Nova Perspectiva Moral E ética Para O Direito

Por Flávia Leal Vilanova | 01/06/2007 | Direito

NOVA PERSPECTIVA MORAL E ÉTICA PARA O DIREITO

1. INTRODUCÃO

O ser humano e a sua capacidade de racionalizar o seu entorno social e buscar soluções para os problemas que a sua própria existência traz, utiliza da sua capacidade que o torna único e ao mesmo tempo o mais complexo de todos os seres, a razão.

A razão é uma faculdade humana que possibilita estabelecer relações lógicas, ponderar e julgar. Mas, a razão deve ser utilizada também para encontrar a medida entre todas as coisas, depende assim, para sua correta e ampla utilização de um grande esforço humano, na medida em que, ao tempo que exige objetividade, necessita ainda, de subjetividade para compreender, mesurar e encontrar soluções mais apropriadas ás questões sociais que nos cercam. 

O homem, influenciado pelo pensamento iluminista, passou a entender a razão como um dom, uma grande descoberta, que nos permitiu sair da nossa vil qualidade de humano para nos tornar deuses oniscientes sobre todas as questões da vida e da convivência pacifica e harmônica com os demais seres da nossa espécie, utilizando-se do Direito para regulamentar tais relações. Mas, com o passar do tempo e diante da realidade atualmente vivenciada, a razão pura e simples, mostrou-se ser insuficiente para resolver os conflitos das relações estabelecidas entre os homens.

Hoje, diante da realidade social que vivemos de inseguranças e incertezas, onde a fronteira entre o que é moralmente correto ou incorreto não pode ser avistada com clareza, talvez seja o momento de repensar sobre a razão e como esta deve ser aplicada às questões que a sociedade enfrenta. É chegada à hora de perceber que “ser humano” é a melhor das nossas faculdades para compreender e solucionar problemas tão simplesmente humanos. E entender que a razão não deve nos afastar da qualidade humana que a nós é inerente, mas ser tão somente uma entre as tantas perspectivas que devem ser analisadas quando se constrói ou se aplica uma lei.

Emerge na sociedade atual a necessidade de uma nova moral, mas não uma simples mudança de princípios e normas morais, pois estes mudaram com o decorrer do tempo e da história e ainda assim não podemos dizer que as substituições morais avançaram ou estão em um nível superior. Não se pode afirmar que o progresso moral acompanha o progresso histórico que o homem foi capaz de produzir. Pois apesar do progresso histórico ter criado condições necessárias para o progresso moral, ao mesmo tempo afetou de maneira não propriamente positiva à sociedade do ponto de vista moral, pois não podemos afirmar que a sociedade está rumo a uma direção moralmente boa.

Necessitamos mais que do que a razão para solucionar os problemas morais do nosso tempo. Precisamos sim, de uma reconstrução de valores humanos, que associados às evoluções que o campo da ciência produz, contribuam para que as relações sociais sejam harmoniosas e pacíficas, recuperando assim, a capacidade de viver em coletividade e em prol de um bem-estar comum. Neste processo, devemos atentar ainda para a extrema importância de estabelecer normas jurídicas que estejam para além do mero formalismo, que atue em simbiose com a realidade sócio-econômica da sociedade e que correspondam aos anseios sociais de justiça, de equilíbrio sócio-econômico e de dignidade.

1.1. A ÉTICA E MORAL NA ATUALIDADE

De acordo com Vázquez (1984, p.12), “ética é um conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral, melhor dizendo, é a teoria ou ciência do comportamento moral do homem em sociedade”.

A ética parte de uma série de práticas morais, buscando determinar à essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes de justificação desses juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais, tendo ainda como função fundamental, explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando conceitos correspondentes.

Já a moral, segundo Vázquez (1984), surge da necessidade social dos indivíduos de interagirem em prol do bem comum de uma coletividade, podendo ser entendida também como um conjunto de normas e regras destinadas á regular as relações entre indivíduos de uma mesma comunidade. Mas a moral não é estática. É um fato histórico mutável e dinâmico que acompanha as mudanças políticas, econômicas e sociais e onde a existência de princípios absolutos se torna impossível.

Não se pode duvidar que a moral social da antiguidade, bem como a ética, é totalmente distinta do que se concebe na atualidade como sendo ético e moral. Mas, o que invariavelmente se mantém desde a pré-história até os tempos atuais, é a certeza que a moral social reflete a necessidade de ajuste do comportamento de cada membro aos interesses da coletividade.

Porém os interesses da coletividade, ou melhor, a moral dominante, passou a refletir os interesses exclusivos de uma determinada classe social, no caso, de uma classe detentora do poder econômico e que tem se mostrado como uma moral individualista e egoísta.

Essa moral dominante passou a ser disseminada a partir das relações sociais burguesas e “evoluiu” para a atual sociedade capitalista, cuja moral se apresenta cada vez mais individualista, e todas as relações são travadas a partir de uma óptica econômica, que maximiza os lucros em detrimento do bem-estar social, e, que se justifica por pensamentos filosóficos como uma “moral superior”.

1.2. A ÉTICA E O CAPITALISMO

No capitalismo, o Direito tem sido o principal instrumento para tornar possível a exploração do homem pelo homem, permitindo á classe dominante, impor, através das normas, uma moral para justificar e regular as relações de opressão e exploração humana, vista como racional e natural, e que estão alheias aos interesses humanos. Nesta óptica Vasquez afirma:

A superação deste desvio social e, portanto, a abolição da exploração do homem pelo homem e da submissão econômica e política de alguns paises a outros, constitui a condição necessária para construir uma nova sociedade na qual vigore uma moral verdadeiramente humana, isto é universal, válida para todos os seus membros, visto que terão desaparecido os interesses antagônicos que geravam a diversificação da moral. (VÁSQUEZ, 2004).

Não podemos dizer que o capitalismo apenas trouxe conseqüências ruins aos povos, muito pelo contrário, as revoluções e evoluções industriais, agrícolas, tecnológica, culturais e cientificas trouxeram a humanidade um sem fim de benefícios em todos os campos do bem-estar material. Mas tal prosperidade, por girar em torno principalmente do aspecto material, deixou a desejar quanto ao desenvolvimento do aspecto ético e espiritual, acarretando a destruição dos valores morais, bem como, deixando um imenso vazio existencial.

Para o professor Milton Santos (2004), as mudanças do século XX, que culminaram no fenômeno da globalização, geraram uma realidade perversa, sustentada por um sistema ideológico que tem no dinheiro e na informação a sua base. Isso porque, a informação, oferecida de forma manipulada á população é utilizada em função de interesses particulares e ao invés de esclarecer, confunde, pois, não se limita a noticiar o fato, mas interpretar a realidade para favorecer, muitas vezes, a um convencimento de interesses ocultos e alienantes. Já o dinheiro, revela sua face violenta ao tornar-se o centro da economia e ganhar uma autonomia em relação aos meios de produção pela especulação financeira.

Disto decorre, de acordo com Milton Santos (2004), que este novo mundo capitalista e globalizado, tem no dinheiro, na competitividade e no consumo a base das ações e relações humanas, razão pela qual, toda forma de compaixão cedeu espaço ao individualismo avassalador nas esferas econômicas, políticas e sociais.

Outro fator propulsor do comportamento extremadamente individualista apontado por Milton Santos foi a perda da influência da filosofia na formulação das ciências sociais, abrindo espaço á ciência essencialmente econômica, que constitui hoje a base de nosso sistema ideológico.

A moral individualista desenvolvida na sociedade capitalista fez com que os indivíduos perdessem a noção de bem comum. A idéia de felicidade passou a ser concebida sob o prisma essencialmente econômico, podendo ser alcançada através da aquisição de bens materiais. E assim, o homem passou a ser valorizado socialmente na medida diretamente proporcional dos seus bens.

A individualidade e a competitividade como regras de convivência entre as pessoas, o consumismo exacerbado, o privilégio da ciência econômica sobre as ciências sociais, o desemprego que gera o empobrecimento de um número cada vez maior de pessoas, a perda da capacidade de compaixão, entre outras características desenvolvidas pelo atual sistema capitalista, geraram um fenômeno característico do nosso tempo: Violência. Essa violência que a sociedade hoje padece é o resultado da soma desses “valores e princípios” elegidos pelo sistema ideológico dominante e que corrompe os valores e as virtudes morais humanas.

A violência é um dos maiores indicativos que a ideologia capitalista, que valoriza os bens materiais e a propriedade privada, perdeu o rumo do seu próprio desenvolvimento como sistema ético, econômico e político. A massa de excluídos socialmente apela para a violência como forma de se adequar a este sistema que valoriza o “ter” em detrimento do “ser” e os valores morais se perdem em meio a este novo dilema humano.

 

De acordo com Leonardo Boff (2003), a grande crise moral e ética que estamos vivendo na atualidade provoca uma grande tensão nas relações pessoais que tendem a organizar-se em torno dos interesses particulares e não em torno do direito e da justiça. Para ele:

Tal fato se agrava ainda mais por causa da própria lógica dominante da economia e do mercado que se rege pela competição, que cria oposições e exclusões, e não pela cooperação que harmoniza e inclui. (BOFF, 2003, p. 27).

Para compreender o problema dos valores morais e éticos, Boff relata a existência histórica de duas principais fontes norteadoras da moral e da ética na sociedade: Primeiro aponta as religiões, que tentam elaborar, apesar das diferenças intrínsecas a cada uma delas, um consenso ético mínimo capaz de manter a união entre a humanidade e que está mais próxima da população, principalmente das camadas econômicas mais baixas. Em segundo lugar indica a razão, que tenta estabelecer códigos éticos universalmente válidos, restritos ao ambiente acadêmico.

Mas para Boff (2003), essas duas principais fontes precisam, diante da atual crise moral, serem enriquecidas para corresponder as expectativas das demandas éticas da sociedade. Assim, para ganharem o mínimo de consenso se faz necessário compreender a essência da formação dos valores, que não está razão, mas na paixão, que é à base da existência humana, afirmando:

Afeto, emoção, numa palavra, paixão é um sentir profundo. É um entrar em comunhão, sem distância, com o tudo que nos cerca. Pela paixão captamos o valor das coisas. E o valor é o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem e os faz apetecíveis. Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos. (BOFF, 2003, p. 30)

Alguns autores contemporâneos esclarecem que não só a razão, mas principalmente a emoção, tem um papel central na eleição de nossos valores. Assim, nosso processo de escolha não é essencialmente racional. A razão exerce um importante papel em nossas escolhas, mas não é a única variável no processo de decisão.

Compreende-se que o homem é moralmente movido em direção aos valores pela paixão, mas é também indispensável impor limites a esta para que o homem não se autodestrua. A razão exerce desta forma uma função limitadora, que proporciona à paixão, ordem, disciplina e direção. E juntas, paixão e razão, encontraram o equilíbrio e a justa medida na busca de uma ética ao mesmo tempo vigorosa e terna.

Mas a razão foi privilegiada em detrimento da paixão, e o saber trazido pela razão crítica foi posto a serviço do poder, e este usado como instrumento de dominação. A ética foi utilizada para justificar a normatização do homem, perdendo a capacidade de transcendência que lhe é própria e que permite ao homem sentir-se parte do todo e encontrar o sentido para sua existência e coexistência com os demais seres.

Para Boff (2003), a ética foi fragmentada em infindas morais, para cada profissão, para cada classe e para cada cultura, pela própria fragmentação da realidade e do saber. Por fim, acabou sendo dividida em ética dos interesses e ética dos princípios, sendo a primeira priorizada pelo atual sistema capitalista e por sua ideologia neoliberalista, assentada sobre a vontade de poder e de dominação, e, que por não conhecer limites, destrói a noção do bem comum e do bem estar social. E ainda acrescenta:

É notório que as sociedades civilizadas se construíram e continuam se construindo sobre duas pilastras fundamentais: a participação dos cidadãos (cidadania ativa) e a cooperação de todos. Juntas criam o bem comum. Mas este foi enviado ao limbo das preocupações políticas. Em seu lugar, entraram as noções de rentabilidade, de flexibilização, de adaptação e de competitividade. A liberdade do cidadão é substituída pela liberdade das forças do mercado; o bem comum, pelo bem particular e a cooperação, pela competitividade. (BOFF, 2003, p.63)

De acordo com este pensamento, uma vez negada a participação e a cooperação surge o individualismo avassalador que impede a vigência dos direitos coletivos e a defesa dos interesses gerais e do bem comum. Desta forma aponta à necessidade do afeto, da compaixão, do cuidado, da responsabilidade e da solidariedade humana como mecanismos para tentar encontrar um novo caminho ético dentro deste caos social que vivenciamos e para minimizar as enormes diferenças econômicas e sociais.

Os nossos valores morais surgem a partir do momento que vemos no próximo a nossa própria imagem e assim somos capazes de perceber quais são as ações que desejamos que sejam praticadas em relação a esta pessoa. Essa capacidade de escolher os comportamentos morais desejáveis pode também chamada de compaixão, ou seja, a capacidade de entender sensivelmente o que é bom e o que é ruim, a capacidade de se pôr no lugar do outro individuo para o qual e sobre o qual temos obrigações e direitos.

A compaixão constitui um valor, e como tal deve integrar o rol de virtudes necessárias aos homens na recuperação da noção do bem comum e do bem-estar social. Há a imperiosa necessidade de viver um comportamento solidário, mas isso não significa apenas ter a capacidade de sofrer diante das angustias alheias, ou dar esmolas a quem dela necessita, mas ser dotado de uma compaixão libertadora e altruísta que permita reencontrar o equilíbrio social.

Para ajudar a encontrar esse equilíbrio social e a justa medida entre as paixões e a razão humana, o Direito se mostra como o instrumento mais apropriado, pois através dele podemos impor limites ao individualismo, atribuir responsabilidades aos indivíduos, normatizar comportamentos morais, enfim, regular toda e qualquer relação social. Ademais o símbolo da justiça, não coincidentemente, é a balança, o que nos leva a uma reflexão da função do direito dentro da sociedade.

1.3. A ÉTICA E AS PROFISSÕES JURÍDICAS 

Toda e qualquer profissão está estruturada por princípios éticos de atuação que se estabelecem de acordo com a especificidade de cada atividade. Nas profissões jurídicas estes princípios éticos possuem uma alta vinculação normativa por envolver questões de relevante interesse social, devendo o operador do direito atuar em conformidade com a realidade social que o cerca, preocupando-se não somente com o aspecto formal e estrutural da norma, mas principalmente com a sua aplicabilidade prática, fazendo com que os fins a que se propõe o Direito sejam alcançados, qual seja a justiça. Assim que:

Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução. O que se espera é uma solução atenta ás variegadas condições de cada caso concreto a que a lei interpretada se refere. (TELLES JUNIOR, 2001, p. 367, apud, ALMEIDA; CHRISTMANN, 2002, p. 81).

Azevedo (1999) exalta a relevância, o caráter político e o alcance social do trabalho dos operadores jurídicos, pois, para ele, nenhum segmento tem maior poder de pressionar o Estado e influenciar em sua ideologia para promover a realização da justiça social. A concepção burguesa de limite ao poder criativo do juiz, não coincide com a idéia de progresso social, pois, face os enormes problemas sócio-econômicos vividos pela sociedade, o formalismo jurídico não pode mais ser concebido. Disto, conclui que:

Diante da situação atual, degradante da condição humana, não pode a Ciência Jurídica repousar no formalismo conceitual, fechando os olhos á realidade. Quanto mais nesta apoiar-se, comprometendo-se com a realização da solidariedade humana, tanto mais autêntica será. Necessita a Ciência do Direito ultrapassar o “puramente” jurídico, auscultando o pulsar da vida, que está a reclamar nova configuração político-jurídica, inspirada pela ética da solidariedade, em que o homem reencontre o humano, em si e no semelhante, não obstante o clamor, orquestrado pela “grande” mídia, em favor de um neoliberalismo economicista, divorciado da moral, centrado no lucro e beneficio de poucos, em detrimento da maioria, falazmente identificado com a modernidade. Para que o jurista possa assumir posição consentânea com sua responsabilidade, no grave quadro que se configura, tem que ser capaz de ir além da formação positivista, que o quer operando como maquina de articulação e encadeamento de conceitos, em nome de uma inventada “neutralidade cientifica” de seu saber. ( AZEVEDO, 1999, p. 58).

O Direito está contido no âmbito da ética e aos seus profissionais incube a tarefa de dar a verdadeira e sábia compreensão ás leis para garantir, não somente a harmonia entre as normas e a realidade social, como a integração do Direito á ética. Ademais, ética é justiça. E, ao profissional do direito a luta pela justiça é a forma de trilhar o caminho ético.

1.4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Almeida e Christmann (2002), afirmam que o Direito surge por meios de normas jurídicas e com base em Miguel Reale esclarece que a norma, inspirada pelos valores, é o modo pelo qual o Direito incide sobre os fatos da vida social. Assim, apontam as normas como frutos da relação entre fato e valor.

Na concepção de Miguel Reale descrito por Almeida e Christmann (2002), o homem é a fonte primária de todos os valores, pois é inerente a sua essência o pensamento crítico e valorativo daquilo que lhe é apresentado. Mas a noção de valor que o homem possui está estritamente ligada à noção de liberdade, pois o ato humano de valorar e escolher entre os diversos valores só é possível com o exercício da liberdade. E, nesta mesma linha de pensamento, defende:

 

Não haveria valor se não houvesse no ser humano a possibilidade de livre escolha entre as alternativas imanentes á problemática axiológica, nem poderíamos falar de liberdade, se não houvesse a possibilidade de opção e participação real dos valores e das valorações. (REALE, 1999, p. 196, apud ALMEIDA, 2002, p. 48).

Mas se a possibilidade de livre escolha na opção dos valores, entre as várias opções possíveis, levasse a uma conduta ética, teríamos que dizer também, que a opção por um comportamento individualista é legitimo e ético. Assim que, a liberdade de escolha por si só não garante um mundo ético. É preciso o mútuo respeito entre os seres humanos e as suas possibilidades de escolhas. E, é esse mútuo respeito que constitui o que hoje tem se apresentado como o valor que funda o novo direito: a dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana se apresenta atualmente como o principio norteador do sistema ético. É ela que possibilitou o surgimento e desenvolvimento dos Direitos Humanos dentro do regime democrático para a conquista de uma nova ordem internacional justa e solidária, estabelecendo os limites éticos ás ações humanas.  

Para Tugendhat (1996), “a defesa dos direitos humanos estabelece a moral do respeito universal e igualitário”. E esta é a única moral que pode ter a pretensão de realizar a idéia de um ser humano bom. Isto implica que, o comportamento moral consiste em reconhecer o outro como “sujeito de direitos iguais e não como objeto de nossas obrigações”

1.5. JUSTIÇA COMO VALOR MORAL

Na atual concepção ética, as normas somente podem ser consideradas moralmente boas se asseguram os direitos humanos em sentido amplo. Isso significa dizer que as normas devem garantir não somente a dignidade da pessoa humana, como também os direitos econômicos para a efetiva realização da justiça.

Há, desde Aristóteles, duas acepções de justiça: a justiça corretiva e a justiça distributiva. A primeira pode ser representada simbolicamente pela figura da justiça que traz nos olhos uma venda. Isso significa dizer, que a justiça corretiva prima pela imparcialidade e pela não distinção de pessoas. Desde já, podemos afirmar que este pensamento da justiça não corresponde à expectativa da equidade entre pessoas, já que, imparcialidade nunca foi sinônimo de igualdade. Já a segunda acepção de justiça, qual seja, a distributiva, admite a desigualdade entre as pessoas, sendo que, tal desigualdade deve se dar por razoes relevantes e que merecem ser levadas em consideração em qualquer julgamento, para que este possa alcançar o conceito igualitário da justiça.

A justiça somente se justifica se for para equilibrar as relações entre desiguais. E, em razão disso, a idéia de justiça está ligada á noção de bem comum e de promoção dos interesses coletivos de acordo com as necessidades particulares de cada sociedade. Não pode assim a justiça, ser concebida a partir de uma perspectiva de sociedade ideal, onde todas as pessoas desfrutem de igualdade de condições, pois, não somente esvaziará sua própria noção, como não atenderá, nem aos fins que se propões, nem a necessidade de equidade real nas relações conflitantes dentro da sociedade.

Conclui-se desta forma, que o conceito de justiça é incompleto. Isso, porque os indivíduos não compartilham as mesmas idéias sobre o que é bom e justo, não podendo se chegar a um consenso universal. Mas, a justiça é um ideal desejável para todas as relações humanas, apresentando-se como uma, entre as muitas virtudes humanas, necessária ao convívio social e ao bem-estar coletivo. Sob este prisma, cabe ao Direito regulamentar o que seja justo através de um consenso geral sobre as condutas justas e moralmente aprovadas pela coletividade.

1.6. A ÉTICA E O DIREITO

O Direito interfere em todas as esferas da vida social, determinando, transformando e regulando as condutas dos indivíduos, razão pela qual a responsabilidade e a consciência ética e social dos juristas são indispensáveis, muito mais que a mera letra da lei, ao bom funcionamento da sociedade. Sobre isso entendia Dworkin que, a concepção do Estado de Direito deve ser “centrada nos direitos”, pressupondo que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e perante o Estado e incorporando a justiça como ideal, e, não “centrada no texto legal”, onde todos, cidadãos e Estado, agem conforme as regras até a sua modificação, pois esta é uma concepção restrita que sequer indica o conteúdo das normas.

O Direito é antes de tudo uma instituição ética que deve colocar as leis a serviço de valores morais tais como verdade, igualdade, liberdade e justiça para solucionar conflitos e contradição de valores. Mas se o Direito for visto como uma simples técnica de controle e organização social, o que implica apenas um conhecimento jurídico apenas informativo e desprovido de um pensamento crítico e político, ao delimitar os limites do comportamento dos homens e sancionar as condutas não desejáveis, dando origem a sucessão de deveres, não terá qualquer significado moral, já que ao direito positivo importará somente em sanções pelo descumprimento das prescrições normativas. E sobre isso informa Farias:

O fato ilícito não é, em si, tido como um fato imoral ou eticamente condenável; é apenas encarado como uma conduta contraria a aquela fixada pela norma.

Ao reduzir o direito a um sistema de normas, que se limita a dar sentido jurídico aos fatos sociais á medida que estes são enquadrados no esquema normativo vigente, tal concepção torna desnecessário o questionamento de dogmas. Despreza, assim, a discussão relativa á natureza e ás implicações éticas da função social das leis e dos códigos, valorizando apenas seus aspectos técnicos e procedimentais. (FARIAS, 1998, p. 21).

No Brasil, por exemplo, tanto as desigualdades entre as classes, não restrita ao ponto de vista econômico, bem como a inoperância dos procedimentos jurídicos oficiais e os diferentes pesos e medidas na aplicação da lei, é uma realidade que torna o principio da igualdade jurídica uma mera ficção. Além disso, a possibilidade de exceções ás regras estabelecidas, muitas vezes com conceitos ambíguos, permite que no direito brasileiro haja sempre uma forma de contornar ou mesmo não aplicar a norma. Nesta perspectiva surge o direito alternativo na tentativa de resolver os conflitos sociais que ocorrem á margem do Estado e para os quais a letra da lei não tem uma solução.

Mas segundo Adeodato (2002), mais que em direito alternativo no Brasil, podemos dizer de procedimento alternativo, ou seja, procedimentos que estão à margem do sistema normativo, extra-oficiais, mas que são aplicados no país como forma de suprir as deficiências legais. Entre estes procedimentos aponta o poder militar e o seu papel legitimador e garantidor da ordem interna, o “jeito brasileiro” como forma especial de controlar as incertezas sobre a eficácia das decisões oficiais e ao mesmo tempo obter resultados marginais que beira a fronteira da ilegalidade, a corrupção com a sua troca de favores entre particulares e funcionários da administração publica para obtenção de favores.

Todas estas incertezas morais e jurídicas acabam sendo a prova inequívoca que o Direito como mero ordenamento jurídico não é suficiente para resolver os conflitos sociais, nem é capaz de garantir um efetivo controle e organização social. O Direito necessita estar em conformidade com a realidade sobre qual exerce influência, não para somente sancionar o descumprimento das suas prescrições normativas, mas fundamentalmente para colocar as leis á serviço de valores morais coletivos e gerais.

1.6. A REALIDADE BRASILEIRA

Desde os anos 70, o Brasil tem se apresentado como uma sociedade industrializada e  predominantemente urbana, mas marcada por  indicadores sócio-econômicos perversos e por enormes contrastes nas classes sociais.

Enfrentamos, conforme o pensamento de Faria (1998), no plano sócio-econômico, uma crise de hegemonia dos setores dominantes, no plano político, uma crise de legitimação do regime representativo e no plano jurídico-institucional, uma crise da própria matriz organizacional do Estado brasileiro. A origem destas três crises está associada ao modelo de desenvolvimento burocrático-autoritário adotado pelo Brasil, que ampliou as formas de intervenção do Estado, tanto no sistema financeiro, iniciando uma nova etapa industrial brasileira, como nos sindicatos, neutralizando a participação política e adotando políticas trabalhistas altamente restritivas. E que, já nas primeiras décadas de 80 mostrou seu esgotamento e transformou as regiões metropolitanas em bolsões de conflitos generalizados.

A transformação da infra-estrutura geo-ocupacional brasileira teve como resultado, a ruptura dos valores tradicionais dos diferentes grupos e classes, maior agressividade de comportamento, concentração de renda, entre inúmeros outros fatores que geraram conflitos surgidos das contradições sócio-econômicas causadas pela rápida industrialização e urbanização. Tais contradições acabaram por exigir das instituições judiciais e jurídicas uma disciplina que solucionasse os conflitos e equilibrasse as relações sociais. Porém, as instituições jurídicas se mostram não somente arcaicas e enrijecidas, mas como excessivamente formalistas, não sendo capaz de corrigir as imperfeições do sistema capitalista.

Sem conseguir superar as contradições e conflitos sociais e ajustar o sistema jurídico aos novos tempos, a sociedade brasileira passou a desconfiar tanto da objetividade das leis, como critério de justiça, quanto da efetividade, como critério de regulação da vida sócio-econômica, acarretando na banalização da ilegalidade e da impunidade, que reflete, nos tempos atuais, a imagem do Brasil.

Entretanto, mesmo com a descrença nas leis, tanto a população de um modo geral, como os excluídos socialmente, depositam suas esperanças no judiciário e esperam, mais que uma mera interpretação legislativa, um judiciário flexível e adaptável ás circunstancias sócio-econômicas no momento da aplicação das normas, apesar da realidade jurídica que hoje vivemos, demonstrar um sistema legal ineficaz e limitado, que carece não somente de liberdade criativa, como de flexibilidade interpretativa.

A crise no sistema jurídico e a complexidade sócio-econômica da sociedade brasileira passaram também a exigir dos atuais operadores do direito, além de novos graus de especialização funcional e técnica na dogmática do Direito, também um conhecimento extra-jurídico que os ajudem a assumir, não somente uma postura crítica frente ao ordenamento jurídico, como novas responsabilidades funcionais, para adequar o direito a realidade sócio-econômica emergente, em prol de uma efetiva justiça material.

A adequação do Direito á realidade sócio-econômica do país tem se tornado, não somente necessária, como imprescindível à realização da justiça, não só ao que diz respeito às decisões jurídicas, mas também quanto ao Direito como instrumento adequado para ajudar na recuperação do equilíbrio social e moral da sociedade.

A ruptura dos valores morais dentro do sistema capitalista foi ocorrendo ao longo da história da exploração do homem pelo homem e derivaram de uma ideologia individualista. E, dentre os inúmeros fatores que levaram a quebra de conceitos e princípios morais da convivência coletiva, o que fator que mais se destaca na inversão dos valores e princípios morais, principalmente dentro da sociedade brasileira, é o fator econômico, pois este é o mais visível aos olhos.

Apesar da ética não poder ser analisada somente sob o aspecto econômico, este exerce, papel importante e muitas vezes definitivo na realização da conduta moral. As desigualdades geradas pelo empobrecimento da população e ao mesmo tempo a ideologia consumista fomentada, são questões antagônicas que vivenciam a maioria da população brasileira e que por vezes ofuscam a compreensão do indivíduo na hora de definir quais condutas são corretas ou não.

Questões sociais como corrupção, consumismo, pobreza e impunidade, e a banalização das mesmas, além de expandir o comportamento individualista dos indivíduos, os levam a uma descrença na justiça e uma fragilidade da conduta moral e ética. Os parâmetros éticos e morais foram perdidos, e, a recuperação destes, depende necessariamente de um comportamento sensível frente aqueles que, excluídos da sociedade, já não são capazes de encontrar sozinhos, o caminho de volta para o bem-estar coletivo.

Neste confronto de valores morais, o Direito não pode mais se apresentar como mera normativa deve, sim, restabelecer a justiça das relações sociais, corrigindo as imperfeições do nosso sistema sócio-econômico, através da observação e consideração da realidade social para a aplicação justa das leis aos casos concretos.

CONCLUSÃO

A nossa sociedade necessita estabelecer uma “nova moral”, ou seja, uma moral que seja elevada a um nível superior. Mas para isso exige-se uma superação do individualismo egoísta em que o individuo se afirma à custa da realização dos demais.

O progresso moral somente pode ser alcançado se houver a integração dos interesses individuais e coletivos, isso significa dizer, que é necessário que todos os indivíduos se encontrem em uma situação sócio-econômica favorável a manutenção dos valores morais. E isso, importa em não se encontrar em uma condição tal que seja necessário escolher entre um comportamento social adequado e as necessidades básicas de sobrevivência. Trata-se, portanto da elevação do caráter consciente e livre do comportamento dos indivíduos ou dos grupos sociais para que lhes possam ser atribuídos responsabilidades sobre o seu comportamento moral.

Neste desenvolvimento moral os operadores do Direito exercem um importante papel dentro da sociedade, devendo utilizar as normas jurídicas para regular as relações sociais e proporcionar o equilíbrio social e econômico que a nossa sociedade necessita, permitindo assim a formação desta nova moral.

O crescimento da violência, do desemprego, do analfabetismo e de tantas outras questões sociais que assolam o nosso país, são fatores que evidenciam que não podemos continuar pensando nesta moral única estabelecida pelo poder econômico dirigente. Urge estabelecer uma moral social que atenda também as necessidades de determinados estratos da sociedade que já não está disposta a submeter-se a uma regra moral excludente e que não compartilham os mesmos problemas estruturais.

Neste contexto, o Direito busca regular as relações e solucionar os conflitos sociais existentes, porém as leis estabelecem tão somente a moral normativa. Desta forma, cabe aos profissionais do direito ir além da moral normativa, aproximando-se da moral factual, ou seja, dos atos reais que os indivíduos concretizam no plano prático. Somente quando pudermos aproximar a moral ideal da moral real, estaremos mais próximos do verdadeiro conceito de justiça.

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, Guilherme Assis; CHRISRMANN, Martha Ochsenhofer. Ética e Direito: Uma Perspectiva Integrada. São Paulo: Atlas, 2002.

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BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: Ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002.

BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

COSTA, Elcias Ferreira. Deontologia Jurídica: a ética das profissões jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

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SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro, RJ: Record, 11ª. edição, 2004.

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução de João Dell´Anna.Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 7ª. edição, 1984.