Nove Minutos

Por Robledo Castro | 16/01/2009 | Crônicas

6h51. O rádio-relógio despertou com aquele som que só dele pensar o corpo estremecia. Esticou o braço até o aparelho e mesmo com a escuridão artificial causada pelo blackout da cortina alcançou o botão “soneca” com precisão cirúrgica. Incrível como todos os dias acertava na mosca. Tal precisão lhe dava o direito de ficar mais nove minutos na cama. Benditos nove minutos. Imprescindíveis nove minutos. Nove minutos que, se não existissem, seria o mesmo que não ter pregado os olhos a noite toda. Esse era um ritual dos dias úteis. Coisa que os anos de serviço público tinham imposto. E para ele não se tratava apenas de mais nove minutos de sono. Era mais. Era a conclusão de algo. Era o final de um livro. Era aquele momento em que a platéia espera para aplaudir de pé. Se bem que, aplaudir não pode porque faz barulho. E barulho nesses nove minutos não é permitido.

7h00. Ele teve a nítida impressão de que acabara de fechar os olhos desde a última vez que o despertador tocou. Nunca os tão sagrados quinhentos e quarenta segundos tinham passado tão rápido. Isso o fez lembrar das palavras da namorada na festa da noite anterior.

– Você já tomou duas caipirinhas, fora a cerveja. Tá querendo barbarizar, é?

Realmente ele estava se sentindo um bárbaro. Um viking. Um ogro. Estava com a sensação de não ter escovado os dentes nas últimas semanas e a cabeça latejava no ritmo do “pipipi” do relógio. Resolveu fazer, então, o que sempre evitava: utilizar-se novamente do recurso amigo. Raríssimas as vezes que ele voltava a dormir depois das sete. Era um funcionário exemplar. Não podia se dar ao luxo de chegar atrasado na repartição. Mas esse era um momento crítico e com o passar dos anos ele tinha aprendido a reconhecer momentos como esses. E novamente a precisão não lhe faltou.

7h09. – Cacete – esbravejou envolto pelo edredom que mais parecia sua segunda pele. Teve vontade de esganar o infeliz que deu a idéia de fazer caipirinha. Tentou utilizar a função “soneca” novamente, mas pela primeira vez não teve a precisão necessária. Entendeu isso como um aviso e desligou o despertador pela tomada. Ficou indignado. Nunca aquele velho colchão fora tão confortável. Tentou levantar de súbito mas a cama parecia ter adquirido braços que o abraçavam. Tentou novamente e conseguiu. Tateou a parede para achar o interruptor – em dias normais não teria dificuldade para tal feito. Ao ligar a luz, pensou estar de frente para um caminhão de faróis altos. Passados os segundos de cegueira, respirou fundo, abriu a porta do quarto e tomou a direção do banheiro.

Olhou sua cara no espelho que, naturalmente, não estava das melhores. Enquanto escovava os dentes tentou bolar uma desculpa convincente para faltar ao trabalho. Mas isso não seria direito, iria contra seus princípios. – Foda-se os princípios – disse com a boca cheia de creme dental. Mas pensou duas vezes e resolveu trabalhar. No caminho para a cozinha achou estranho a empregada ainda não ter chegado. Botou a culpa nas enchentes, no trânsito, no governo e em mais um punhado de coisas que lhe vieram à cabeça. – Maldita dor de cabeça – praguejou baixinho. Fez um café forte, largou metade do pão que havia preparado e sacou a última aspirina da cartela. – Diazinho – pensou.

Enquanto dava o nó na gravata apressadamente para não se atrasar lembrou-se de umas recomendações que deveria dar a empregada. Pegou o celular e discou.

– Bom dia, dona Marta.

– Bom dia, doutor Marcelo.

– É que como a senhora ainda não chegou, gostaria de deixar umas recomendações sobre a comida para o jantar.

– Mas pra segunda já?

– Segunda não, dona Marta. Pra hoje mesmo.

– Mas hoje eu não vou, doutor.

– Mas como não vem?

– Hoje não é meu dia.

– Mas como não é seu dia?

– Hoje é sábado, doutor Marcelo. Eu não trabalho sábado.

– Sábado?

– É.

– ...

– Doutor Marcelo?

– Então tá, dona Marta. Segunda nos falamos então.

– Tá bom, doutor.

7h36. Incrédulo, doutor Marcelo afrouxou a gravata sentindo-se um estúpido. Sabia que mesmo os funcionários públicos mais exemplares não trabalhavam aos sábados. Sentou-se na beirada da cama e deixou o corpo cair. Sentiu o colchão diferente. Aquela cama que minutos atrás o abraçava para que ele não se levantasse parecia agora não aceitá-lo de volta. Ele não quis forçar a barra. Levantou-se, tirou a roupa do trabalho e colocou uma bermuda. Sentado em frente da TV abriu uma cerveja e zapeou pelos canais sem deter-se em nenhum. Teve vontade de escutar novamente o barulho do despertador para testar sua mira. Colocou a lata vazia sobre a mesinha ao lado do sofá e encaminhou-se para a cozinha para pegar outra cerveja.

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