NOSSO MUNDO CARTESIANO
Por Gustavo Uchôas Guimarães | 23/01/2025 | Geral[Resumo, preparado para alunos do Ensino Médio, a partir das páginas 46 a 51 do livro “A visão sistêmica da vida”, de Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi, e incluindo alguns exemplos práticos e minhas próprias reflexões; o material pode ser utilizado e adaptado por professores e alunos]
Falar em René Descartes (1596-1650) é falar de um grande pensador europeu que ajudou a moldar o mundo moderno com seu pensamento e que é objeto de inúmeros estudos, produções e discussões até hoje, influenciando debates e práticas na educação, na filosofia, na ciência e tecnologia, na biologia, na matemática, entre outras áreas do conhecimento.
Um primeiro ponto do pensamento cartesiano é sua crença na certeza do conhecimento científico, como se houvesse uma verdade absoluta que pudesse ser alcançada. Para Descartes, a matemática era a chave para compreender o universo e a linguagem matemática poderia descrever a natureza, por isso ele se debruça sobre a relação entre álgebra e geometria, criando, assim, a geometria analítica.
Geometria analítica: área da matemática que busca representar elementos geométricos através de expressões algébricas. Pode ser aplicada, por exemplo, em projetos de construção civil, funcionamento do GPS, modelagem de objetos 3D na computação gráfica, entre outras situações. Plano cartesiano: malha quadriculada, utilizada na matemática para localizar pontos e que pode ser aplicada, por exemplo, no sistema de coordenadas geográficas. Para saber mais: https://brasilescola.uol.com.br/matematica/definicao-geometria-analitica.htm https://mundoeducacao.uol.com.br/matematica/geometria-analitica.htm https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/matematica/o-que-e-plano-cartesiano.htm |
Aplicando o pensamento matemático à filosofia, Descartes descreveu um novo método de raciocínio, em seu livro “Discurso do Método”, no qual ele propõe que se deve duvidar de tudo e que isso é a base do progresso da ciência. Descartes diz que é preciso duvidar até que, alcançando aquilo do qual não se pode duvidar, o pensador perceba a própria existência como pensador; é aí que Descartes escreve uma das frases mais famosas da história da Filosofia: “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”). Pensando de forma mecanicista, ou seja, como se o universo fosse uma máquina dividida em várias peças e engrenagens, Descartes defende que é preciso analisar todas as coisas quebrando o pensamento em partes e arranjando-os em uma ordem lógica. Isto influenciou marcantemente a maneira de se pesquisar e de se fazer ciência nos últimos séculos, ao mesmo tempo que influenciou a fragmentação do conhecimento, como se pode ver, por exemplo, nas disciplinas ensinadas nas escolas.
Método analítico: caminho pelo qual o pesquisador analisa o fenômeno partindo dos efeitos para chegar às causas. Exemplos: alfabetizar uma criança a partir de frases em que a criança extrai as palavras e, ao final, reconhece as sílabas; acompanhar e pesquisar um tratamento médico para saber se está funcionando corretamente. Para saber mais: https://www.questionpro.com/blog/pt-br/metodo-analitico/ https://institutoinclusaobrasil.com.br/qual-o-melhor-metodo-de-alfabetizacao/ |
Ainda no campo filosófico, o pensamento cartesiano atribuía mais valor à mente do que à matéria, separando estas duas realidades. Em termos práticos, a separação entre mente e matéria no pensamento cartesiano influencia nossa visão que valoriza mais o trabalho mental do que o manual, influencia o marketing das empresas que vendem produtos para a busca de um “corpo ideal”, impede cientistas de considerarem os aspectos psicológicos das doenças e impede os psicoterapeutas de considerarem os corpos dos pacientes em seus tratamentos (como se os problemas da mente e os do corpo não se influenciassem). No campo científico, esta divisão cartesiana influenciou a divisão entre Humanidades (as ciências da mente, ou seja, se ocupam do homem como um “ser pensante”) e as Ciências Naturais (as ciências voltadas à matéria que compõe o universo).
Afetando a educação: a influência cartesiana, com sua divisão entre mente e matéria, pode ser percebida no currículo escolar brasileiro, em áreas do conhecimento como Ciências Humanas (História, Geografia, Filosofia e Sociologia) e Ciências da Natureza (Biologia, Química e Física). |
Mesmo crendo em Deus e buscando uma suposta verdade absoluta (base de sua crença na certeza do conhecimento científico), Descartes via o universo como uma máquina sem espiritualidade, regido por leis mecânicas (leis matemáticas exatas). Essa forma de pensar influenciou o comportamento das pessoas em relação à natureza: se, na Idade Média, ainda havia uma certa barreira cultural que colocava limites nas ações humanas sobre a natureza, agora, com a influência cartesiana na Idade Moderna, se passa a enxergar a natureza como algo mecânico que deveria ser sempre mais controlado e explorado pelo ser humano.
Reflexão: A partir das influências cartesianas e de outras realidades e ideias dos últimos séculos, se pode formular, matematicamente, a seguinte síntese:
Globalização x (Mecanicismo cartesiano + Capitalismo) = Progresso científico, tecnológico e econômico + Desigualdades sociais e econômicas + Destruição do meio ambiente |
Com o passar do tempo, a visão cartesiana sobre o universo como uma máquina ajudou a abrir caminho para uma manipulação da natureza cada vez mais desprovida de ideais de humanidade e ética. Isto também se vê no ideal cartesiano de que se deva crer na certeza da ciência, o que evoluiu para pensamentos posteriores segundo os quais a ciência e a razão seriam onipotentes.
Positivismo: corrente de pensamento surgida na França, no século XIX, com o filósofo Auguste Comte, que rejeitava qualquer explicação religiosa ou espiritual para o universo, defendendo arduamente o conhecimento científico, o materialismo e a onipotência da razão. Sobre os efeitos destes pensamentos – o cartesiano e o positivista – sobre uma prática da pesquisa científica dissociada de elementos humanitários e éticos, é interessante ler “Dialética do Esclarecimento” (1947), de Theodor Adorno e Max Hockheimer, que parte das trágicas experiências do nazismo e do Holocausto para refletirem sobre as razões do ser humano conseguir ser tão cruel com os semelhantes apesar de todo o desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Para saber mais: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/positivismo https://colunastortas.com.br/a-dialetica-do-esclarecimento-adorno-e-horkheimer-uma-resenha/ (Resenha do livro “Dialética do Esclarecimento”) |
Por fim, Descartes usou sua visão do universo como máquina para pensar nos organismos vivos. Para ele, plantas e animais (incluindo os seres humanos) são, simplesmente, máquinas cujos movimentos e funções biológicas poderiam ser explicadas como operações mecânicas. Tal pensamento influencia bastante, por exemplo, a medicina, que, muitas vezes, ainda enxerga o corpo humano como uma máquina e impede os médicos de compreenderem as doenças considerando aspectos além do físico ou material.
Reflexão: Neste mesmo sentido, pode-se perceber a influência do pensamento cartesiano nas pesquisas com animais, que muitas vezes enxergam o ser vivo apenas como uma máquina. Tanto em relação ao tratamento de seres humanos e às pesquisas com animais, hoje discute-se, mais amplamente, questões éticas que levem médicos e cientistas a olharem além do material. Para saber mais: https://educacaomedica.afya.com.br/blog/medicina-holistica-tire-suas-duvidas-sobre-a-area |
FONTE:
CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya Eichemberg e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014.