Noutro planeta

Por Maria Celça Ferreira dos Santos | 23/09/2010 | Contos

Quando cheguei, mostraram-me algo diferente do real. Era uma paz, uma tranquilidade, onde todos pareciam viver em absoluta harmonia, mas foi pouco o tempo de que precisei para me sentir perdido, fora de órbita e, mais que isso, em perigo.
Há quem pense que aqui não exista vida. Isso dificulta muito a minha salvação. Tentei mandar sinais, mas não tive qualquer resposta. Os que estão lá fora desconhecem o que vejo aqui, e os maus bocados que venho enfrentando. Desânimo total. Não vou conseguir sozinho, preciso de ajuda.
Estou acompanhado por outros seres. Nem sei se são mesmo daqui, ou se o acaso, assim como foi comigo, os arremessou nessa terra de ninguém e ao mesmo tempo de todo mundo. Vejo coisas estranhas, esquisitas... e assustadoras. Alguém está no planeta errado, não sei se eles ou eu.
Nossa semelhança é puramente física: eles também têm o corpo formado por cabeça, tronco e membros. Alguns até falam coisas que consigo entender. Mas há outros que, lamentavelmente, parecem loucos, só veem aquilo que lhes convêm, e são incapazes de perceber o que está além da visão. Não falam claramente, expressam-se sem declarar qualquer objetivo.
Falam muito, assuntos difíceis, pelo menos para minha compreensão. É como se dessem voltas para dizer algo e, de tantos rodeios, acabam sem dizer nada. Sentem dificuldade em manifestar os sentimentos, muito diferentes de mim, que não sei mascarar uma emoção. Pelo contrário, minha reação é imediata e expressamente revelada. E compartilho os infortúnios, assim como também faço com as conquistas. Absolutamente normal agir assim, pelo menos no meu planeta era.
Não tenho, assim como eles parecem ter, o botão regulador que comanda os sentidos, e choro quando tenho vontade, não sei disfarçar a dor. Escandalizo-me com o que me chega aos olhos. E o que não chega, posso imaginar. Deve haver coisas muito piores que ainda não descobri desse lugar. Tenho medo. Sou o alvo de um deles.
Eles me assustam, tiram-me o sossego. Nem dormir eu posso, tenho pesadelos terríveis, especialmente com um deles. São todos assombrosos. Sinto-me cada vez mais distante da saída. Penso em desistir.
A primeira impressão que tive deles foi agradável: pareciam do bem. Mas hoje, mesmo sem muita observação, afirmo que o melhor é não se deixar envolver, o ideal é ponderar. E em pouco tempo, através das atitudes, revelam-se as verdadeiras identidades. Observei que esta é uma das suas falhas: não conseguem se esconder por muito tempo, caem-lhes as máscaras.
Falam de Deus como se por vezes O fossem eles mesmos. Julgam-se perfeitos. São eternos, essa é a forma como se consagram. Proclamam, a todo instante, que após esta "passagem" irão encontrar-se com Ele, o que me faz concluir: viverão para sempre, então. Eu não entendo. É possível que eu acabe me tornando um deles. Preciso me proteger, tirando forças de onde eu nem sei, se não eles me pegam.
Tenho muito a dizer, mas eles não me ouvem. Seus ouvidos parecem ter funções diferentes dos meus. Eles filtram, só lhes interessa aquilo que os agrada. São contraditórios. Ensinaram-me, nos primeiros dias, que a verdade era o melhor caminho e que deveria sempre ser dita, em qualquer situação. Pediram honestidade, e eu caí na armadilha. Agora, depois do castigo, eu me recuso a falar, embora sinta-me como se fosse explodir.
Às vezes parece lhes faltarem os olhos. Estão vendo, mas não percebem o que exatamente acontece. Assim como os ouvidos, os olhos deles também podem não ter a mesma função que os meus. Enquanto seres de planetas distintos, podemos, sim, ser diferentes. Quanto ao coração, ainda não pude descobrir se eles têm, mas, pela forma como agem e agridem a vida, suponho que não.
Eu podia dizer-lhes muitas verdades, talvez até pudesse resgatá-los. Eu descobri, nos tempos em que fiquei no meu canto, quieto, qual vai ser o final da história deles. Têm pouca chance de sobrevivência. Vão se liquidar, uns aos outros, dia a dia. Serão eles próprios seus assassinos. Se autodestruirão, aos montes, ou um por vez, disso ainda não tenho certeza. Preciso de mais tempo de análise. Querem ser bons, pensam que são, mas não conseguem. Não verbalizam seus desejos, seus incômodos, matando-se a si mesmos.
O castigo continua e eu temo não resistir por mais tempo. É muito doloroso. Eles usam um chicote pesado, chamado "indiferença", que machuca além da carne, atravessa o corpo inteiro, causando dor até no coração. Basta uma chicoteada, e o martírio parece ser o fim da vida. São carrascos, maltratam o quanto podem, sem nenhuma piedade, mas se acham justos.
Outros instrumentos também são utilizados no massacre. Podia listar alguns, mas não gosto nem de lembrar seus nomes, nem os efeitos que causam, é muito doloroso para mim, que já os senti na pele.
Eu precisava de pesquisas avançadas para conhecer mais sobre esses seres abomináveis, que me enojam, fazendo-me sentir raiva de mim, e pena. Eles têm o poder nas mãos, mas não sabem o que fazer com ele; têm o controle de tudo, mas não sabem por onde começar. Estão perdidos.
Estou eu agora, quieto, processando o que vejo desde o primeiro dia, angustiado por não entender onde é que eu vim parar. Tenho muito medo. Vou permanecer aqui, escondido no escuro, como se de alguma coisa adiantasse, aguardando, ainda que à contragosto, a hora da próxima chibatada.