O aborto e a influência da moral

Por Thiago Wesley Costa Machado | 31/08/2016 | Direito

O aborto é tipificado como crime na parte especial do Código Penal Brasileiro, sendo abordado do artigo 124 ao artigo 128. Tendo em vista que este diploma legal data do ano de 1940, tem-se a dimensão do quanto ele se encontra defasado em relação às inúmeras descobertas da medicina e da genética, assim como permanece anacronicamente alheio aos debates e dilemas modernos da bioética.

O penalista Frederico Marques dá a sua definição de aborto: “Para o Direito Penal e do ponto de vista médico-legal, o aborto é a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção”[1]. Para Aníbal Bruno:

Segundo se admite geralmente, provocar aborto é interromper o processo fisiológico da gestação, com a conseqüente morte do feto. Tem-se admitido muitas vezes o aborto ou como a expulsão prematura do feto, ou como a interrupção do processo de gestação. Mas nem um nem outro desses fatos bastará isoladamente para caracterizá-lo[2].

A doutrina penal faz a classificação do aborto em duas espécies: a) Natural ou espontânea b) provocado (dolosa ou culposamente). O primeiro seria aquele decorrente de complicações ou enfermidades naturais que eventualmente acometem as mulheres no decurso de uma gestação, provocando a morte do feto. O provocado, em sua modalidade culposa, não encontra previsão no texto legal, motivo pelo qual é considerado um indiferente penal.

Já o aborto provocado dolosamente está previsto nos artigos 124, 125 e 126 do CP, correspondendo aos casos de autoaborto, aborto provocado por terceiro e aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante. Faz-se útil a leitura integral dos dispositivos:

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Se na revisão bibliográfica que se fez de alguns autores civilistas já se manifestava o pesado juízo de reprovação moral por trás dos argumentos jurídicos, na seara penal essa evidência é ainda mais forte, ora se invocando as razões eternas do jusnaturalismo, instrumento teórico preferencial dos que se contrapõem ao aborto, ora se assumindo uma posição abertamente religiosa sobre o assunto. Não deixa de ser interessante notar como o Direito Natural assume, nesta discussão, um papel substitutivo da religião. Civilistas e penalistas, cientes da inadequação de se usar uma linguagem religiosa na construção de argumentos jurídicos, invocam os direitos naturais para se contrapor a qualquer possibilidade de autonomia individual da mulher no controle de sua gestação e do próprio corpo. Se os argumentos não podem ser achados no Céu, que o sejam no Mundo das Idéias racionalista.

Por vezes a motivação religiosa, no entanto, é bastante clara, ignorando quaisquer princípios liberais de respeito à liberdade de crença ou religião. Diz Rogério Greco, se insurgindo contra o aborto:

Por outro lado, há os defensores da vida, principalmente a do ser que está em formação. Quando a gestante engravida, uma nova vida começa a crescer em seu útero.

No livro de Jeremias, constante do Antigo Testamento, percebemos, pela Palavra de Deus, que Ele já nos conhecia antes mesmo de haver a fecundação do óvulo materno, pelo espermatozóide do homem. Quando o Senhor constituiu Jeremias como profeta, Ele o tinha feito antes mesmo do seu nascimento. Na verdade, antes mesmo que se tivesse formado no ventre materno. Vejamos, literalmente, o que diz esta passagem no livro de Jeremias, Capítulo 1, versículos 5 e 6. (Rogério Greco, volume 2, pág. 224)

Mas é mesmo o Direito Natural o fundamento argumentativo utilizado majoritariamente por penalistas, assim como já o era dentre os civilistas, para justificar suas posições sobre o assunto. E o fazem não como mais uma razão dentre inúmeras outras, mas como a razão definitiva, ao qual nem a lei positiva nem a vontade dos homens poderia se opor. O aborto é um desrespeito a estas leis inflexíveis, pois estariam escritas não em constituições ou códigos de qualquer ramo jurídico, subordinadas à caducidade histórica ou geracional, mas na disposição imutável do universo racional. O jusnaturalismo paira sobre o tema com o tom místico ou sobrenatural que normalmente caberia à religião, se esta não fosse convencionalmente rejeitada pelas exigências de laicidade e neutralidade religiosa na discussão de assuntos públicos.

Walter Moraes, em artigo publicado versando sobre a possibilidade de uma autorização judicial para que a mulher pudesse realizar o procedimento abortivo, atesta:

A terceira razão, de si mesma suficiente como as duas anteriores, para denegar licença de abortamento, é de direito natural. Limito-me, aqui, a relembrar duas ou três premissas, considerando, por suposição, que as linhas mestras do direito natural concernente à vida estejam abundantemente demonstradas.

A primeira é a de que a lei natural não admite, em hipótese alguma, o abortamento direto. Quer dizer: nenhuma ação, nenhum comportamento dirigido diretamente a matar o feto, quer no ventre materno, quer pela expulsão inviável, se admite como lícito – ainda que a benefício da saúde e mesmo da vida da mãe.

Uma coisa que a lei natural jamais tolera – jamais- é matar o inocente; como é o caso do aborto: que tem a ver o filho com o fato de ter sido concebido através de estupro?

Por direito natural, assim como uma pessoa, como tal, não vale mais do que outra pessoa como tal, assim também uma vida humana não vale mais do que outra vida.

A vida da mãe não vale mais do que a do filho. (pág 28)[3]

O jurista possui uma visão particularmente radical sobre o assunto, negando até mesmo a legitimidade das hipóteses legalmente permitidas de aborto. Em seu texto, cita trechos de outros penalistas como “todas as maternidades são sagradas, todas as vidas são invioláveis (Alcântara Machado)”. O uso de termos como “sagrado” ou “pecado” insere-se entre as razões de direito natural, dando origem a argumentações de fundamento híbrido: não se sabe bem onde acaba o jusnaturalismo, e onde se inicia a influência da moral cristã. Prossegue o jurista:

Estas observações eu as faço só para pôr à mostra o fato de que, quando, ainda hoje, se invoca o aborto terapêutico para justificar o feticídio, na verdade se está lançando mãe de um pretexto.

Todavia, mesmo que ocorresse situação real de perigo para a vida da mãe – vamos admiti-lo ad argumentandum – e não bastassem as razões técnicas que propus para convencer da ilegalidade de uma decisão judicial autorizando o abortamento, é certo que a lei natural não faculta, nem justifica, nunca, a provocação do aborto direto, quaisquer que sejam as circunstâncias de fato.

A lei positiva que contraria (lei injusta) a lei da natureza, não vale.

Não obriga porque, sendo contra a natureza, é mero capricho irracional; e um capricho irracional não pode obrigar: na linguagem de JOÃO MESSNER, não é a “verdade jurídica”; na linguagem de TOMÁS DE AQUINO, simplesmente, não é lei (...)

Noutras palavras, os ditames do direito natural orientam a inteligência da lei penal e do ordenamento todo no sentido de que, com toda certeza, o aborto em questão, eximido embora de pena, é ilícito, não podendo nenhum juiz deferi-lo.

Moraes insurge-se mesmo contra qualquer possibilidade de escolha individual da mulher no assunto. Não cogita qualquer reforma legislativa que descriminalizasse o fato, negando a legitimidade até mesmo das hipóteses legais do aborto. O aborto terapêutico, em sua opinião, é um mero pretexto para o feticídio. Não há valoração possível entre a vida da mãe e do feto, ambos se equivalendo em suas existências. O aborto humanitário tampouco tem o seu aval, visto que à mãe não deveria ser dado este direito, devendo suportar sozinha as conseqüências da violência a que foi submetida, tudo em nome de “leis da natureza” ou “estado natural de todas as coisas”.

Rogério Greco, assim como Walter Moraes, não vê nuances nas etapas do desenvolvimento humano, não admitindo que existam graus diferentes de frustração na morte de um embrião e da de uma criança de 10 anos. Aduz o penalista:

A vida, independentemente do seu tempo, deve ser protegida. Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas 10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não importando sua quantidade de tempo (pág 225).

[...]

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