O ABORTO DE ANECÉFALOS E OS LIMITES AO PRÓPRIO CORPO
Por Felipe Pereira Noronha | 12/02/2016 | DireitoINTRODUÇÃO
A luta por liberdades individuais é o tom da sociedade ocidental, especialmente a partir do século XVIII. No século XX a luta é pelos direitos das chamadas minorias historicamente oprimidas, dentre elas as mulheres. A liberdade conquistada por elas ao longo do século passado lhes trouxe ao mesmo patamar do homem no que diz respeito às relações de poder na sociedade capitalista. Hoje, a mulher privilegia a formação acadêmica, a realização profissional o gozo da liberdade sexual a casar e ser dona de casa. Porém, ter filhos ainda é uma vontade premente da mulher. Não se trata apenas de sonho, mas de uma necessidade biológica, pois o corpo da mulher todos os meses se prepara para tal. Ocorre que as conseqüências de uma gravidez podem ser terríveis para a mulher quando ela descobre que carrega um feto anencefálico.
A partir dessa problemática se levanta a questão do aborto de anencefálicos, da liberdade da mulher de sobre seu próprio corpo, considerando aspectos legais, religiosos e sociais. Assim, o presente trabalho fará inicialmente uma breve análise sobre o tema aborto; em seguida mostra qual o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a particularidade da anencefalia, bem como suas conseqüências imediatas na sociedade brasileira; trará também os direitos envolvidos dentro dessa discussão; por fim um posicionamento a respeito do tema.
1 BREVE ANÁLISE SOBRE O TEMA ABORTO
Mergulhando na história, a prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, ficava, de regra, impune, quando não acarretasse dano à saúde ou a morte da gestante, sendo comum entre as civilizações, tendo em vista que assegurada a saúde da gestante ela poderia posteriormente vir a dar à luz outros filhos. Entre os hebreus só depois da lei mosaica que se considerou ilícita a interrupção da gravidez. Em Roma a mulher poderia abortar, pois poderia dispor de seu próprio corpo. Posteriormente o aborto passou a ser considerado como uma lesão ao direito do marido à prole, assim sua prática passou a ser castigada (COULANGES, 1999). Levando em consideração essas análises, foi tipificado no Brasil a prática de aborto sem autorização judicial como crime, salvo em casos de estupro e quando a gravidez pôr em risco a vida da gestante.
Nos dias de hoje é comum questionar a respeito da liberdade que a mulher dispõe sobre a decisão do aborto, pois de um lado está o direito a vida do feto e do outro o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo. De acordo com os princípios dos direitos humanos e da cidadania a mulher tem o reconhecimento da sua competência ética para decidir sobre sua sexualidade e reprodução.Sem discriminação e tendo garantidos os direitos à concepção, à proteção da maternidade, à anticoncepção, e à interrupção de uma gravidez não desejada ou não planejada. (BUGLIONE, 2005 p. 53 – 55, p. 176)
O homem tem leis e considera que nada pode ser feito que as contrarie. Uma lei em especial, analisa a interrupção da gestação. Na legislação brasileira, o aborto é considerado crime, exceto em duas situações: de estupro e de risco de vida materno, previstos no artigo 128 do Código Penal. Diversas tentativas de alteração, através de anteprojetos de lei foram tentadas com relação à parte especial do Código Penal nacional visando ampliar os casos de não antijuricidade. Há, por exemplo, um Anteprojeto de Lei tramitando no Congresso Nacional, que inclui uma terceira possibilidade, quando há constatação de anomalias fetais.
Num sentido etimológico, aborto significa privação do nascimento. Advém de ab significa privação e ortus nascimento. De acordo com E. Magalhães Noronha (2007, p. 53), aborto é a interrupção da gravidez, com a destruição do produto da concepção (ovo, embrião, ou feto). A interrupção da gestação há de ser intencional, uma vez que a legislação penal tipifica apenas o aborto na forma dolosa (LIMA apud NORONHA, Editora Rideel 2007, p. 53) O aborto no plano jurídico é a interrupção de uma gestação a qualquer tempo antes do nascimento (PATRIARCHA, 2011). Neste sentido muitos doutrinadores julgam que o aborto é sim um crime de homicídio, pois feito o mesmo cessa os direitos futuros daquele que poderia vir a se tornar um cidadão.
2 O ABORTO DE ANENCÉFALOS: O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Por anencefalia entende-se pela falta ou má formação do cérebro ou da calota craniana do feto. Embora o coração bata, não há atividade cerebral. Tal fato implica a inviabilidade da vida extra-uterina, pois o sistema nervoso central não funciona. Nos últimos anos, a discussão sobre a possibilidade de interromper a gestação de anencéfalos foi premente na sociedade brasileira. De acordo com o Código Penal, o aborto é crime em todos os casos, exceto se houver estupro ou risco de morte a mãe. Porém, neste ano (2012), a Corte Suprema do Brasil decidiu que no caso de uma gestação de anencéfalos, é descriminalizada a prática do aborto. Nesse sentido é válido explicitar o entendimento de alguns dos Ministros acerca do tema tendo como referência a seção ocorrida ao dia 14 de abril.
O Ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, considerou inconstitucional a interpretação que trata como crime interromper a gravidez de feto anencéfalo. De acordo com Marco Aurélio Mello, o termo aborto não é correto para casos de anencefalia, pois não há possibilidade de vida do feto nessas condições. “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”, afirmou o relator.
O voto auferido pela ministra, Cármen Lúcia nos faz pensar sobre o princípio da dignidade da vida e também sobre os limites que o Estado impõe sobre o próprio corpo
Não é escolha fácil. Todas as opções são de dor. Exatamente, fundado na dignidade da vida, neste caso, acho que esta interrupção não é criminalizável. [...] O útero é o primeiro berço do ser humano. Quando o berço se transforma em um pequeno esquife a vida se entorta.
O voto do ministro Luiz Fux foi o seguinte:
É tão justo admitir que a mulher aguarde nove meses para que dê a luz ao feto anencefálico e também representa a justiça não se permitir que uma mulher que padece dessa tragédia durante nove meses, assistir à missa de sétimo dia do seu filho seja criminalizada e colocada no tribunal de júri como se fosse a praticante de um crime contra a vida.
O voto da Ministra Rosa Weber: “O crime de aborto quer dizer a interrupção da vida e, por tudo o que foi debatido nesta ação, a anencefalia não é compatível com essas características que consubstanciam a ideia de vida para o Direito”.
Em contra partida o Ministro Ricardo Lewandowski foi contra os demais colegas de seção ao votar contra, afirmando que não é papel da Corte analisar este caso do feto anencéfalo, pois estaria usurpando o papel do Legislativo. O voto do Ministro foi:
Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos anencéfalos, ao arrepio da legislação existente, além de discutível do ponto de vista científico, abriria as portas para a interrupção de gestações de inúmeros embriões que sofrem ou viriam sofrer outras doenças genéticas ou adquiridas que de algum modo levariam ao encurtamento de sua vida intra ou extra-uterina.
A partir do entendimento da Corte, o Professor Luíz Flávio Gomes publicou em seu blog na internet:
A partir do voto do Min. Marco Aurélio e dos que o acompanharam podemos extrair o seguinte: tornou sem sentido qualquer pedido de aborto anencefálico perante os juízes. Não há que se falar em autorização judicial. Aborto anencefálico não é crime, de acordo com a decisão do STF. Ninguém pode ser processado por isso. Fato formalmente atípico. Inquérito policial instaurado para apurar esse “aborto” deve ser arquivado (desde presentes todos os requisitos legais). Ação penal em andamento: deve ser trancada imediatamente (se presentes os requisitos da anencefalia). Se alguém está cumprindo execução penal: cessa imediatamente a execução. Não cabe nenhuma medida coercitiva com base nesse fato. A interpretação conforme a Constituição, do STF, equivale a uma “abolitio criminis”, porém, com efeito mais amplo, porque aqui não cabe sequer indenização civil[1].
3 DIREITOS DA PERSONALIDADE
3.1 Do Princípio da Dignidade da pessoa humana aos Direitos da personalidade
O período pós-II Guerra Mundial, no campo dos Direitos, foi marcado pela discussão sobre a dignidade humana diante das atrocidades cometidas pelos Governos totalitários. Tais discussões culminaram no entendimento de que a dignidade é aferida ao homem simplesmente por sua condição humana, racional, portanto, intrínseca.
A dignidade é inata ao homem, mas ao longo do convívio social ela é acrescida de direitos. Nesse sentido, Rizzato Nunes (2010, p.64) levanta dois aspectos análogos, mas distintos: o primeiro diz respeito à inerência pela condição humana e o segundo dirigido à vida das pessoas, à possibilidade e ao direito que têm as pessoas de viver uma vida digna. Maria Celina Bodin de Moraes (apud ALVARENGA, 2010, p. 16) vai além e nos indica quatro aspectos fundamentais à dignidade: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade.
De fato não há um conceito fechado de Dignidade da pessoa humana, porém é ela que fundamenta o ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, expressa no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, “funciona como princípio maior para a integração de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no Texto Constitucional” (NUNES, 2010, p. 60). Nesse sentido, é ela que dá essência aos chamados Direitos da Personalidade. Maria Helena Diniz (2007, p.116-117) corrobora quando diz que os Direitos da Personalidade são o resultado da discussão sobre a noção de dignidade da pessoa humana adquirida ou construída pela razão jurídica a partir dos desdobramentos da II Guerra Mundial, embora a discussão sobre direitos individuais remonte à Grécia Antiga, a Roma e especialmente à Modernidade pela influência do pensamento liberal.
A personalidade segundo Diniz não constitui um direito em si, mas uma aptidão do homem, por tratar-se de pessoa natural (ser humano), para adquirir direitos e contrair obrigações, ou seja, é uma aptidão que o homem tem para ser sujeito de relações jurídicas — vale lembrar que o exercício desses direitos chama-se capacidade jurídica —. A personalidade
é objeto de Direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence com primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens. [...] Os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a identidade a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria etc. Logo, [...] são simples permissões, dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta (TELLES JR apud DINIZ, 2007, p. 118).
Os direitos da personalidade são também dotados de algumas características: absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis.
3.2 Disposições sobre Direito ao corpo
O Direito ao corpo também constitui um direito da personalidade. “Abrange tanto a sua integralidade como as partes dele destacáveis e sobre as quais exerce o direito de disposição. Considerando-se, assim, coisas de propriedade do titular do respectivo corpo” (GONÇALVES, 2003, p. 163). Sobre esse direito o Código Civil brasileiro limita-se aos artigos 13 e 14 que dizem o seguinte:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único: O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Art.14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único: O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo
Alguns doutrinadores entendem que o direito de dispor do próprio corpo está ligado à proteção da integridade física e, por conseguinte, à vida. Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 162), por exemplo, diz o seguinte:
o direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo vivo ou morto, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes suscetíveis de separação e individualização, quer ainda ao direito de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico.
Entende esse autor que a proteção jurídica da vida humana e da integridade física tem como objetivo a preservação dos mesmos, resguardados pela Constituição Federal (art. 1; III e art. 5; III), pelo Código Civil (artigos 12 a 15; 186 e 948 a 951) e pelo Código Penal ao punir quatro tipos de crime contra a vida (homicídio; induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; infanticídio e aborto) nos artigos 121 a 128 e o crime de lesão corporal no artigo 129.
3.3 A condição do Nascituro
O Código Civil brasileiro dispõe em seu artigo 2 que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Nesse sentido, o nascituro ainda não é sujeito de direito, ainda não é dotado de personalidade, que só terá se de fato nascer com vida, ou seja, se ao ser separado das vísceras maternas respirar. Porém, o entendimento que se tem é que o nascituro tem direitos potenciais, ou seja, tem direitos que estão em suspenso, aguardando o provável nascimento com vida.
Venosa (2003, p. 161) frisa que
A posição do nascituro é peculiar, pois o nascituro já tem um regime protetivo tanto no Direito Civil quanto no Direito Penal, entre nós, embora não tenha ainda todos os requisitos da personalidade. Desse modo, de acordo com nossa legislação, inclusive o Código [Civil] de 2002, embora o nascituro não seja considerado pessoa, tem a proteção legal de seus direitos desde a concepção.
Maria Helena Diniz (2007, p. 195-196) ressalta que o nascituro tem personalidade do ponto de vista formal e ao nascer com vida adquiri a personalidade do ponto de vista material. Além disso, destaca também alguns dos principais direitos desse ente, tais como: o direito à vida, à filiação, à integridade física, a alimentos, a uma adequada assistência pré-natal, à representação a ser contemplado por doação, a ser adotado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho apresentado teve como enfoque a liberdade ao corpo principalmente no que diz respeito ao aborto de anencéfalo, tendo em vista que o feto não tem sequer chance de vida fora do útero. A medicina evoluiu e possibilitou as mães a ter um diagnóstico mais preciso. Isso trouxe benefícios tanto para a mãe quanto para o feto, no sentido de evitar determinados traumas. A decisão da Corte visa a legalização do aborto do anencéfalo pois o principal foco é o estado da mãe, em saber que carrega em seu ventre algo que não terá futuro. O voto do então relator o Ministro Marco Aurélio de Mello é bem claro quando ele faz a seguinte análise: “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”. Os direitos que são envolvidos são o da dignidade da pessoa ou da mulher e o direito a liberdade do corpo, esses direitos são garantidos na Constituição e por isso devem ser respeitados e mantidos por isso a Corte julgou incostitucional.
A decisão do STF é vista como um grande passo para as mulheres que lutam pela sua dignidade, uma coisa que é defendida pela própria Constituição, lutar e conquistar a dispensa de autorização judicial para interromper a gestação de feto anencéfalo representa um passo crucial no que diz respeito à autonomia, à dignidade e aos direitos reprodutivos das mulheres.
REFERÊNCIAS
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça. Saraiva: São Paulo, 2005;
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. 2ª Ed., Edipro: São Paulo, 1999;
PATRIARCHA, Giselle Christine Malzac. Interrupção da gestação do feto anencéfalo: aborto ou antecipação terapêutica do parto?. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2971, 20 ago. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19826>. Acesso em: 26 maio 2012;
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal vol.1. Rideel: São Paulo, 2007;
G1. Agência.Veja como votaram os ministros do STF sobre aborto de feto sem cérebro. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/04/veja-como-votaram-os-ministros-do-stf-sobre-aborto-de-feto-sem-cerebro.html. Acesso em: 12/04/2012;
GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: não é crime (decide o STF). Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2012/04/11/aborto-anencefalico-nao-e-crime-decide-o-stf/. Acesso em: 15/05/2012;
NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. 3ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2010;
ALVARENGA, Luísa Baran de Mello. Atos de Disposição sobre o próprio corpo: o caso da bodymodification. Monografia apresentada ao Departamento do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 2010.2;
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 24ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2007;
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. vol 1, Parte Geral, Saraiva: São Paulo, 2003;
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. 3ª Ed. Atlas: São Paulo, 2003.
[1] Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2012/04/11/aborto-anencefalico-nao-e-crime-decide-o-stf/. Acesso em: 15/05/2012