No ano seguinte, o historiador Diogo do Couto, amigo do poeta, encontrou-o em Moçambique, onde vivia na penúria. Juntamente com outros antigos companheiros, conseguiu o seu regresso a Portugal, onde desembarcou em 1570. Dois anos depois, D. Sebastião concedeu-lhe uma tença, recompensando os seus serviços no Oriente e o poema épico que, publicara Os Lusíadas. Camões morreu a 10 de Junho de 1580, ao que se diz, na miséria. No entanto, é difícil distinguir aquilo que é realidade, daquilo que é mito e lenda romântica, criados em torno da sua vida.

É de sua obra, contudo, que se pode tirar muito do homem Camões, até mesmo pelas ambigüidades, conflitos e paradoxos que ela sugere. Ressalta sem dúvida o humanista, depositário de imensa e fundamentada cultura, dono de curiosidade infatigável, observador arguto da realidade, íntima e exterior, dono de "um saber de experiências feito", enfim, o gênio. Se junta a essa personalidade o boêmio, o "trica-fortes", o cortesão, o aventureiro, e tem-se talvez explicada a fama legendária que lhe marcou a biografia e fez dele o poeta da contradição e do desconcerto, com a vida repleta de peripécias e de desgraçada fortuna (Op. Cit. 1993, p. 32).
Em vida, Camões publicou somente Os Lusíadas e algumas composições líricas na introdução de dois livros, Os colóquios dos simples e drogas medicinais da Índia, de Garcia de Orta, e a História da província Santa Cruz, de Pêro de Magalhães de Gândavo. Os seus Autos e Rimas e as Cartas só foram publicadas alguns anos depois de sua morte. De acordo com Diogo Couto, um Parnaso lírico foi roubado de Camões, mas até os dias atuais nenhum manuscrito foi reconhecido com o autógrafo camoniano.
A dificuldade destes textos líricos foi a análise textual e canônica, já que as Rimas eram póstumas, datadas nos anos de 1595 e 1598. A publicação é referida ao mercador de livros Estevão Lopes, e organizada a primeira por Fernão Rodrigues Lobo Soropita.
Torna-se inesgotável o assunto do cânone da lírica, a definição do texto camoniano é complexa e parece insolúvel. Alguns teóricos se ocuparam com este estudo, nomes como Agostinho de Campos, com cinco volumes começados em 1932, desclassificando vários poemas com a tentativa de uma edição crítica. E ainda os de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, em edição de 1944, de Hernâni Cidade, em 1946, e de António Salgado Junior, 1963. No Brasil a contribuição vem através de subsídios para afixação do cânone com os estudos de Emanuel Pereira Filho, Leodegário de Azevedo Filho e Cleonice Berardinelli.
Camões cultivou tanto as formas poéticas prestigiadas pela Renascença, as da chamada "medida nova", quanto as da "medida velha" fornecidas pela tradição. Às formas clássicas pertencem a elegia, a oitava, a égloga, a epístola, a sextina, o soneto e a canção, inspirados no modelo antigo e com marcada influência italiana e espanhola. As segundas expressam-se pelo estilo engenhoso, cuja manifestação mais característica é o "falar derivado", transmitem a sutileza e a agudeza de conceitos tão a gosto dos poetas de herança occitânica e dos Cancioneiros medievais: as redondilhas. (Op. Cit. 1993, p. 34).


2.2 Nos moldes do Arcadismo

O estilo literário denominado Arcadismo manifesta-se numa literatura empolada, de louvação e encômios, em linguagens exageradamente metafóricas, arrevesa e sentenciosa, praticada à sombra das academias. Com o declínio da aristocracia e com a ascensão da burguesia, sente-se a tendência para uma renovação do gosto literário e do credo estético, com o esgotamento da literatura cortês do barroco. Desenvolve-se uma reação contra o barroquismo dos seiscentos, expressa num amplo movimento de restauração classicizante, em que o espírito clássico ressurge sob a forma de neoclassicismo.
Dentre as variedades do neoclassicismo, figurou o movimento arcádico. No final do séc. XVII, fixou residência em Roma a jovem ex-rainha Cristina da Suécia, que renunciara ao trono e ao luteranismo, convertendo-se ao catolicismo. Inteligente e culta, desde a Suécia habituou-se a cercar-se de sábios e artistas, para discussão e leitura de trabalhos literários. Em Roma, atraiu para essas reuniões a fina flor da inteligência local, formando um cenáculo intelectual que, após sua morte, se transformaria na Arcádia (1690). Nasceu, assim, com regulamentos e programas, a nova academia, composta de 16 membros. Tinha o objetivo de reconduzir à fonte da natureza, à simplicidade de sentimento e de estilo, a poesia e, em geral, a literatura, que, na opinião dos seus componentes, estavam desviadas pelo cattivo gusto, herança do seiscentismo. O nome de Arcádia era dado na Grécia antiga à região do Peloponeso, morada do deus Pan, e onde a tradição imaginava residirem todos os pastores com seus míticos e plácidos costumes, em contato com a natureza, lugar de beleza, pureza e espiritualidade. Procuravam adoçar a dureza do viver mercê de uma disposição para o canto e a dança, as canções de amor e as pugnas poéticas, caracterizadas pela espontaneidade e simplicidade. Segundo Toffanin, era a pátria da antiga poesia pastoral. Por isso, o nome foi transferido para a academia italiana, acrescentando-se ainda a particular ressonância obtida pelo romance pastoral de Jacopo Sannazareo (1458-1530), intitulado Arcádia (1504). Os membros da nova Arcádia chamavam-se pastores, cada um adotando um nome pastoril, grego ou latino, sendo o presidente eleito e designado guardião geral.
O Arcadismo se inicia no ano de 1700, e por isso, recebe o nome também de Setecentismo, ou ainda Neoclassicismo. Esta última denominação surgiu do fato de os autores deste período imitarem, não de uma forma pura, mas alguns aspectos da antiguidade greco-romana ou o chamado Classicismo, e também os escritores do Renascimento, os quais vieram logo após a idade clássica.
No século XVIII, assiste-se à agonia da Idade Moderna e ao germinar de conceitos que marcariam a Idade Contemporânea ? momento de virada, pois, na história da Humanidade. Época de crise ? a "crise da consciência européia", denominou-a Paul Hazard -, iniciada à volta de 1680 e que há de culminar em 1789, com a Revolução Francesa. No bojo dessa crise agonizam valores sócios - político - econômicos e artísticos oriundos do Renascimento, ao mesmo tempo em que embrionam concepções que hão de gerar a grande revolução cultural que foi o Romantismo do século XIX. (Op. Cit. 1993).
A revolução intelectual ocasionada por volta dos séculos XVII e XVIII, chamada Iluminismo, trazia como lema: liberdade, igualdade e fraternidade, e influenciou os pensamentos artísticos da época na Europa, principalmente a Revolução Francesa, a independência das colônias inglesas da América Anglo-Saxônica e no Brasil, a Inconfidência Mineira.
Pode-se observar que o ideário do Neoclassicismo traduzia, em termos estéticos, os anseios de naturismo, racionalismo, universalidade albergados pelo século das Luzes.


2.3 Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), nasceu em Setúbal, Portugal. É o mais famoso dos satíricos e o mais popular dos poetas portugueses. Sua inspiração não foi só erótica e passional; também cantou sentimentos graves, "a desesperança e o lento gosto da morte", em que atinge muitas vezes o sublime. Aos 15 anos de idade ingressou no serviço militar, no regimento de Setúbal. Aos 21, incorporado à Marinha Real, foi para Goa, na Índia, onde serviu por três anos. Em 1789, não aceitando sua transferência para Damão, desertou e fugiu para a China.
Ao retornar à Portugal, em 1790, sofreria a grande decepção de ver a namorada, Gertrudes, que ele deixara em Setúbal, casada com seu irmão, Gil Bocage. Os quarenta anos de vida de Bocage foram marcados tanto pelo sofrimento e pelos insucessos de toda ordem quanto pelas agitações da aventura, das polêmicas e da boêmia. Mas sua vida desregrada, além de arruinar-lhe a saúde, tornou desigual a sua vasta obra. É um dos melhores sonetistas da Língua Portuguesa. Bocage adotou o pseudônimo de Elmano Sadino. Note que Elmano é o próprio nome Manuel, em forma de anagrama, e Sadino refere-se ao rio Sado, da cidade de Setúbal, onde nasceu o poeta. Bocage é um dos mais expressivos poetas noturnos da Literatura Portuguesa. Em muitos dos seus sonetos, ressoam atmosferas sombrias, antecipando a imaginação ultra-romântica, que recusa a vida normal e medíocre de um cotidiano sem lugar para a aventura, o sonho, o desejo.
Outros sonetos de Bocage caracterizam-se pela mescla de Arcadismo e Romantismo. O poeta muitas vezes oscila entre a convenção - marca do tempo em que vive - e o impulso - necessidade do seu temperamento; entre o bucolismo convencional e a confissão sentimental romântica.
Uma parte frágil da sua lírica está na mistura indiscriminada de elementos árcades e românticos, justapostos sem unidade interna. Outra parte frágil está nos poemas que apresentam ritmos e imagens fáceis, poesia declamatória, de circunstância, feita para impressionar os ouvintes, com truques de retórica e eloqüência exagerada: este é um preço pago por Bocage para ser um poeta que saiu dos salões e levou a poesia para as ruas, ajudando, inclusive, a criar um público moderno, urbano, não aristocrático, para a poesia.
Por ser um poeta de faces múltiplas a obra literária de Bocage não pode ser simplesmente incluída no gênero literário do Neoclassicismo ou Arcadismo. O Bocage que ficou conhecido em Portugal e no Brasil é o poeta boêmio, satírico e erótico, que freqüentava o bar do Nicola e o Botequim das Parras. Além disso, apesar de Bocage dominar a técnica do verso, sendo considerado, devido a isso, como clássico, sua poesia vai muito além das convenções literárias da época. Essa transgressão às normas faz de Bocage um poeta de transição entre o Neoclassicismo e o Romantismo.
Por isso, e porque é sua poesia que, sem sobra de dúvidas, anuncia os primeiros valores do Romantismo em Portugal que Bocage é considerado por vários estudiosos como um poeta Pré-romântico.


3 OS SONETOS CAMONIANOS

Como alguém pode resistir aos efeitos do amor? Quando ele invade as pessoas podem ficar perturbadas, ter sensações contraditórias, não conseguindo raciocinar direito. Camões refletiu sobre isso e perguntou-se: O que é o amor? O próprio poeta tenta definir este sentimento:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
Camões mostra que o fogo não é apenas o que arde nos raios do sol. O poeta fala que o fogo pode arder dentro de cada pessoa como um amor, angústia ou paixão.
A poesia, em um contexto geral, revela o mundo interior do poeta, o seu modo de pensar, de sentir e de interpretar o mundo, as pessoas, as coisas. Por esse motivo toda poesia é subjetiva, é a operação capaz de transformar o mundo. A atividade poética é revolucionária por natureza, sendo um exercício espiritual de libertação interior. Silviano Santiago assim se expressa sobre o gênero lírico:
O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre, no entanto lugar para um destinatário que, apesar de ser sempre singular, não é pessoal porque necessariamente anônimo. Singular e anônimo o leitor, ele não é todos como também não é uma única pessoa. O poema não é um discurso em praça pública para a massa indistinta, nem papo a dois confluentes e íntimos, apesar de ser linguagem em travessia (1989, p.53).
Dessa maneira, a poesia é plurissignificativa, sendo que cada leitor pode fazer uma interpretação diferente. Ainda: o leitor pode fundir-se no mundo da lírica, sendo que se pode viver experiências, sentimentos, emoções, intuição. Isto faz também o leitor viver, de alguma forma, o que Camões expressa em sua lírica amorosa.
O humanismo renascentista é fundamentalmente antropocêntrico, ou seja, celebra a vida terrena e valoriza o homem racional que se coloca a si próprio no centro dos interesses e decisões. Acentua-se a individualidade, decorrente da confiança no poder da razão em estabelecer seus próprios caminhos. Está em processo a busca de formas não-religiosas de explicação do mundo e de si mesmo. Os versos a seguir comprovam a afirmação:
Enquanto quis fortuna que tivesse
esperanças d?algum contentamento,
o gosto dum suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho com o tormento,
pera que seus enganos não dissesse.
Os versos mencionados estão de acordo com os preceitos do Classicismo, já mostram concepções individualistas e ainda colocam o amor como algo racional, ou seja, algo que dependa do esforço humano. O eu lírico expressa seus sentimentos de maneira com que haja uma certeza da consolidação do amor.
Eduardo Portella define que a operação de criação e interpretação envolvem imaginação, já que ambas trabalham com a percepção estética, indo além da dimensão e das situações corriqueiras do cotidiano.
Na lírica, Camões foi influenciado diretamente por humanistas, sendo que existe a focalização sobre os desconcertos do mundo e as confidências amorosas do amante que sofre. É na lírica amorosa camoniana que o eu lírico nega a realização física do amor por entender que o sexo estraga o verdadeiro amor, entretanto este amor é visto como uma ideia universal, como abstração pura e perfeita, conforme mostram os versos:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Camões mostra em seus versos que o amor estava voltado essencialmente para as coisas do espírito, enfatizando a realidade concreta. De certa maneira o eu lírico acredita na capacidade de dominar e transformar o mundo, principalmente o amor almejado. Ainda vale ressaltar a idealização amorosa e o neoplatonismo que estavam vigentes na estética clássica. Segundo Eduardo Portella a imaginação organiza a multiplicidade, compõe a unidade, e daí resulta a obra (1985, p.31). Assim, Camões representa toda a sua genialidade em sua obra, como uma artista que transforma as palavras em expressão revolucionária do que é inusitado.
As concepções amorosas na poética camoniana são universais e revelam um espírito que busca a clareza e equilíbrio de ideias, como está disposto nos versos:
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo alcançar?
Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma.
De acordo com os versos, é manifestada uma concepção segundo a qual a realização amorosa se dá por meio da imaginação. Não é preciso ter a pessoa amada fisicamente, basta tê-la em pensamento. E, tendo-a dentro de si o eu lírico se transforma na pessoa amada, confunde-se com ela e dessa forma, já a tem.
Contudo, também fica em evidência um certo abandono ao neoplatonismo. Existe uma comparação que manifesta o desejo físico pela mulher amada: do mesmo modo que toda matéria busca uma forma, o seu amor puro e idealizado busca o objeto desse amor, ou seja, a mulher real.
Cada ser humano produz uma ação e elabora pensamentos conforme suas convicções e objetivando seus propósitos, isto é, construindo sua própria ideologia, partindo das relações de convivência social para alcançar o entendimento dos ideais que se sustentam em determinada corrente de pensamento e que movem o indivíduo a praticar suas ações. Assim, o poeta transforma-se no eu lírico para traduzir tudo o que está sentindo:
Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto desconcerto;
d?alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Nesse sentido, o amor revela-se como algo incerto, algo que desconcerta a alma, transforma o ser humano. Entretanto, amar está inteiramente ligado com as relações sociais, já que é o resultado da convivência a dois.
Os versos comparam o fogo com espera da realização do amor, e entre antíteses como choro e rio revelam a dualidade que o amor pode causar no ser que está amando. Cada pessoa pode se tornar um elemento de referência, capaz de transformar o contexto à sua volta, apoiado em sua capacidade individual e nas suas condições. Camões, como lírico, faz de sua poesia algo que está além de seu tempo, sendo que pode ser revivido inclusive nos dias atuais, já que o leitor consegue sentir na sua própria alma tudo o que está sendo dito nos versos.
De certo modo, a poesia camoniana leva o leitor a dimensões maiores, pois o amor move o ser humano de qualquer época ou lugar, sendo então, um tema universal:
Vós que, dos olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;

se ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que é tanto mais o amor depois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.
Adotando uma concepção racionalizada e platônica da bem-amada, o poeta ama a mulher não por ela própria, mas porque nela encontra refletido o sentido do amor absoluto, amor do amor, e não do ser que o inspirou. Pode-se observar que a palavra Amor é escrita com letra maiúscula, entende-se a partir daí que o amor é extremamente importante.
O amor é algo diverso, repleto de contrastes, antíteses, paradoxos e peculiaridades que o tornam tão singular quanto complexo. Por isso defini-lo é muito mais do que uma simples demonstração de conhecimento linguístico, é antes de tudo uma empreitada desafiadora:
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei o amor a todos evidente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, sospiros descuidados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
O amor condena, absolve, revela, esconde, simula, expõe. Por ele se luta, por ele se perde, por ele se joga, por ele se brinca, por ele se chora, por ele se vive.
Luís de Camões explicita em dizeres geniais que o amor abarca em uma pequena palavra um rol de citações que explicita boa parte de sua dinâmica conceitual. Basta lembrar que o amor pode justificar, determinar, agregar, permitir, superar, perdoar, prolongar, solicitar.
O termo amor destacado na poesia camoniana tem numerosas acepções, o que permite ao leitor um leque extenso de possibilidades de acordo com as vivências de cada um.


3.1 Os Sonetos de Bocage

No início de sua atividade literária Manuel Maria du Bocage seguiu os preceitos do Neoclassicismo, já que buscava a inspiração na antiguidade clássica e em Camões. Por outro lado, escreveu em um segundo momento poesias que falavam de seu mundo interior e os problemas existenciais, temáticas que estavam mais de acordo com os ideais da estética seguinte, o Romantismo.
Desse modo, Bocage em sua lírica está voltado mais para a emoção, abrindo mão da razão, que estava vigente. Isto pode ser observado nos seguintes versos:
Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura,
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas.

Se acusas os mortais, e os não obrigas,
Se, conhecendo o mal, não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura;
Importuna Razão, não me persigas.

O ser humano se diferencia das demais espécies porque tem a capacidade de produzir as condições de sua própria existência material e espiritual, isto é, o indivíduo pode determinar seu modo de vida a partir de sua própria produção e de seu relacionamento social com os demais seres humanos. O espírito de iniciativa e de criatividade são características do cidadão que atua no mundo em constante transformação. Assim, o amor é visto mais pelo lado emocional, do que pelo lado racional, já que o eu lírico procura uma desvinculação com a razão.
Entretanto, razão e amor encontram-se em dualidade no soneto em análise, pois ambos são escritos com a inicial maiúscula, dada a importância dos significados destas palavras para o poeta. Eduardo Portella conceitua:
O significado é decorrência do ser da linguagem que, se elaborada à imagem e semelhança da significação, não passará de uma escritura exteriorizante. É por isso que a poesia não comunica: é. E somente sendo, comunica.
Pode-se observar a partir do ponto de vista de Eduardo Portella que a poesia é toda emoção, ou toda sentimento, isto faz com que os leitores entrem em seu mundo e ainda vivam tudo o que está sendo dito.
Em Bocage há a idealização do sentimento, assim o amor e a paixão são buscados e colocados em prioridade, já que sem eles não se pode viver. A valorização do sentimento e da emoção leva o poeta a explorar o subjetivismo, configurando o eu lírico no centro do universo e o ego com diversas projeções do mundo interior.
Ainda na poesia Bocagiana é possível identificar um movimento complexo e contraditório, configurando momentos intensos:
Ânsias terríveis, íntimos tormentos,
Negras imagens, hórridas lembranças,
Amargosas, mortais desconfianças,
Deixai-me sossega alguns momentos.

Sofrei que logre os vãos contentamentos
Que sonham minhas doidas esperanças,
A posse de alvo rosto e loiras tranças,
Onde presos estão meus pensamentos.
Nos versos transcritos de Bocage destacam-se o flagrante da contradição e a complexidade do mundo interior. Nesse sentido, existe a tensão conturbada da experiência pessoal do eu lírico, entre angústias e sentimentos existe a construção do mundo idealizado.
É desenhada no soneto de Bocage uma expressão de individualidade, pois se encontra um mundo em que a paixão é sublime e incontrolavelmente necessária, deixando claro que as conturbadas lembranças do bem-querer não saem dos pensamentos do eu lírico.
Na concepção Bocagiana, a paixão consiste em um grande sofrimento e martírio, sendo que existe o entusiasmo muito intenso pelo ser amado e a idealização, sonhos e vontade de estar eternamente junto com a apaixonada, como mostram os versos:
Em que estado, meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso e duro!
Delido o coração de um fogo impuro,
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo;
Quando te encontro mais, mais te procuro;
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.
Enfim, o eu poético forma significados individualizados, estabelecendo relações internas com o mundo interior, apresentando ainda seus elementos constitutivos. É destacado o mundo espiritual e um sofrimento trágico, uma certa incredulidade que varia entre o amor e o ódio.
Há nos versos a representação de uma realidade interior, existindo o encantamento pelo seu bem, fazendo com que o eu lírico seja um sujeito apreciador e sobre tudo alguém que possui ânsia de encontrar e ficar constantemente com seu amor idealizado.
Existe o triunfo dos sentimentos nos versos de Bocage, fazendo com que a paixão seja algo alucinante, além da imaginação, habitando no mundo da fantasia, sendo isto provocado pelos impulsos do espírito que deseja o ser amado, cultivando o amor ideal e o sentimento trágico e melancólico.
A paixão revela por muitas vezes o desejo de que a amada fique longe por não merecer o amor que tanto lhe é devotado. Isto é mostrado nos versos:
Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga,
Horror do mundo, escândalo da gente,
Que um férreo peito, uma alma que não sente,
Não merece a paixão que me afadiga.

O céu te falte, a Terra te persiga,
Negras fúrias o Inferno te apresente,
E da baça tristeza o voraz dente
Morda o vil coração que Amor não liga.
A impossibilidade de realizar o sonho absoluto gera a melancolia, buscando uma solidão, chegando ao desespero de maltratar com palavras duras a paixão, querendo o seu mal e solicitando um afastamento.
O eu poético ama e ao mesmo tempo odeia, causando nostalgia em sentir a ausência do tão sonhado amor. Outra característica evidente é a confissão plena dos sentimentos e emoções que agitam seu íntimo, numa atitude individualista e profundamente pessoal, que recusa o controle da razão. É o triunfo da paixão e da sensibilidade.
O sentimentalismo expresso na obra de Bocage deixa em evidência o predomínio da solidão. Liberdade, paixão e emoção é o tripé que constitui a literatura produzida pelo poeta:
Por esta solidão, que não consente
Nem do sol, nem da Lua a claridade,
Ralado o peito já pela saudade,
Dou mil gemidos a Marília ausente.

De seus crimes a mancha inda recente
Lava Amor, e triunfa da verdade;
A beleza, apesar da falsidade,
Me ocupa o coração, me ocupa a mente.
O eu lírico volta-separa si mesmo, buscando expressar com profundidade seu interior e suas dificuldades em relacionar-se com o mundo externo.
De acordo com o período vigente se verificam traços típicos do gosto e da sensibilidade moderna, tais como a espontaneidade e a naturalidade dos sentimentos, o interesse pelo mundo concreto, a psicologização do eu, o respeito as tradições populares. Mostra um comportamento fortemente marcado pelo pessimismo, pelo negativismo existencial, pelo mórbido e pelo sentimentalismo excessivo.

3.3 Camões X Bocage

O soneto camoniano está de acordo com a lírica clássica, já que trabalha com a razão e ainda comprova a coexistência de resíduos tradicionais. Nesse âmbito, o poeta revela os anseios por um amor insatisfeito, pondo em destaque as contradições dos homens, além do constante confronto com a realidade exterior.
A lírica desenvolvida por Bocage encontra-se cheia de instabilidades, porque se encontrava em um período de transição entre Neoclassicismo e Romantismo. No entanto Bocage acaba pendendo mais para o lado romântico, sendo que isto causa algumas polêmicas no seu círculo de convivência.
Camões e Bocage trabalham com sentimentos, entretanto o primeiro está voltado mais para o lado racional, moldando em sua arte literária o amor, já o segundo desenha em sua criação os fervores da paixão. Salvatore D?Onófrio assim se expressa em relação à concepção clássica e à concepção romântica:
...podemos dizer que a primeira está impregnada do espírito apolíneo, personificação da ordem, da regra, da razão, do social, do cultural; a segunda está ligada ao espírito dionisíaco, que simboliza a desordem, o instinto individual, as forças do subconsciente coletivo, a liberdade em todas as suas manifestações (1997, p.334).
Assim, Camões estava mais de acordo com o espírito apolíneo, pois revela-se descontente com os rumos do amor, colocando o amor em dimensões maiores, em um sentido universal. Já Bocage está voltado mais para o espírito dionisíaco, porque forma de maneira subjetiva um sofrimento interior que não deveria ser comparado já que somente o eu lírico poderia sentir.
Ambas as poesias podem justificar salvação, abandono, solidão. Ainda a poesia em seu seio revolve todos os conflitos mesclando experiências, sentimentos, emoção, intuição e pensamento.
Pode-se dizer que apesar de tudo existe em ambos os poetas uma mistura de espíritos, porém ora há o predomínio de um e ora há o predomínio de outro, tal qual é mostrado por Salvatore D?Onófrio: Num texto literário, porém, o que se dá é apenas a predominância de formas e conteúdos apolíneos ou dionisíacos, nunca a exclusividade de um princípio estético, com a completa ausência do outro.
O amor apresentado em Camões transcende qualquer ciência, ele nasce, cresce e se multiplica, ocupando espaços maiores ou menores, mas sempre edificado com o que há de mais nobre no espírito e no coração do ser humano.
A paixão apresentada por Bocage é uma máscara que oculta o vazio, o sofrimento, o querer ser amado, é um convite a uma viagem ao mundo interior dos sentimentos arrebatadores, com os quais se vive e sofre-se.
Então, tanto os sonetos se Camões como os de Bocage falam de sentimentos, entretanto colocam um enfoque distinto. Um transcendendo o amor além de sua existência e o outro mergulha na incontrolável e arrebatadora paixão.
As poesias apresentadas vão além de seu tempo e espaço, pois revelam temáticas e valores que podem ser vivenciados por qualquer pessoa de qualquer época. Esta característica deixa certa inter-relação entre artista e leitor, como mostra Eduardo Portella:
Porque toda criação é produto da força imaginativa do homem, que é acentuada no artista, já que existe uma profunda diferença qualitativa entre a percepção estética, pluridimensional, instauradora e a percepção cotidiana, normal (1985, p.31).
Entre paixão e amor é revelada uma interação, fazendo com que estes temas universais levem leitores de diversas épocas a mergulharem nos sonetos camonianos e bocagianos. Isso implica em que os poemas não constroem apenas idéias e pensamentos, mas que revelam sentimentos, desejos emoções, fazendo com que o leitor viva tudo isto.
Camões exprime idéias e impressões ante o mundo exterior, construindo versos que revelam um amor universal, como um fogo que arde sem se ver. Bocage exprime emoções e sentimentos de um mundo interior, conjunto de ideais que mostram uma paixão, ou seja, um afeto intenso.
Embora o amor e a paixão sejam temas frequentes, os textos líricos podem falar de angústias, de dores, da vida, da morte e do prazer de viver. A lírica dos sonetos filtra a emoção do eu lírico, e expressa toda subjetividade possível.
Ainda hoje, muito das expressões artísticas de Camões e Bocage são vividas e encontram-se nos diversos comportamentos sociais. As situações contemporâneas que envolvem os sentimentos são imitações diretas da emoção, da intuição, da inspiração e da espontaneidade. De certa maneira pode-se encontrar a criação destes poetas no turbulento mundo atual.





















CONSIDERAÇÕES

A ideia de distinguir os sentimentos do Amor e da Paixão, manifestados na forma poética soneto, foi desenvolvida a partir de diversas teorias e estudos a respeito do tema abordado neste trabalho.
Primeiramente, procurou-se investigar as origens filosóficas dos sentimentos observados criticamente, para então, compreender a caracterização, ou até mesmo o significado universal de ambos, na criação poética manifestada pelos poetas Camões e Bocage. Sendo necessário considerar a rigidez das estéticas quanto à forma de composição, impossível descartar o prestígio literário e a irreverência dos poetas, na expressão de motivos poéticos, e até mesmo na persistente análise a qual seus sonetos foram submetidos.
No percurso do desenvolvimento desta pesquisa monográfica, é possível afirmar-se a presença e a contribuição inesgotável de Camões e de Bocage na Literatura Portuguesa, bem como nas demais literaturas mundiais. Além de revisitá-los e vivificá-los na atualidade, foi possível responder sobre o verdadeiro valor dos temas abordados e comprovar a riqueza do vocabulário, a disciplina na forma de compor, a beleza e a genialidade dos sonetistas que transitam entre os séculos XVI e XVIII.
Como base teórica utilizou-se os estudos de Hênio Tavares, em seu livro intitulado: Teoria Literária. Neste livro didático o autor nos apresenta, concisamente, uma ilustração dos esquemas presentes nos sonetos, com uma exemplificação rica e aberta em suas interpretações, mostrando a adequação entre a disciplina didática e a criação poética. O interesse principal é incentivar a iniciação de jovens estudiosos da arte de poetar, assim como, romper com o convencionalismo literário facilitando as interpretações dos fatos literários.
Contribuiu, também, nesta pesquisa os estudos de Francisco Maciel Silveira, Lênia Márcia de Medeiros Mongelli e Maria Helena Ribeiro da Cunha, mais especificamente com o livro intitulado A Literatura Portuguesa em Perspectiva, dirigido por Massaud Moisés. Neste material, os autores oferecem um estudo peculiar relacionado às estéticas do Classicismo, Barroco e Arcadismo, onde se pode averiguar a produção literária portuguesa durante os séculos XVI, XVII e XVIII
Bem como, esclarecem segundo o diretor do estudo, a historiografia crítica, e não meramente descritiva, quer se refira às obras, quer às correntes em que se situam; Historiografia seletiva e, por conseguinte, avaliativa, buscando rever o passado a fim de conhecer o que dele permaneceu, e julgá-lo segundo parâmetros de hoje.
Além destes valiosos pesquisadores temos, ainda, como embasamento teórico a seleção realizada por Leodegário Amarante de Azevedo Filho, Doutor em Letras e Professor Titular de Literatura Portuguesa, em seu livro Os Melhores Poemas de Luís Vaz de Camões. Aqui se observa a exposição da generosa lírica de Camões, baseada unicamente nos manuscritos quinhentistas. É, sobretudo, colocada em termos maneiristas, em relação ao amor e à esperança perdida, as dúvidas constantes do poeta, assim como sugere o autor o porquê o homem vive a tensão dolorosa entre a carne e o espírito, já numa antecipação barroca.
Outra contribuição importante para o desenvolvimento da monografia foi à edição preparada pelo Professor Álvaro Cardoso Gomes, Bocage, Poemas Escolhidos. Comprova-se, neste estudo, a bagagem neoclássica de Bocage quanto à forma de compor, e os argumentos que moveram o poeta a fazer soar na poesia portuguesa a nota pré-romântica. Utilizada como aparato crítico e também de caráter didático, a presente edição é direcionada para estudantes e pesquisadores, para os que lecionam Literatura Portuguesa, tanto no ensino médio como nos Cursos de Letras.
Para finalizar as observações sobre as correntes teóricas que guiaram esta pesquisa científica, faz-se necessário esclarecer que seria impossível desenvolvê-la, sem as colaborações citadas acima, as quais determinaram o sucesso dessa análise comparativa, baseada nos sonetos dos poetas portugueses Camões e Bocage.












REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


D?ONÓFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: Autores e obras fundamentais. 2 ed. São Paulo: Ática, 1997.

PORTELLA, Eduardo. Teoria da Comunicação Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1985.

PLATÃO. O banquete. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

SARAIVA Antonio José. LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Portugal: Porto, 1975.

SILVEIRA, Francisco Maciel. MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. DA CUNHA, Maria Helena Ribeiro; direção MOISÉS, Massaud. A LITERATURA PORTUGUESA EM PERSPECTIVA. São Paulo: Atlas,1993.