NOTAS SOBRE SUBJETIVIDADES EM TRÂNSITO

Por Angeli Rose do Nascimento | 06/08/2016 | Educação

RESUMO

Este artigo é resultado das primeiras leituras realizadas da Teoria da leitura de Larrosa (1998) e a audiência do filme de Roberto Faenza, Páginas da Revolução, estrelado por Marcello Mastroianni e baseado no romance de Antonio Tabuchi. Tal encontro entre a Teoria e o filme pretendeu focar alguns aspectos da noção de formação. A ideia de Trânsito recuperou a sugestão da Teoria sobre certa transitoriedade e instabilidade que a experiência de leitura provoca.  As notas, breve comentários se entrecruzam com as escritas elaboradas a partir do filme e da Teoria.

Formação - leitura - notas - experiência

"De onde estou

já fui embora".

(Manuel Bandeira)

Este trabalho é fruto de uma experiência  de leitura da conjugação do filme "Páginas da Revolução", dirigido por Roberto Faenza e estudado por Marcello Mastroianni (produção de 1995) e a memória dos resultados parciais de pesquisa realizada em 2001 com jovens, alunos do ensino médio, sobre "formação de leitores" mediada pela  Teoria de leitura de Larrosa (1998).

Vou apresentar algumas reflexões em movimento que chamei de “notas”, organizadas na seguinte escala(ou roteiro de leitura):

1ª nota: esta que apresento sobre a estruturação do trabalho;

2ª nota: que nomeei de mediação teórica, onde estabeleço as influências das quais parti para experienciar uma leitura sobre o filme e a pesquisa.

3ª nota: o acompanhamento. Levanto o olhar para o filme, voltando-me para a questão da formação.

4ª nota: em tom de fuga acompanhada, apresento a memória dos resultados parciais da pesquisa concluída em 2001.

5ª nota: contrapontos. Teço algumas considerações em torno dessas subjetividades conjugadas, dos personagens do filme da pesquisa.

6ª nota: Deixo o acompanhamento de uma história de Luís Ruffato, a fim de fazer soar uma melodia macabra sobre experiência; leitura;subjetividade e formação.

7ª nota: Não toco. Silêncio. Escuto a canção dos presentes.

2ª Nota:

A teoria de leitura de Larrosa, resumidamente apresentada aqui, está estruturada em três eixos, a saber, experiência, subjetividade e formação. Experiência para o autor é o que nos passa no ato da leitura, tomada esta atividade como uma atividade paradigmática para as subjetividades em formação.  Subjetividades estas que uma vez afetadas pelo encontro com o texto põem-se em transformação, decorrendo disso a produção de sentidos e sem-sentidos.

A teoria apresenta-nos duas categorias: experiências de leitura, onde, segundo o autor, no encontro com o texto "não passa nada", a subjetividade leitora não é afetada pela subjetividade do texto, de modo que há como nunca continuidade  desta subjetividade leitora, num fluxo sem qualquer abalo, o que como é uma operação de transporte, num processo comunicativo, sem reflexão.A segunda categoria é leitura como experiência, nesta há o encontro  de fato, e as subjetividades do texto e do leitor, uma vez confrontadas, provocam no leitor uma desestabilização, a ponto de afetá-lo e fazê-lo parar, em repouso.Num movimento favorável à reflexão(o repouso) em que há um grau maior de abstração,de maneira que é considerada também a subjetividade do autor,então.Nesta direção haveria o encontro,o que caracterizaria também o encontro com a literatura que  provoca isto, quando de verdade; quando experiência.

Mas, alerta-nos o teórico que esse encontro de abalo e descentramento, que ultrapassa a operação de transporte como uma transferência de informações (do texto ao leitor) não ocorre sempre e não é passível de controle, porém, exige um movimento diferente em relação ao que se lê, movimento que se transforma em gesto de escuta.Sendo assim, considera o teórico, que o que se poderia desenvolver seria um conjunto de condições favoráveis à manifestação deste encontro formador e trans-formador.  Já a formação tem sua noção elaborada a partir dos aspectos de inacabamento, continuidade pelo descontínuo, no ato de ler, de modo que a relação entre o objeto que ativa a leitura, o texto, a subjetividade leitora e a própria  vida é de descontinuidade.A formação como leitura e leitura como formação,são outras categorias decorrentes desse movimento de inacabamento e descentramento,num ritmo de descontinuidade entre sentidos e silêncios,provocados pela leitura..

Deste modo, o ato da leitura, quando experiência é movimento de descentramento e instabilidade para o leitor.

3ª nota: Tomo agora o acompanhamento do filme de referência, "Páginas da Revolução",que fala do período histórico da ditadura de Salazar em Portugal, cercada pela perseguição aos judeus por parte do governo alemão e baseado no romance português homônimo de Antonio Tabuchi.

O protagonista, encenado por Mastroianni, chama-se Dr. Pereira, um jornalista pacato, metódico, cinquentão, viúvo, de formação literária sólida,segundo um olhar eurocêntrico e que é responsável pela sessão cultural de um periódico "apolítico" do médio porte, mas de boa circulação na cidade de Lisboa.

A leitura de um artigo sobre a morte é o ato disparador para que nosso Dr.  Pereira vá ao encontro do coadjuvante, um "jovem escritor desconhecido",  Monteiro Rossi. A mediação da leitura daquele texto dispara um sentimento mórbido e reflexões que fazem com que o jornalista se impressione com as palavras do escritor: "A morte explica o sentido da vida".Interação sobre interação na comunicação discursiva estabelecida.

Tomado pela palavra e o valor que esta tem para ele, Dr. Pereira decide convidar o jovem, recém-formado em filosofia e que chega a ser militante de esquerda (mentindo ao seu interlocutor ingênuo) decide convidá-lo para escrever o necrológico do jornal sobre escritores famosos que venham a falecer ou já falecidos, em datas comemorativas..  Dr. Pereira, movido pela crença na palavra como suporte da verdade e dos altos valores para a vida, entende que divulgar a vida e os feitos dos grandes escritores é um ato de formação.

O filme apresenta ao longo da narrativa algumas considerações críticas sobre a imprensa da época como um veículo  e alienador de consciências, e a figura de um garçom (Joaquim de Almeida, ator) que a realidade política das ruas chega ao conhecimento do Dr. Pereira.

Contratado, Monteiro Rossi, movido pelo afeto que tem por sua noiva, militante revolucionária, escreveu textos que contrariam as intenções edificantes do Dr. Pereira.  O jovem impetuoso, que "escreve com o coração", traz à tona aspectos das vidas de alguns escritores consagrados que o estabilizado, formado leitor e jornalista, não acredita serem convenientes, chegando a refletir que se deve escrever com o cérebro e não com o coração.

Posto o encontro e a tensão entre protagonista e coadjuvante, detonados pela palavra que dá sentidos diferentes à realidade; o Dr. Pereira vê-se confrontado com suas imagens e medos que lhe atravessam os sentidos conhecidos, familiares, e denunciam a impossibilidade até certo ponto de nesses momentos de ler a realidade.

1ª imagem: Num bonde, por detrás da janela, o doutor Pereira vê a violência da milícia fascista sobre manifestantes em protesto.  Sua perplexidade denuncia a ingenuidade e o despreparo para dar palavras à viagem que assiste em movimento, no trânsito para o trabalho.  Aparentemente a cena sugere nenhuma afetação à subjetividade leitora, que apressadamente rotularíamos de "não leitora".  Dr. Pereira apresenta-se como a subjetividade, que embora em movimentos de leitura, estes não desenvolvem de inicio qualquer processo de intersubjetividade que o faça sair de si.

2ª imagem: No final do filme, depois de humilhado em sua casa, pela polícia. A cena: depara-se com o corpo imóvel, inerte e rosto ensanguentado do amigo jovem, "escritor que nunca chegou a escrever no necrológico" nas palavras  dele, Monteiro Rossi assassinado e morto em sua casa, onde fora buscar abrigo e refúgio da perseguição que sofria pela repressão violenta da polícia daquele período histórico que ambienta a história do encontro entre o jovem e ancião viúvo.

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